Clinton continua a caminho do sonho, mas ameaça de Sanders é cada vez mais real
Último debate antes das primárias entre os candidatos do Partido Democrata mostrou uma Hillary Clinton mais agressiva, numa tentativa de conter o fenómeno Bernie Sanders.
Durante a campanha para a escolha dos candidatos que vão representar o Partido Democrata e o Partido Republicano na corrida à Casa Branca, uma boa forma de perceber se os favoritos começam a sentir-se inseguros é prestar atenção aos ataques lançados durante os debates televisivos.
No caso do último debate entre os candidatos do Partido Democrata, que decorreu no domingo à noite, no estado da Carolina do Sul, Hillary Clinton apontou baterias a Bernie Sanders, e saiu do palco com dois resultados – se, por um lado, conseguiu encostar o senador do Vermont às cordas em algumas ocasiões, por outro lado essa estratégia reforçou a ideia de que a sua nomeação está hoje um pouco mais em risco do que há apenas três meses.
Ao contrário da colorida corrida no Partido Republicano, em que 11 candidatos tentam desesperadamente enfraquecer o fenómeno Donald Trump, a campanha no Partido Democrata tem sido quase sempre a preto e branco – Hillary Clinton é a favorita a nível nacional, Bernie Sanders é o único obstáculo à "coroação" da antiga secretária de Estado, e o governador Martin O'Malley luta apenas contra as sondagens, para conseguir um lugar nos debates televisivos.
Depois de Clinton ter sido apontada durante dois anos e meio como a inevitável candidata dos Democratas à Casa Branca, as últimas semanas revelaram ao país que o Partido Democrata tem o seu próprio fenómeno – muito diferente do magnata Donald Trump, mas ainda assim um fenómeno.
No frente-a-frente com Hillary Clinton para a nomeação final, Bernie Sanders começou com apenas 3% das intenções de voto, contra uns esmagadores 64,4% da antiga secretária de Estado, em Outubro de 2014. A diferença foi encurtando a partir do Verão do ano passado – e no domingo, a média das sondagens a nível nacional dava 51% a Clinton e 38,3% a Sanders.
Mas o grande problema de Clinton está nas duas eleições primárias, nos estados do Iowa e do New Hampshire, marcadas para a primeira metade de Fevereiro. Apesar de não serem decisivas, duas vitórias de Sanders nesses estados podem trazer de volta o fantasma da derrota de Clinton nas primárias de 2008 contra Barack Obama. No Iowa, onde o fosso entre os dois chegou a ser superior a 50 pontos, a diferença é agora de apenas quatro, com vantagem para Clinton; e no New Hampshire Bernie Sanders conseguiu mesmo dar a volta, estando agora seis pontos à frente de Hillary Clinton quando há seis meses a diferença era de 40 pontos a favor da antiga secretária de Estado.
Nasceu uma ameaça
Bernie Sanders, o senador do Vermont de 74 anos, tem disputado a nomeação com o trunfo de ser reconhecido como um político coerente, à esquerda de Hillary Clinton e até de Barack Obama – num país em que os Republicanos mais radicais e os libertários vêem o Presidente como um socialista apostado em tirar direitos aos cidadãos, Bernie Sanders é uma espécie de perigoso comunista decidido a acabar com a própria ideia de Estados Unidos da América.
Mas os valores progressistas de Sanders estão a ser bem recebidos por uma camada mais jovem dos eleitores do Partido Democrata, tipicamente alunos universitários das grandes cidades. E a sua ascensão meteórica nas sondagens levou a equipa de Hillary Clinton a olhar para ele com mais atenção.
Tal como na campanha do Partido Republicano, onde o magnata Donald Trump foi escolhendo os seus alvos principais à medida que eles subiam nas sondagens (o seu actual arqui-rival é o senador Ted Cruz), também os candidatos do Partido Democrata vão distribuindo os seus ataques de acordo com as percentagens. A diferença é que, no caso dos Democratas, Hillary Clinton só tem um adversário real; e o mais relevante é que esse adversário ganhou estatuto de ameaça.
Foi por isso que Hillary Clinton surgiu no debate de domingo à noite mais focada em Bernie Sanders do que aconteceu nos três debates anteriores, deixando o senador na defensiva em relação às leis sobre uso e porte de armas e ao seu ambicioso plano de reforma do serviço de saúde norte-americano.
"Com base nos registos das votações do senador Sanders, ele votou várias vezes ao lado da NRA [National Rifle Association], do lobby pró-armas", acusou Clinton, dando alguns exemplos que podem ser confirmados no site do Senado: em Abril de 2009, Bernie Sanders votou a favor de que os "cidadãos cumpridores da lei" possam transportar armas nos comboios da Amtrak, em malas previamente inspeccionadas; um mês depois, em Maio de 2009, votou a favor de que os "cidadãos cumpridores da lei" possam entrar com armas legalizadas em parques nacionais e reservas naturais; e há 20 anos, em 1996, votou contra uma emenda que concedia mais 2,6 milhões de dólares ao Centro de Controlo e Prevenção de Doenças para reforçar a investigação sobre assuntos relacionados com armas de fogo.
O ataque de Clinton foi feito à medida do palco em que o debate decorreu, na cidade de Charleston – a pouca distância dali, no dia 17 de Junho do ano passado, o jovem Dylan Roof, de 21 anos, entrou na Igreja Africana Episcopal Metodista Emanuel e matou nove pessoas, todas afro-americanas.
A pressão da campanha de Hillary Clinton foi tal que Sanders anunciou um dia antes do debate que iria apoiar uma alteração à lei que dá imunidade aos fabricantes em crimes com armas de fogo – uma lei que o agora senador aprovou em 2005, quando era membro da Câmara dos Representantes. Clinton aproveitou o anúncio de Sanders para o acusar de ter uma posição errática sobre o porte de armas, numa altura em que o tema voltou a dividir os eleitores americanos – a maioria dos Democratas concorda com a aprovação de leis mais restritivas para a compra de armas, embora as sondagens também mostrem que a maioria da população concorda com o direito a ter armas.
Bernie Sanders tentou rebater as acusações de Hillary Clinton, dizendo que são "propositadamente enganadoras", e salientou que a NRA não gosta dele – nas notas atribuídas aos congressistas pelo grupo pró-armas, o senador tem um "D-", numa escala em que os amantes das armas recebem um A e os maiores inimigos são contemplados com um F. Em sua defesa, Sanders diz que sempre votou contra leis que pudessem facilitar a compra de armas por pessoas com antecedentes criminais, e lembra que a caça é uma actividade muito importante no Vermont, um estado rural.
Seja como for, o facto de o senador ter sido forçado a ficar na defensiva durante a troca de argumentos com Hillary Clinton pode ser suficiente para prejudicar ainda mais a sua posição perante os eleitores da Carolina do Sul, o terceiro estado a ir a votos e onde a comunidade afro-americana preenche uma importante fatia dos Democratas que votam nas primárias.
O terceiro candidato, Martin O'Malley, esteve quase sempre afastado do centro do debate, dominado pela ainda grande favorita e pela surpreendente ameaça. Sempre que teve oportunidade para falar, o antigo governador do Maryland tentou apresentar-se como a melhor escolha, com o melhor dos outros dois e sem nenhum dos seus defeitos. "Ambos têm sido pouco consistentes no tema das armas. Eu sou o único candidato neste palco que conseguiu unir as pessoas para aprovar leis abrangentes sobre segurança", disse O'Malley – o estado do Maryland, que este candidato governou entre 2007 e 2014, é um dos mais exigentes em termos de compra e posse de armas, e a sua Constituição é uma das poucas que não inclui o equivalente à Segunda Emenda da Constituição dos EUA, que prevê o direito à posse de armas.
A amiga de Wall Street
Mas Bernie Sanders também soube usar o grande trunfo que tem contra Hillary Clinton, voltando a encostá-la a Wall Street e questionando a sua legitimidade para cumprir a promessa de pôr travão aos abusos financeiros.
"A primeira diferença é que eu não recebo dinheiro dos grandes bancos", disse Sanders, quando questionado sobre o que faria de diferente em relação a Clinton. "Não recebo pagamentos pessoais do Goldman Sachs por palestras", atirou o senador, perante os aplausos da assistência, e antes de salientar que Hillary Clinton recebeu "mais de 600.000 dólares da Goldman Sachs num ano".
"Será mesmo possível reformar Wall Street quando eles gastam milhões e milhões de dólares em contribuições para campanhas e quando pagam palestras a indivíduos? É fácil dizer que se vai fazer isto ou aquilo, mas tenho dúvidas quando as pessoas recebem enormes quantidades de dinheiro de Wall Street", disse Bernie Sanders, disparando contra Hillary Clinton.
O terceiro grande assunto da noite foi a reforma do sistema de saúde norte-americano, talvez o que mais separa Clinton de Sanders, até porque está directamente relacionado com o grau de proximidade entre cada um dos candidatos e a Administração Obama – uma questão muito importante, principalmente no estado da Carolina do Sul, onde Barack Obama venceu as primárias de 2008, contra Hillary Clinton, com uma esmagadora vantagem de 28,9 pontos.
Duas horas antes do debate, Sanders apresentou a sua proposta de reforma para o sistema de saúde, muito mais ambiciosa do que a já controversa reforma implementada durante a Presidência de Barack Obama. Num documento intitulado "Medicare para todos: Não deixar ninguém para trás", Sanders defende que os EUA devem ter um sistema de saúde universal à semelhança do modelo europeu.
A diferença entre Clinton e Sanders está na urgência, algo que se percebe facilmente quando o senador defende a necessidade de uma "revolução política" para "transformar o país", e a antiga secretária de Estado põe a tónica no aperfeiçoamento do que tem sido feito pela actual Administração. Para além disso, há que antecipar a oposição do Partido Republicano, avisa Clinton.
"Temos finalmente um caminho para o sistema de saúde universal. Já alcançámos muitas coisas. Não quero ver os Republicanos a revogar [o Obamacare], e não quero que comecemos tudo de novo com uma discussão litigiosa. Quero defender e melhorar o Affordable Care Act", disse Hillary Clinton.
Mas Bernie Sanders sonha mais alto, e não abre mão da sua "revolução política": "Precisamos de uma revolução neste país em termos do tratamento da saúde mental. As pessoas devem poder receber o tratamento de que precisam quando precisam, e não daqui a dois meses."