Cultura: até que ponto mudar significa… mudar mesmo

Sabemos bem, todos os que andamos nisto há mais tempo, que a prática comum, e aliás crescentemente degradada, tem sido a de na instalação de cada novo Governo os respectivos titulares da Cultura (o último dos ministérios…) recorrerem às agendas pessoais e redes de influência para o preenchimento de lugares de controlo do aparelho do Estado (cada vez mais amestrado, por desqualificação dos seus agentes, nos quais se instalou o temor das próprias sombras), saldando-se tudo numa doce cumplicidade de quem se ajuda agora para ser ajudado depois. No final, ficam todos amigos e distribuem-se mutuamente louvores, a torto e direito (no que em regime republicano se imita o uso monárquico de até ao cão fazer conde ou barão), como diligentemente fez o secretário de Estado cessante há dias, quando de uma só penada fez publicar na folha oficial (que mais valera voltar a chamar de Diário do Governo, em desagravo da República) 27-louvores-27, dirigidos aos finados membros do seu gabinete.

Poderia não ser assim e resta a esperança que agora assim não seja agora, até porque finalmente foram envolvidos na esfera da governação cerca de 20% dos votantes, daqueles que nunca receberam louvores, nem provavelmente lhes sentem a falta. Para que se mude, e mude mesmo, é todavia vital dar sinais inequívocos de vontade de mudança. Dito de outra forma e sendo directo: para fazer da Cultura mais do que mera flor na lapela, ainda que agora em jaqueta ministerial, importa colocar audaciosamente em prática um plano coerente de refinanciamento, certamente escalonado no tempo de toda uma legislatura ou até mais, e importa também, mais ainda porventura, promover a redemocratização do Estado e do Governo nesta área – e isto pode e deve ser feito imediatamente.

Quanto ao financiamento, o horizonte de médio prazo deverá ser o do tão falado, e quase mítico, valor de 1% do PIB para a Cultura. A evolução dos últimos anos tem sido catastrófica, como é sabido. Em vez de subir, ainda que paulatinamente, temos descido a estamos hoje dez vezes (!) abaixo de tal objectivo, ou seja, abaixo de 0,1% do PIB para a Cultura. E não nos digam que se trata de efeitos da crise, porque não somos parvos e sabemos bem que tal decorre apenas de opção política. Basta atentar nos gastos em Educação e Cultura, para verificarmos como em relação à primeira Portugal cumpre esforçadamente a sua obrigação, situando-se num apesar de tudo honroso 8º lugar percentual em relação ao PIB, em 25 países europeus, enquanto em relação à segunda encontra-se quase no fim da tabela, num vergonhoso 21º lugar. Exigir mais financiamento para Cultura não é, pois, pedir a Lua. Trata-se somente de reclamar respeito por nós próprios, enquanto comunidade nacional.

Mas nem tudo na área governativa da Cultura se resume a dinheiro – antes pelo contrário e ainda bem, para quem continua a acreditar no primado da política e da cidadania, como aliás tivemos ensejo de expressar nas “ideias para futuro” que há meses aqui deixámos registadas (Publico, 9.3.2015). Em casa pequena, num país pequeno, com elites pequenas capazes de caber quase todas nos espaços de uns quantos bares e cafés, sobretudo as que mais dependem ou se deixam deslumbrar pelo Poder, o desafio principal será o de repudiar resolutamente as práticas baseadas em “agendas de amigos” e reintroduzir mecanismos democráticos, quer ao nível da participação cidadã, quer ao nível da organização interna. Adicionalmente, se não for pedir demais, seria também recomendável regressar aos bons hábitos de não deitar o programa de Governo às urtigas, na primeira curva da estrada.

Falamos de cidadania, antes de tudo. Pois aqui e para além da abertura ao diálogo, que sempre se recomenda, mas pode não passar de conversa fiada, a pedra de toque dos próximos meses será a de verificarmos até que ponto existe vontade em rever, nalguns aspectos de alto a baixo, a composição e funções do Conselho Nacional de Cultura, que no essencial se mantem a que herdámos da fase em que vimos um secretário de Estado do Governo de Sócrates merecer depois suficiente confiança política para ser nomeado Director-Geral do Governo de Coelho. Algumas das secções deste órgão de auscultação da chamada “sociedade civil” chegam a ser caricaturais e ofensivas da inteligência, como acontece com o sector do Património Arqueológico e Arquitectónico, de onde as organizações não-governamentais foram excluídas, ou reduzidas a vestígios, dando origem a composições tais que os governantes de turno se aconselham maioritariamente com funcionários subalternos e “personalidades” por eles mesmos nomeadas.

Falamos depois de organização interna. Ora, aqui seria em primeiro lugar desejável assumir ao mais alto nível a existência dentro da Cultura de duas grandes áreas, a do Património Cultural e a das Artes Vivas. Ambas deveriam constituir secretarias de Estado – e lamenta-se saber que esta oportunidade foi já perdida. Em seguida, deveria reconsiderar-se o estatuto administrativo dos organismos de tutela dos diferentes sectores, retomando talvez a configuração de Instituto público lá onde se evoluiu para Direcção-Geral  – isto no pressuposto de ganhos relevantes em matéria de autonomia e agilidade administrativa. A Direcção-Geral do Património Cultural, em especial, verdadeiro monstro administrativo ingovernável, deveria ser objecto de profunda reformulação, tanto ao nível dos serviços centrais, como dos chamados “serviços dependentes”, aos quais deveria em alguns casos ser de novo conferida a autonomia de outrora, que perderam no âmbito da sanha centralista iniciada nos governos de José Sócrates e diligentemente continuada nos de Passos Coelho.

Esta última referência encontra expresso acolhimento nos compromissos eleitorais do PS, convertidos em Programa de Governo. Aí se fala na maior autonomia de alguns serviços da Cultura, como sejam os chamados “equipamento bandeira” – como deveriam ser todas as instituições de estatuto nacional, teatros, museus, arquivos. E várias outras medidas merecem também aplauso: cartão cidadão +Cultura, Arquivo Sonoro Nacional, gratuitidade de acesso aos museus e monumentos nacionais para jovens até aos 30 anos, durante os fins de semana e feriados, revitalização das redes de equipamentos culturais, nomeadamente da Rede Portuguesa de Museus , etc. Estaremos, pois, atentos à sua concretização, mas sempre conscientes de que nenhuma árvore, por mais vistosa que seja, substitui a floresta – e é de reflorestação coerente que estrategicamente precisamos na Cultura.

 

Membro da direcção do ICOM Europa e Vice-Presidente da Associação dos Arqueólogos Portugueses.

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