“Sabemos melhor do que o Estado quem realmente precisa e porque precisa”

Manuel de Lemos não teme o fim de alguns programas criados “numa fase de depressão profunda” do país. “O que me preocupa é o envelhecimento, os deficientes profundos, quem toma conta deles. Os cuidados continuados. Essas são as grandes questões. Não são as cantinas sociais.”

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Manuel de Lemos Nuno Ferreira Santos
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Manuel de Lemos Nuno Ferreira Santos

Com Passos Coelho no Governo, o chamado terceiro sector, de que as 397 misericórdias que existem no país fazem parte, ganhou protagonismo. E também novas responsabilidades que eram, até há pouco, um exclusivo da esfera do Estado — em alguns locais, as santas casas e outras instituições sociais passaram mesmo a gerir a atribuição de prestações como o Rendimento Social de Inserção (RSI). Manuel de Lemos, que voltou a ser reeleito, no início deste mês, presidente da União das Misericórdias Portuguesas, acredita que o Governo PS será dialogante. E acha que a transferência de competências iniciada no anterior Executivo deve continuar. “É evidente que algumas forças políticas, nomeadamente o PS, reagiram: 'Então estão a transferir competências do Estado para as instituições de solidariedade?' Bom, é verdade e há aqui um debate que é interessante. Para mim, não é preciso ser o Estado a fazer. O que é preciso é que seja o Estado a controlar.” Mas, nota, é preciso que “as duas partes estejam confortáveis” com esta ideia. Ou então não vale a pena avançar.

Em 2015 a despesa do Estado com acordos de cooperação com o chamado terceiro sector — que inclui as instituições particulares de solidariedade social, as mutualidades e as misericórdias, que asseguram o grosso das respostas sociais no país, como as creches e os lares de idosos —  chegou aos 1400 milhões de euros. O Estado nunca tinha gasto tanto.
Vamos ver: em 2011, os acordos de cooperação estavam em 1200 milhões de euros. Em 2015 passou para 1400 milhões. São 200 milhões que decorrem, essencialmente, de termos aberto muitas unidades, a esmagadora maioria das quais foram lançadas pelo Governo anterior, PS, nomeadamente no âmbito do Programa de Alargamento da Rede de Equipamentos Sociais e de outros programas. Ou seja, isso não correspondeu a um aumento [do financiamento do Estado] por pessoa.

Também correspondeu...
Sim, também correspondeu — o aumento por pessoa andou à volta dos 2% ou 2,5%, mas nos cuidados continuados, por exemplo, foi de 0% —, mas a grande massa desse aumento da despesa decorre da abertura de inúmeras unidades que estavam lançadas. Pode dizer: “Receberam muito mais agora!” Mas recebemos porque abrimos mais unidades.

Qual é a fatia dos 1400 milhões que cabe às misericórdias?
Não sei exactamente... deve ser à volta de 30% desse valor.

A actual secretária de Estado da Segurança Social, Cláudia Joaquim, escreveu um artigo em Fevereiro, intitulado “Protecção social, terceiro sector e equipamentos sociais: que modelo para Portugal?” onde levantava esta questão, entre muitas outras: “Podemo-nos questionar em que medida a despesa pública com a Acção Social, em particular a despesa com os acordos de cooperação, contribui para a diminuição do risco de pobreza, uma vez que assistimos a um aumento da despesa com esta área nos últimos anos, precisamente aqueles em que o risco de pobreza aumentou para todos os escalões etários.” Isto é uma dúvida sobre o impacto da verba gasta com os acordos de cooperação...
... uma dúvida séria.

O que lhe parece? Como responde?
Bom, a Dra. Cláudia Joaquim nessa altura não era secretária de Estado... e interroga-se. O que poderia dizer é que é uma boa pergunta mas a minha sensação é que se o Estado não tivesse gasto mais dinheiro [com acordos de cooperação] o risco de pobreza teria aumentado muito mais. Fomos a almofada social de que se tem falado. Qual é a alternativa a isto: é distribuir dinheiro às pessoas? É legítimo que nos interroguemos. Mas repare que eu lhe disse que o aumento da despesa com os protocolos tem sobretudo a ver com a abertura de novas unidades lançadas, a maioria no anterior Governo, que era socialista...

Houve um reforço do papel das instituições sociais, ao mesmo tempo que houve uma redução das prestações sociais de combate à pobreza, pagas directamente às famílias, como o RSI. O Dr. Manuel Lemos questiona: “Qual é a alternativa a isto? É distribuir dinheiro às pessoas?” O que é que acha: é mais eficaz tirar dinheiro em prestações sociais às pessoas e aumentar a despesa nos equipamentos sociais?
Não. Não é isso. Nós estivemos perante uma depressão profunda, muito grave, na sociedade portuguesa. Tivemos uma percentagem de desempregados que nunca tínhamos tido. Está a comparar  2011 com 2015 — são 200 milhões de euros a mais para o terceiro sector. É uma gota de água no que se tirou às pessoas. Uma gota de água.

Houve uma redução como nunca tínhamos tido no número de beneficiários de RSI...
Mas isso é muito mais do que 200 milhões de euros...

Coloco a questão de outro modo: é mais eficaz ter uma rede de cantinas sociais, como a criada pelo anterior Governo [em que o Estado paga ao terceiro sector por cada refeição dada aos pobres] do que ter subsídios de apoio directo, monetário, às famílias pobres?
Deixe-me dizer assim: quando constatámos que por força do aumento do desemprego havia gente a passar fome eu disse, e tornaria a dizer: “Enquanto houver uma misericórdia em Portugal, não...” E o Governo desenvolveu um programa de emergência para isso. E entendeu que a forma segura de fazer isso era propor às instituições: “Já têm as vossas cozinhas a funcionar, façam!” Estamos, se quiser, no limite entre as respostas sociais e o assistencialismo. É para uma situação de emergência. Ou seja, não é, acho eu, uma resposta social para manter. É uma resposta para acabar. Já falei com a secretária de Estado sobre essa matéria e disse-lhe que se o Governo entendesse fechar que contasse com a nossa colaboração, não nos vamos opor a nada disso.

Já tem alguma indicação sobre o que vai acontecer com a rede de cantinas?
Não. Os contratos terminam a 31 de Dezembro. Mas se o Governo dissesse assim: “Vamos dar 2 euros a cada pessoa” [o valor pago pelo Estado é de 2,50 euros por refeição] acha que isso resolvia o problema das pessoas?

Não sei. Mas sabe que essa tem sido uma questão.
O que me preocupa a mim é o envelhecimento, o abandono dos idosos, os deficientes profundos, quem toma conta deles e como. O que me preocupa são os sem-abrigo. São os cuidados continuados. Essas são as grandes questões sociais. Não são estas questões pontuais das cantinas sociais por muita importância que possam ter tido.

Vivemos hoje uma sociedade que está em profunda mutação. Dou-lhe o exemplo dos lares. Lembro-me que a minha mãe me dizia: “Quando me zangar convosco vou para um lar.” Hoje os lares são tudo menos lares, no sentido etimológico da palavra lar. Até a Segurança Social já não lhes chama lares, chama-lhes Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas... Os lares têm pessoas acamadas, são antecâmaras dos cuidados continuados, têm 30% de pessoas com demência, é tudo menos um sítio agradável onde se passar. O que é que vamos fazer a estas pessoas? Metemo-las nas famílias? E as famílias metem-nas nos hospitais e ficamos com o ministro da Saúde aos gritos. Isto é um puzzle onde, apesar de tudo, fazemos muito mais barato do que o Estado, mas muito mais barato.

Penso que já não há lares do Estado.
E sabe por que é que o Estado se viu livre deles? Porque era um balúrdio que gastavam e a qualidade era

Como é que o terceiro sector consegue fazer mais barato?
Primeiro porque tem uma gestão de proximidade (já o Estado está lá longe).

As carreiras dos funcionários dos equipamentos sociais também são menos exigentes...
Sim, carreiras diferentes. E temos umas benemerências de vez em quando.

O anterior ministro da Segurança Social Mota Soares dissevárias vezes ao longo da legislatura que havia um novo paradigma de relação do Estado com o terceiro sector....
... disse sobretudo nos últimos anos do mandato...

Que passava pela transferência de várias responsabilidades do Estado para as instituições sociais — e pretendia-se passar muito mais competências no futuro. Acha que o paradigma vai mudar agora que o Governo mudou?
Há um aspecto nesse novo paradigma do anterior Governo que elogio muitíssimo: ter havido muito mais diálogo com o sector solidário, o que foi expresso na criação da comissão permanente para o sector solidário. A circunstância de, mensalmente, nos podermos encontrar com os membros do Governo que interagiam connosco, correspondeu, de facto, a um novo paradigma. E eram conversas com a tutela, a Segurança Social, e outros ministérios também — tivemos sempre, nas reuniões, a Saúde, tivemos quase sempre a Educação, tivemos muitas vezes as Finanças. Não é que não houvesse relações regulares com o ministro anterior — e que é agora ministro da tutela de novo [José Vieira de Silva]. Mas não era algo estruturado: quando ele precisava, íamos falar com ele; quando nós precisávamos íamos falar com ele. Depois, houve outros aspectos.

Quais?
O Governo [liderado por Passo Coelho] foi muito sensível a algumas questões que pusemos. Por exemplo, quando constatámos que o desemprego estava a subir de forma brutal — vocês podem escrever sobre os números do desemprego, mas na casa das pessoas, falta a comida, os idosos ficam abandonados... — tentámos responder a essas pessoas. E isso veio dar, mais tarde, no último ano, à criação da famosa RLIS — a Rede Local de Inserção Social no âmbito da qual o Estado fez uma experiência-piloto com o sector solidário no sentido de transferir algumas competências dos centros distritais de Segurança Social para as instituições sociais. E aceitámos isso de bom grado.

Essas experiências-piloto passavam, por exemplo, por ter instituições como as misericórdias a gerir prestações sociais, como o RSI, a ter autonomia para decidir quem tem direito à prestação e que não tem... ou seja, as instituições sociais, como as misericórdias, passarem a fazer o que até agora competia à Segurança Social fazer.
Sim. Numa primeira fase houve 21 experiências-piloto, de Norte a Sul. As misericórdias estiveram em 10. Por que é que aceitámos? Porque temos mais gente no terreno e porque estamos mais próximo das pessoas. No interior do distrito de Vila Real é muito mais fácil a uma pessoa ir à misericórdia da terra, do que ir a Vila Real ou a Chaves às delegações da Segurança Social. E nós procuramos mais as pessoas. Sabemos melhor do que o Estado quem é que realmente precisa e por que é que precisa. Às vezes, entre duas situações aparentemente iguais em termos de rendimento, a situação pode ser completamente diferente, ou porque a pessoa é incapaz de gerir, ou porque a família faz extorsão às pessoas... Achámos que estávamos mais bem colocados.

É evidente que algumas forças políticas, nomeadamente o PS, reagiram: ‘Estão estão a transferir competências do Estado para as instituições de solidariedade?’ Bom, é verdade e há aqui um debate que é interessante. Para mim, não é preciso ser o Estado a fazer. O que é preciso é que seja o Estado a controlar.

Como correu nesses 21 locais?
Houve uma avaliação do trabalho muito favorável feita pelos utentes e julgo que pelo Estado. Até porque o Estado entendeu lançar depois um programa para 120 territórios. Fez-se um concurso. E nos territórios em que houve um só concorrente fez-se a adjudicação e já arrancou. Nos sítios em que houve mais do que um concorrente, e houve contestação, está em fase de avaliação.

Mas essa passagem de competências não é nada pacífica...
Reconheço que pode merecer aqui e ali dúvidas e, por isso, fui muito favorável à experiência-piloto.

Qual é o limite?
Isso já é dar um salto político..

Pois é. A actual secretária de Estado da Segurança Social, no tal artigo de Fevereiro de que falei, questionava: “Onde deve parar a intervenção do terceiro sector?”
Eu acho que o Estado deve ir até onde puder controlar. Se houver algum risco de o Estado não conseguir controlar — por exemplo, porque não tem meios — não deve transferir.

Posto isto, o que é que espera deste Governo?
Eu aderi a 100% às declarações que o senhor ministro da Solidariedade e Segurança Social [Vieira da Silva] fez na minha tomada de posse [a 5 de Dezembro em Fátima]. Ele falou da estabilidade, da confiança e da coerência.

Eu não tenho medo do paradigma do diálogo e sei também que o senhor ministro vai aprofundá-lo. Eu conheço-o e conheço a senhora secretária de Estado. Agora, há um momento em que a responsabilidade é deles. O limite da responsabilidade do Estado é definido por cada Governo.  Eu, na minha tomada de posse, lembrei um provedor, que é uma pessoa muito conhecida, que diz: “Nós fazemos, fazemos bem e fazemos mais barato.”

Por isso, espera que o Governo não interrompa o processo de transferência de competências da Segurança Social para as tais 100 e tal instituições sociais que se candidataram a assumi-las?
Não sei se vai ser interrompido ou não. Acho bem que seja avaliado. Na minha opinião, deve ser experimentado numa lógica de rigor, de clareza, de transparência e que as duas partes estejam confortáveis. Eu não quero ter como interlocutor um Governo que não está confortável comigo. Se não está confortável a relação está inquinada.

Mas já tem algum sinal sobre o que o Governo vai fazer?
Não tenho.

Hospitais: entregá-los às misericórdias foi ideia do PS

O anterior Governo anunciou a devolução de hospitais que tinham sido nacionalizados no pós 25 de Abril às misericórdias. Como está esse processo?
Deixe-me contar-lhe o seguinte: as misericórdias foram abrindo ao longo dos anos hospitais, depois de 1974, que nunca foram nacionalizados. Nos sucessivos governos o Estado foi fazendo acordos connosco [para prestação de serviços de saúde]. Quando chegámos a 2011 alguns acordos eram uma soma de acordos em cima de acordos e aquilo, de facto, estava uma pastelada e o Governo propôs-nos, e agente aderiu, limpar o que estava para trás e fazermos uns acordos correctos. Fizemos. O grande obreiro disso chama-se Manuel Pizarro, que hoje é vice-presidente da câmara do Porto, e que era secretário de Estado da Saúde da ministra Dra Ana Jorge [Governo liderado por José Sócrates]. É dos homens que mais sabem disto, é justo prestar-lhe essa homenagem.

Ora o secretário de Estado Manuel Pizarro e o secretário de Estado Óscar Gaspar pediram-me em 2011 para eu ir lá ao ministério, porque estavam muito entusiasmados com o facto de os novos acordos com as misericórdias estarem a dar muitos bons resultados, com o Estado a gastar menos dinheiro... e perguntaram-me se não queríamos receber alguns hospitais dos que tinham sido nacionalizados, que são das misericórdias, a quem Estado paga renda todos os meses, desde 1975, e que nos últimos anos têm sido desnatados — e de cada vez que fecha uma urgência vem a população, corta a estrada, vem o autarca, reclama. Eles, com esse problema, perguntaram-nos então se não queríamos ficar com alguns.

Ainda Governo PS, portanto...
Sim. Pensou-se em três hospitais para fazer a experiência, que eram: Fafe, Cantanhede e Serpa. Perante esse desafio — não foi uma iniciativa minha, repare — eu disse que sim. Com condições: primeiro, a respectiva misericórdia concordar; segundo, que isso não se traduzisse em diminuição dos serviços prestados à população; terceiro, que não pusesse em causa a sustentabilidade da misericórdia que vai receber o hospital e, finalmente, que os trabalhadores se sintam confortáveis.

Mas o Governo de Sócrates caiu. E um dia, estava eu no estrangeiro, e começaram a ligar-me provedores das santas casas porque o senhor primeiro-ministro [Passos Coelho] tinha dito que ia devolver até 15 hospitais às misericórdias — em boa verdade o Estado tem lá 30...

30 hospitais de misericórdias que foram nacionalizados?
Sim. O maior chama-se Hospital de Santo António do Porto. Eu acho que ninguém sabia que eram tantos. Mas continuando: o desafio inicial tinha sido então Fafe, Cantanhede e Serpa. Quando o ministro da Saúde Paulo Macedo me chamou ao ministério propôs-me três: Fafe, Anadia e Serpa.

Fui então falar com os provedores. E iniciámos um processo muito longo de preparação da devolução. Tinha de ser um processo longo, porque se não corresse bem quem sofria era a população. Fez-se tudo com grande clareza. Em 2013, o Governo fez uma legislação sobre essa matéria, um diploma enquadrador. E no dia 1 de Janeiro de 2015 transferiram-se os três hospitais para as misericórdias. Nesse diploma estava estabelecido que para nós fazermos o mesmo que o Estado fazia, pagavam-nos menos 25%. Vamos supor que um hospital gastava 10 milhões de euros. O Estado, para fazermos o mesmo, só nos dava 7 milhões e meio. O que é que o Estado ganhou com isso? Acabou o défice nesses hospitais.

E como é que conseguem fazer 25% mais barato?
Aumentámos os serviços até...

Mas vão acabar este ano como...
Sem devermos nada a ninguém. E já fizemos obras nos três hospitais...

Mas por exemplo: uma operação às cataratas. Vocês fazem 25% mais barato do que o Estado, é isso?
Não posso dizer isso assim. Não seria correcto. Não é o dinheiro por operação às cataratas, porque há todas as outras despesas de funcionamento... Aquilo com que nos comprometemos é com “pacotes”. Por exemplo, fazemos mil operações às cataratas por “x”. No final gastamos menos dinheiro por cirurgia, claro, e por consulta, porque ninguém entra directamente para a cirurgia, e exames, e isso tudo.

Quem contesta esta transferência dos hospitais diz que o Estado está a promover um negócio para a misericórdias.
Não é negócio nenhum! Há uma grande confusão. Com menos 25% fazemos o mesmo número de cirurgias, de consultas e conseguimos ter resultados positivos e depois tudo é reinvestido na instituição, não é para ir comprar iates. Eu não tenho nada que o sector privado compre iates. Mas nós não somos privados. Tudo é para fazer obras, para comprar equipamento melhor. Para o Estado o que interessa é que gastava 10 milhões e passou a gastar 7,5. E se não fizermos tudo o que nos comprometemos a fazer paga menos.

Foram então transferidos três hospitais. E era suposto que ainda em 2015 se somassem a esses mais três...
... e em 2016 mais três. Em boa verdade, só fizemos o trabalho, em 2015, para mais dois hospitais: São João da Madeira e Santo Tirso.

Que era suposto serem transferidos agora em Janeiro de 2016, mas já não vão ser. O novo Governo mandou para o Tribunal de Contas (TC) esses processos. Como vê isso?
A minha opinião é que não era preciso mandar para o TC. Mas o Governo entendeu mandar, nada contra. Estas pessoas não estão neste processo desde o início, por isso é natural que haja algumas coisas que lhes fazem confusão. Não me faz impressão nenhuma.

Em Santo Tirso, a câmara emitiu um comunicado na semana passada, congratulou-se com a suspensão do processo. E escreveu: “Para a câmara é essencial que o Hospital de Santo Tirso se mantenha no Serviço Nacional de Saúde...”
Mas os hospitais estão todos no SNS. Faz parte da devolução estarem todos no SNS. Essa é outra confusão.

Ou seja, as pessoas pagam o mesmo que num hospital público, qualquer pessoa pode ir, é isso?
... nos mesmíssimos termos dos outros hospitais.

Por que é que se põe a coisa nestes termos?
Também gostava de perceber. Pode ser um pressuposto ideológico: “É ao Estado que compete prestar os serviços, para além de ser pagador, deve ser prestador.” Bom, eu respeito. Mas eu estava aqui sossegado quando me pediram para lá ir.

Há aqui um teatro político: a ideia de que o Governo de Passos era muito liberal, de que nós concordámos com isso, que foi para fazer um negócio, que movemos muitas influências, que eu sou próximo de não sei quem... nada disso. Se este Governo disser assim: “Vocês agora ficam com 3+2, cinco, vamos estabilizar algum tempo, vamos outra vez avaliar”, cá estou eu.

Como está a rede de cuidados continuados? Havia muitas unidades construídas com o apoio de fundos comunitários que não abriam por não haver acordo com o Estado. Ainda é assim?

Algumas ainda não abriram. Estamos a falar de umas 80 a 100 camas por abrir. Esse problema é gravíssimo. Olhe, é mais sério do que isto tudo que estivemos a falar até agora. Temos os lares de idosos cheios de pessoas que deviam estar nos cuidados continuados. O programa de cuidados continuados foi uma grande ideia do professor Correia de Campos, que nós defendemos — aliás, aí sim, dissemos que queríamos, ao contrário do que se passou com os hospitais.

Quantas vagas existem?
Seis mil. Na altura, o senhor ministro da Saúde contratou uma empresa espanhola para fazer um estudo de quantas camas seriam necessárias. E essa empresa, utilizando rácios conservadores, chegou à conclusão que em 2016 tínhamos de ter, no mínimo, 15 mil camas.

Temos menos de metade?
Menos de metade. O Governo que agora acabou parou o esforço com a rede e faltam muitas camas de cuidados continuados. Não fui eu que fiz o estudo.

E mesmo assim há unidades das misericórdias, já construídas, que estão fechadas.
Exacto. Só é preciso que o Ministério da Saúde marque o dia para a assinatura doos protocolos [que permitem o financiamento dos utentes]. Nalguns casos até já há autorização do Ministério das Finanças. Mas mesmo assim não abrem. Acha possível?

Ao fim de quatro anos de crise, a saúde financeira das misericórdias está melhor ou pior?

Está muito pior. Apesar da boa gestão, gastaram mais do que receberam. A crise também bateu à porta das misericórdias.

Há misericórdias em dificuldade?
Há.

Então e aquele fundo especial que o anterior Governo criou para dar empréstimos a instituições em apuros — o Fundo de Reestruturação do Sector Solidário?
Serviu para alguma coisa, mas para pouca coisa. Primeiro: as regras são muito violentas. Segundo: há muitos provedores das santas casas que têm pudor de confessar a situação difícil em que estão. E parece que nas IPSS é muito pior.

Em 2015 todas comparticipações financeiras da Segurança Social foram actualizadas, pelo menos, em 1,1%. Qual é a expectativa para 2016? As conversações já começaram?
Não. É normal, só lá para Fevereiro ou Março. É preciso ver o que é que o Governo vai propor no orçamento.

O anterior Governo anunciou a transferência de 40 equipamentos sociais do Estado para o terceiro sector? Quantos foram? O que é que coube às misericórdias?
Tanto quanto sei quase todas as instituições — sobretudo lares e jardins de infância — previstas foram entregues. As misericórdias ficaram essencialmente com lares e creches. No fundo, as coisas passam-se assim: a propriedade continua a ser do Estado, mas este entrega a gestão à misericórdia que começa a ser financiada normalmente.

Fundos comunitários: há muito dinheiro disponível para o qual o terceiro sector pode concorrer com projectos. Pode ser um novo fôlego?
Os fundos foram muito importantes. O POPH foi muitíssimo importante. Agora o Portugal 2020 está muito atrasado, não abriu nada — abriu para a tal RLIS, que é financiada com verbas comunitárias. Mas para os programas de formação dos nossos funcionários, por exemplo, geralmente pagos pelo Fundo Social Europeu, nem sequer essas candidaturas abriram.

A formação é um aspecto essencial. Vou-lhe dar um exemplo dos doentes de Alzheimer. Se colocar um idoso com Alzheimer num chuveiro ele desata aos gritos. Porque para ele é a mesma coisa que para si eu lhe atirar esta garrafa de água à cara. Não se pode dar banho a um doente de Alzheimer da mesma maneira, e isso tem de ser ensinado. Temos um programa, chamado Vidas, em que ensinámos funcionários de 28 misericórdias (era para quanto havia dinheiro) a lidar com pessoas com Alzheimer, levamo-los a Fátima, onde existe a única unidade construída de raiz para doentes de Alzheimer — e que está cheia —, para aprenderem. Outra coisa importante seria adaptar as instalações dos lares que existem aos doentes de Alzheimer. Também aí as verbas comunitárias podem ser importantes. Mas vamos ver.

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