Ainda somos Paris, e não viveremos no medo
"Custa-me – dói-me – pensar nas dezenas de pessoas que foram a um concerto com amigos numa sexta à noite e que não vão voltar para casa porque o ódio – o único e verdadeiro culpado de tudo isto – decidiu que assim seria", escreve a portuguesa Ana Leorne, a viver em Paris.
Se há algo que sempre me fascinou em Paris, cidade que me adoptou como "sua" há mais de um ano, foi o espírito de festa e celebração que vive no coração de cada parisiense. Dizia-me uma amiga luso-descendente no outro dia, parisiense de nascimento, que os franceses gostam de festas, de bailes, de celebrar a vida e tudo o que há de bom nela; mesmo durante a ocupação nazi, os bailes não pararam, a música não sossegou, e em bom espírito de gaïté, mesmo em opressão, sempre se festejou a vida, a arte, e o amor.<_o3a_p>
Os ataques da noite passada foram um balde de água fria, as luzes que se acendem, a música que cessa; no centro nevrálgico desta violação, o Bataclan, uma das muitas salas de concertos de Paris onde os Eagles of Death Metal tocavam para uma multidão que tinha vindo celebrar esse mesmo espírito tão parisiense – porque a música, com o seu poder empático e linguagem mais do que universal, tem o condão de unir massas como se de um fio de teia de aranha, fortíssimo e invisível, se tratasse.
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Na tentativa de vergar todo um povo à força do medo, vários focos de tiroteio e de explosão; em resultado, imagens dispersas que vieram em catadupa à memória dos parisienses – Janeiro de 2015, Outubro de 1995, Junho de 1940 –, todas elas de tristeza e revolta, entrando como facas num coração já vazio, adormecido e desorientado pela surpresa.
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E, de repente, as ruas sossegam. Este silêncio doloroso, numa sexta-feira à noite, principalmente em redor de áreas como as zonas de Pigalle ou Blanche, vem acompanhado de um gosto amargo, impossível de tirar da boca nem com o mais forte dos conhaques. Imagino que todo e cada bairro de Paris, fora os focos dos tiroteios, tenha sentido esta súbita corrente gelada, invisível como aqueles mantos de peste e morte que se vê nos filmes.
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Custa-me – dói-me – pensar nas dezenas de pessoas que foram a um concerto com amigos numa sexta à noite e que não vão voltar para casa porque o ódio – o único e verdadeiro culpado de tudo isto – decidiu que assim seria.
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Tristeza, desespero, incredulidade – chega tudo ao mesmo tempo a cada um de nós, parisienses ou não, e entramos momentaneamente em estado de catatonia, incapazes de reagir quando os inúmeros amigos que estão longe nos perguntam se estamos bem. Sim, estou viva, mas há aqui um buraco no meu coração que não sei como fazer parar de sangrar. Ainda não percebi, mas também ainda não consegui formular os porquês.
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Eram cerca das três da manhã quando fechei as portadas; abri a janela e olhei para Sudoeste, e no meio da neblina apercebi-me da luz no topo da Torre Eiffel. Ainda estamos aqui. Ainda somos Paris. Não viveremos no medo. Escutem a Marselhesa, e lembrem-se que os primeiros acordes darão sempre a entrada para o All You Need Is Love.
Ana Leorne, doutoranda na EHESS de Paris e editora assistente da revista online The 405
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