Jeffrey Tambor, um "aliado orgulhoso da comunidade transgénero”
Transparent regressa esta quinta-feira ao TV Séries. Estamos na segunda temporada da comédia que pela primeira vez põe uma personagem transgénero ao centro – o seu protagonista defende que "o mundo precisa de mudança".
Os genitais e a biologia são destino? Foi assim que Laverne Cox, a primeira mulher transgénero a ser capa da Time, pôs o tema numa revista que proclamava em manchete ter-se atingido nos últimos anos um ponto de viragem na visibilidade desta comunidade. E se ela é actriz secundária em Orange is the New Black, Jeffrey Tambor é actor principal na agridoce Transparent, que esta quinta-feira regressa ao canal TV Séries depois da interrupção das semanas de festas e que pela primeira vez põe uma personagem transgénero (Maura Pfefferman), no centro de uma comédia. “Orgulho-me tanto de ser um aliado da comunidade transgénero”, diz o actor norte-americano ao telefone.
Jeffrey Tambor não soçobra, portanto, sob o peso da representação de uma comunidade que viveu em 2015 um dos seus grandes anos, se não o seu ano maior. Considerado um dos melhores actores de composição a trabalhar actualmente, foi Oscar e George Bluth em Arrested Development – De Mal a Pior e com Transparent, que se estreou em Fevereiro de 2014, venceu os seus primeiros Emmy e Globo de Ouro de Melhor Actor de Comédia. Transparent ganhou também o primeiro Globo de Ouro para uma série de um serviço de streaming para a Amazon, no mesmo ano em que, com Orange is the New Black, o serviço concorrente Netflix teve também direito a prémios da Guilda dos Actores e diversas nomeações.
Transparent conta a história de uma família com três filhos solipsistas e um pai que se afirma como “moppa” – a aglutinação de mom e pappa, do inglês para mamã e papá – depois de se ter debatido com uma identidade de homem atribuída à nascença quando na verdade se identificava como mulher. É, no fundo, uma história sobre “o que acontece numa família quando essas coisas mudam”, explica Tambor numa entrevista telefónica com jornalistas de Portugal e Bélgica poucos dias depois da estreia desta segunda temporada.
Jill Soloway, a criadora da série e argumentista de títulos de culto como Sete Palmos de Terra, considera que Transparent é mais do que um programa. É “parte de um movimento”. Tambor concorda que “a série teve um enorme impacto: "Comparo-a a uma seta que foi disparada para um zeitgeist já existente e que explodiu com o movimento em si, o que é muito bom porque o mundo precisa de mudança. Somos parte da mudança”. Responde ao PÚBLICO sobre os objectivos de Soloway, contar histórias sobre “fluidez de género, representação de género e transição de género”, e sublinha que o que Transparent faz é sobretudo gerar conversas. Páram-no em todo o lado, nos aeroportos ou no teatro, para falar não só do que é ser transgénero, mas também sobre famílias. “É uma altura emocionante”, diz sobre o papel pelo qual está tão grato porque o enriqueceu como pessoa – e sobre um momento que durará já desde 2012, ano em que o vice-presidente dos EUA, Joe Biden, considerou que os direitos transgénero são “o tema de direitos civis do nosso tempo”.
Olhando à volta, ou passando com o dedo no comando à distância ou nas teclas do computador, vê-se a história de Caitlyn Jenner, que o mundo conhecia como Bruce Jenner, atleta olímpico norte-americano e patriarca do clã da reality TV Kardashian, na série I am Cait (canal E!). O zapping pode levar-nos ainda à experiência da adolescente Jazz Jennings, cuja transição de menino para menina é acompanhada em I am Jazz (canal TLC). Nos últimos anos soubemos também que uma metade dos irmãos Wachowski de Matrix se identifica como a realizadora Lana Wachowski ou que a activista e denunciante militar Chelsea Manning já não queria ser conhecida como Bradley.
A popular série juvenil Glee acolheu a história da personagem Wade “Unique” Adams (FoxLife); no cinema, este é o ano para ver Eddie Redmayne como Einar, mas a descobrir-se como Lili, em A Rapariga Dinamarquesa, ou About Ray, em que Elle Fanning quer viver como o rapaz Ray. A BBC2 programou este ano Boy Meets Girl, uma série sobre transição de género no país que mais respeita os direitos de lésbicas, gays, bissexuais e transgénero e intersexuais segundo o ranking Rainbow Europe elaborado anualmente pela ILGA-Europa. (Portugal é, em 49 países, o décimo na lista relativa a 2014).
“Nas minhas conversas com as pessoas, no que leio, o tema da série está na boca de toda a gente e todos estão muito cientes da mudança não só na questão da liberdade e da fluidez de género”, explica Jeffrey Tambor. “Sempre achei que a comédia faz isso, que a interpretação, a palavra escrita… as histórias são muito importantes, curam, investigam”, defende sobre a representação mediática das questões de género e em particular da comunidade transgénero. Que, em Transparent, é servida ao público com um toque de ironia e com a ajuda de actores como Josh Charles ou de consultores como a escritora e activista Jennifer Finney Boylan, que contribuiu para a construção da personagem de Maura – a história, por seu turno, vem da experiência de Soloway com o pai, que fez a sua transição já depois da meia-idade.
“A comédia, para mim, tem zigues e zagues. Jill Soloway é uma mestra nisto. A comédia dela às vezes faz-nos rir em funerais e a chorar quando alguém passa o pão à mesa. A verdadeira comédia tem essa mistura, não é só uma quantidade de gargalhadas – é quantidade de movimentos”, reflecte Tambor sobre a sua família ficcional e sobre a sua própria educação. Evoca Tchékhov, diz seguir as “migalhas deixadas pela escrita brilhante” dos argumentistas e fala sobre Maura, retratada sem clichés, interpretada com humanidade. “É como uma amiga, é da minha idade, também usa óculos para ler, também tem artrite no joelho e tem um maravilhoso sentido de humor, muito seco. E também me parece uma adolescente que está a descobrir a vida – como se vestir, como fazer compras, quem são os seus amigos, com quem falar, como se maquilhar, como viver sozinha, se voltará a amar ou a ser amada. É interessante ser Maura hoje."
Em entrevista à Time em Abril de 2014, Laverne Cox, bela e exuberante, frisava então que “não há uma só história trans. O que é preciso perceber é que nem toda a gente que nasce sente que a sua identidade de género está alinhada com o que lhe é atribuído à nascença, com base nos seus genitais”. As pessoas “querem acreditar que a biologia e os genitais são como o destino!”, defende a actriz. Mas “há cada vez mais pessoas transgénero que querem avançar e dizer ‘Isto é o que sou’”.
Ainda assim, contesta-se, melhoradas que estão a diversidade e a qualidade das representações das pessoas transgénero na ficção, e neste caso na dominante produção anglo-saxónica, 2015 foi o ano em que o homicídio de pessoas transgénero atingiu um recorde histórico: 21 mortes até Novembro de 2015 nos EUA, nenhuma das quais julgada como crime de ódio, segundo a Human Rights Campaign.
É um tempo Transparent, em que são celebrados manequins transgénero na moda – Lea T é um dos rostos da marca de cosmética Redken e Andreja Pejic tornou-se em 2015 a primeira mulher transgénero na Vogue americana –, mas em que há também quem peça perspectiva. Visibilidade (ainda) não é tudo. “Tal como o racismo dificilmente acabou com a eleição de Obama, a transfobia não vai desaparecer em breve”, avisava no New Republic Eric Sasson, autor do livro sobre identidade gay Margins of Tolerance.