O caso do quartel onde ia tudo a votos
Durante vários dias, em Outubro de 1975, a sede do Regimento de Artilharia da Serra do Pilar (RASP), em V. N. de Gaia, foi ocupada por soldados de várias unidades e esteve nas mãos de uma Comissão de Luta que aboliu a hierarquia e impôs a democracia directa na vida do quartel.
O conflito que os portuenses recordam como “o caso CICAP/RASP” é mais um desses episódios do PREC em que só a sensatez de alguns dos envolvidos evitou, com bastante sorte à mistura, um desfecho que poderia ter sido trágico.
O quartel do Regimento de Artilharia da Serra do Pilar (RASP), em Vila Nova de Gaia, estrategicamente situado numa elevação da margem esquerda do Douro, a controlar o Porto — não por acaso, teve importância decisiva nas invasões francesas e nas lutas liberais —, foi ocupado na noite de 6 para 7 de Outubro de 1975 por militares de várias unidades. Protestavam contra o encerramento de um outro quartel, o Centro de Instrução e Condução Auto do Porto (CICAP), que o então recém-nomeado comandante da Região Militar do Norte, Pires Veloso, decidira extinguir, punindo actos de “insubordinação colectiva”. No final, não houve mortes a lamentar, mas as várias escaramuças que marcaram o processo provocaram largas dezenas de feridos.
Apoiada pelos Soldados Unidos Vencerão! (SUV), pelas várias forças de esquerda então reunidas na Frente de Unidade Revolucionária (FUR) — a LCI, o MES, o PRP-BR, a LUAR, a FSP e o MDP/CDE —, por algumas organizações da extrema-esquerda marxista-leninista, como a FEC-ML ou a UDP, e ainda pelo Partido Comunista Português, a luta do RASP só terminou a 14 de Outubro, quando o então chefe do Estado-Maior do Exército, o general Carlos Fabião, foi ao Porto oferecer uma solução de compromisso para resolver uma situação que se ia mantendo num impasse perigoso: os militares insubmissos não cediam e Pires Veloso não se arriscava a tomar o quartel pela força das armas.
Num Outono de 1975 já de si particularmente agitado no Porto, essa semana que vai de 6 de Outubro, uma segunda-feira, à sexta-feira seguinte, dia 10, foi a mais explosiva de todas. Logo no dia 6, uma manifestação convocada pelos SUV em protesto contra o encerramento do CICAP — cuja sede, mais tarde ocupada pela Reitoria da Universidade do Porto, ficava na Rua D. Manuel II, sensivelmente em frente ao Museu Nacional Soares dos Reis — foi repelida com gases lacrimogéneos e rajadas de intimidação, disparadas pelas forças de segurança que Pires Veloso pusera de guarda ao quartel. Nessa mesma noite, os militares do CICAP e de outras unidades ocuparam o RASP, onde foi eleita uma Comissão de Luta que assumiu os destinos do quartel: a hierarquia foi abolida, ainda que o comandante se tenha mantido formalmente no cargo, as limpezas e outras tarefas foram distribuídas por todos, sem olhar a patentes, e viveu-se durante uma semana numa espécie de plenário permanente. Como veremos adiante, até uma mulher pernoitou no quartel, situação possivelmente sem precedentes num edifício que os militares herdaram dos frades agostinhos.
No dia 8, uma manifestação do PPD envolveu-se em confronto com os milhares de civis que apoiavam os soldados e que se mantinham, dia e noite, junto ao quartel de Gaia, numa batalha campal que provocou perto de uma centena de feridos. Já na madrugada de dia 9, forças do Copcon, da Polícia Militar (PM) e do Regimento de Cavalaria do Porto, enviadas para o local por Pires Veloso, presumivelmente para restabelecer a ordem, acabaram a trocar tiros com os militares aquartelados no RASP. Quem abriu fogo primeiro é questão ainda por dirimir, mas não há dúvida de que soldados dispararam contra soldados, e a acreditar na imprensa da época o tiroteio terá ainda incluído civis armados com G-3.
Finalmente, no dia 10, enquanto várias manifestações de apoio à luta do RASP, convocadas por diferentes forças de esquerda, convergiam para o quartel de Gaia, foram assaltadas no centro do Porto as sedes da UDP e da FEC-ML. Mais uma vez, os hospitais próximos receberam dezenas de feridos, alguns deles atingidos a tiro.
A Revista 2 falou com quatro elementos que integraram a Comissão de Luta do RASP, e ainda com Daniel Pereira Gomes, que era então um dos muitos soldados da unidade, e dos seus diferentes testemunhos emerge um retrato desses dias que vem acrescentar alguns detalhes e nuances significativos ao relato dos jornais da época e à leitura que tem sido feita deste episódio. O jornal O Primeiro de Janeiro, por exemplo, titulava na sua edição de 8 de Outubro: “Ocupação do RASP pelos SUV”. Em parte é verdade, mas não é a história toda. Houve orientação política, claro, mas também uma boa dose de espontaneidade e acaso.
Quem ouviu falar, por exemplo, da participação neste episódio do aspirante António Teixeira Marques, que viria a tornar-se professor da Faculdade de Ciências do Desporto e foi vice-reitor da Universidade do Porto? No entanto, terá sido este oficial, sem qualquer ligação partidária, quem se dirigiu aos militares afastados do CICAP, que então se manifestavam junto àquele quartel, e os convidou a ir para o RASP e ali prosseguirem a sua luta. Reunidos em assembleia geral, os soldados do RASP tinham aprovado a decisão de acolher os camaradas do CICAP, e este oficial, acompanhado de alguns companheiros, foi destacado para lhes levar o convite. Quem o conta é José Ferreira Fernandes, jornalista e cronista do Diário de Notícias, que então integrava a LCI e foi o principal organizador dos SUV. Quando confrontamos António Marques com esta questão, o então aspirante reconhece: “Agora que me refresca a memória, acho que as coisas se passaram de facto assim.” A decisão de ocupar o RASP não terá sido portanto premeditada pelos SUV, embora estes dirigissem depois em boa medida a luta no quartel, através de Ferreira Fernandes e do seu camarada da LCI, Manuel Resende, que veio a ser jornalista do Jornal de Notícias e mais tarde tradutor no Conselho Europeu, além de ser autor de alguns livros de poemas e de diversas traduções literárias, uns e outras deveras recomendáveis.
Também o fotógrafo e jornalista José Rocha, que fez parte da equipa inicial do PÚBLICO, estava então no RASP, cuja Comissão de Luta integrou, e lembra-se bem deste “aspirante Marques”, a quem elogia a sensatez, que terá sido decisiva em momentos difíceis, como o do confronto com os manifestantes do PPD. “Era um tipo impecável, muito tranquilo e que não estava politicamente ligado a ninguém”, diz-nos José Rocha. Já ele próprio pertencia aos Comités de Soldados e Marinheiros Vermelhos, a estrutura que a OCMLP, promotora da FEC-ML, mantinha na tropa. Mas garante que nenhum dos seus contactos na organização o abordou nesses dias da ocupação do RASP: “Estive ali sem controle nenhum, por minha conta e risco.”
Os SUV na rotunda
Para se perceber o episódio do RASP, é preciso ter em conta as complexidades da situação política e militar naqueles meses de Setembro e Outubro de 1975. Tendo reforçado amplamente a sua influência no aparelho de Estado após a intentona spinolista de 11 de Março, o PCP vinha por esta altura perdendo rapidamente posições no sector militar, com os moderados do Grupo dos Nove a levarem a melhor sobre a linha gonçalvista, e foi neste contexto que, a 12 de Setembro, Eurico Corvacho, considerado próximo de Vasco Gonçalves, acabou por ser substituído no comando da RMN pelo brigadeiro Pires Veloso.
Enquanto prosseguiam as negociações para a formação do governo de Pinheiro de Azevedo, que integraria ainda um ministro do PCP, Veiga de Oliveira, a quem foi dada a pasta do Equipamento Social, a extrema-esquerda reunida na FUR radicalizou a luta revolucionária, com o PCP a ajudar à mobilização, mas sem se comprometer demasiado. Ao mesmo tempo, acentuava-se a violência anticomunista de extrema-direita, sobretudo no Norte do país, com assaltos a sedes de partidos de esquerda e uma sucessão de atentados bombistas.
Foi neste quadro que surgiram os SUV, cujo nome se deve a Manuel Resende. Envolvendo gente da LCI e de vários outros partidos, fizeram a sua primeira conferência de imprensa ainda antes da destituição de Corvacho, no dia 6 de Setembro, no Porto. Apareceram com capuzes na cabeça, por razões de segurança, e o encontro, precisa Ferreira Fernandes, teve lugar “na Rotunda da Boavista, por cima de uma farmácia”, muito provavelmente o prédio da Farmácia Correia, que ainda hoje existe e faz esquina com a Rua de N. Sra. de Fátima.
Os SUV convocaram então uma manifestação para 10 de Setembro, no centro do Porto, distribuindo um panfleto em que apelavam aos soldados para comparecerem fardados. As palavras de ordem propostas cruzavam reivindicações mais laborais — “Abaixo o pré de miséria!” ou “Transportes gratuitos, já! — com slogans mais políticos — “Reaccionários fora dos quartéis”, “Morte ao ELP e a quem o apoiar”, “Portugal não será o Chile da Europa”. Tanto Ferreira Fernandes como Manuel Resende contam que não tinham grandes expectativas e que ficaram completamente surpreendidos quando apareceram uns 200 soldados fardados na manifestação. “Tínhamos a ideia de criar uns sindicatos ou conselhos de soldados, mas não estávamos à espera de nada, e aquilo foi fantástico”, diz Resende. Nada que se compare, ainda assim, ao que viria a ser a grande manifestação que os SUV organizarão no Porto a 6 de Outubro para apoiar a luta dos soldados do CICAP e que terá levado à rua mais de 50 mil manifestantes.
Mas antes disso, cerca de uma semana após a sua primeira aparição pública no Porto, os SUV promoveram ainda uma segunda conferência de imprensa, desta vez em Lisboa. Discutiram o que iriam dizer na sede da FSP, a organização fundada por Manuel Serra quando deixou o PS, mas a própria sessão decorreu depois em casa de um dirigente do MES em Alfragide. A revelação dos lugares deve-se uma vez mais a Ferreira Fernandes, o único elemento dos SUV que, segundo ele próprio adianta, esteve em ambas as conferências de imprensa.
Apesar de o movimento se apresentar como uma organização clandestina, o jornalista diz que “toda a gente sabia” da sua ligação aos SUV, e conta a esse respeito um episódio divertido: “No dia seguinte ao da conferência de imprensa em Lisboa, que foi transmitida na rádio, a mulher do Corvacho disse-me: ‘Gostei tanto de o ouvir ontem, José Fernandes’.”
Se os promotores originais dos SUV rapidamente perceberam que o PCP se apossara do movimento e tinha tomado a sua direcção no Sul e Centro do país — “as manifestações de Coimbra e Évora são já exclusivas do PCP”, diz Ferreira Fernandes —, a situação no Porto era diferente. O partido tinha elementos na Comissão de Luta do RASP — “nós chamávamos-lhes camaradas e eles chamavam-nos amigos”, lembra Manuel Resende —, mas não controlava o movimento. E enquanto durou a ocupação, nas reuniões que Ferreira Fernandes mantinha diariamente à porta do quartel com delegados das várias forças políticas que apoiavam o RASP, o PCP estava igualmente representado. Assim como o PRP-BR, cujo representante era o mais lacónico. “Só queria saber se tínhamos tomado o paiol, e quando eu lhe dizia que não, abandonava a reunião”, conta o jornalista.
"Íamos fazer asneira”
O antecedente directo do “caso CICAP/RASP” foi a decisão de Pires Veloso de transferir para o Quartel-General dois oficiais do CICAP e de dar também a cinco soldados ordem de marcha para outras unidades. Os oficiais em causa eram dois advogados de esquerda bastante conhecidos na cidade, José Afonso e Luciano Vilhena Pereira, que viria a ser vice-governador do Porto. As suas transferências compulsivas foram vistas como os saneamentos que efectivamente eram e geraram um amplo movimento de contestação dentro do quartel, que decidiu desobedecer-lhes numa moção aprovada em assembleia geral.
Ou, na versão de Pires Veloso, citado pelo Comércio do Porto, “um pequeno mas activo grupo de militares do CICAP, no intuito nítido de gerar um clima de confusão e indisciplina, aliciou os seus camaradas”. Face a esta “atitude colectiva de insubordinação”, o comando da RMN determinou o imediato encerramento da unidade, convocou para o Quartel-General os seus militares do quadro permanente e licenciou todo o restante pessoal. A concluir a nota enviada ao Comércio, o brigadeiro apelava à população: “O Comando da RMN avisa solenemente o povo do Norte de que este não se pode demitir do apoio a estas medidas, que tentam salvar a revolução da anarquia e do caos, que poderão criar as condições necessárias ao regresso de uma nova ditadura.”
Logo na noite de 3 para 4 de Outubro, foi enviada para o CICAP uma companhia operacional de Leça da Palmeira, que retirou os soldados que então se encontravam no quartel, não sem ter de defrontar as centenas de pessoas que protestavam no exterior, e que as tropas especiais dispersaram, segundo noticia o Comércio, com o recurso a “bombas lacrimogéneas” e “fogo de intimidação”. Aquele diário portuense regista ainda as declarações de apoio a Pires Veloso vindas do PS, do PPD e do CDS, e inventaria algumas das reacções negativas à esquerda, da FUR, que diz que a resposta do Comando da RMN “é de pânico e reveladora do medo que se apossou da burguesia perante a força dos soldados organizados”, à UDP, convencida de que o destino do CICAP ficou logo selado quando os seus soldados participaram em massa na manifestação dos SUV.
O jornalista do Comércio acrescenta ainda observações da sua própria lavra, notando que, “em toda esta jogada, o PCP parece estar bastante recolhido, por certo a pensar em gerar a sua contestação ao brigadeiro em nome das ‘amplas liberdades democráticas’…”
Os SUV assumiram então a luta do CICAP e, juntamente com comissões de moradores e outras organizações de base, convocaram uma manifestação para dia 6, na Avenida dos Aliados. Muitos milhares de soldados e civis responderam à chamada e, ao final da tarde, o cortejo, gritando “o CICA[P] é do povo, não é do Veloso”, seguiu para o quartel, onde já se encontrava outro grande grupo de manifestantes, que “o forte dispositivo de segurança ali montado”, reporta o diário O Primeiro de Janeiro, ia conseguindo manter à distância.
Numa “improvisada assembleia de soldados em plena Rua de D. Manuel II”, noticia ainda o Janeiro, estes decidem que vão conservar-se ali até atingirem os seus objectivos: a reabertura do CICAP e a demissão de Pires Veloso. O jornal acrescenta que as forças de segurança dispararam tiros para o ar e lançaram granadas lacrimogéneas contra os militares e civis, e que “as habituais correrias desordenadas” provocaram vários feridos, tendo um rapaz de 24 anos apanhado um tiro na barriga. Já no relato d’O Grito do Povo, órgão da OCMLP, precisa-se que a primeira ofensiva se deveu aos “cães de fila da PSP”, que carregaram “à bastonada e à granada”, e que só depois as forças instaladas no CICAP “atacaram novamente o povo, com selváticas cargas de cacete, rajadas para o ar e granadas ofensivas que estilhaçaram os vidros de grande parte das casas da Rua José Estaline”. Um topónimo que surpreenderá a generalidade dos leitores, e que nunca foi oficial, mas que constitui um bom exemplo dos delírios mais inofensivos do PREC. Nas comemorações do 20.º aniversário da morte de Catarina Eufémia, ainda em 1974, improvisaram-se umas placas com o nome da ceifeira assassinada pela GNR, que foram depois colocadas sobre as placas toponímicas originais da Rua Júlio Dinis. E, como a Rua de D. Manuel II estava mesmo ali ao virar da esquina, aproveitou-se para proceder a mais um baptismo oficioso: durante alguns meses foi a Rua José Estaline.
O confronto junto ao CICAP, ficámos agora a saber, poderia ter tido consequências ainda mais graves do que as que teve. A delegação do RASP, com a sua proposta de que a luta se mudasse para Gaia, chegou em boa hora, já que estaria iminente, se não uma tentativa de tomar o quartel pela força, alguma outra acção violenta. É pelo menos o que parece deduzir-se desta afirmação de Ferreira Fernandes à Revista 2: “A situação estava muito tensa e, se os do RASP não têm chegado, íamos fazer asneira.”
Para os soldados em luta, o dia 7 deve ter sido o mais festivo. O RASP foi ocupado às primeiras horas da madrugada, e logo então se promoveu um primeiro plenário, do qual saiu uma moção que decidia que todos os militares presentes se manteriam no quartel até à reabertura do CICAP, exigindo-se mais uma vez a demissão de Pires Veloso. À tarde, um novo plenário, já com a presença não apenas de soldados do RASP e do CICAP, mas de várias outras unidades, do Quartel-General, Regimento de Transmissões e Hospital Militar à Comissão de Extinção da PIDE-DGS do Porto, produziu um comunicado em que, aludindo aos saneamentos ordenados por Pires Veloso, se denunciava a tentativa de “destruição de todas as conquistas democráticas dentro dos quartéis, pelo saneamento dos elementos progressistas”.
À noite continuaram a chegar mais delegações. No interior do RASP terão chegado a concentrar-se, no “pico” da ocupação, elementos de 18 unidades, e não apenas do Porto, mas também de Chaves ou de Lisboa. Cá fora, uma multidão cada vez mais numerosa aglomerava-se junto ao muro do quartel, prometendo não arredar pé, e havia quem lhes trouxesse cobertores e alimentos. Às 22h00, a Comissão de Luta entretanto eleita abriu as portas à comunicação social, que foi convidada a assistir a mais uma reunião plenária. Depois de ouvirem “algumas intervenções mais inflamadas”, e outras que “insistiam na necessidade de se evitar qualquer confrontação física”, os enviados do Janeiro lá tiveram de se render às liberalíssimas deadlines que os jornais praticavam na época, regressando já de madrugada à redacção. No dia seguinte, a notícia termina com esta declaração: “Em circunstância do adiantado da hora, a nossa reportagem retirou-se do referido plenário.”
"Acabaram-se as divisas”
Os vários ex-ocupantes do RASP com que falámos confirmam a ideia de que este início de luta foi uma experiência intensa e feliz. “A vida no quartel era comunitária, estava lá muita gente de outras unidades, partilhávamos colchões e alimentação, e vivíamos num plenário permanente, em que todas as decisões eram sufragadas, ia tudo a votos”, diz António Marques, que se lembra ainda de dar entrevistas a uma televisão sueca e de andarem por lá jornalistas de todo o mundo.
Daniel Pereira Gomes, um soldado apanhado no meio do processo, resume assim a luta em que se viu envolvido: “A malta tinha 20 anos e aquilo era apelativo, portanto eu participava com um certo entusiasmo.” Teve a sorte de não estar no quartel no dia mais violento, o dos confrontos com manifestantes do PPD, e o que recorda é “um movimento muito espontâneo, em que nenhum partido controlava verdadeiramente a direcção que aquilo ia tomando”. Mas acha que o relaxamento da disciplina já vinha de trás: “A tropa estava numa grande confusão: queríamos levantar uma G-3 e era só ir ao armeiro e deixar um papel, tipo mercearia — claro que desapareceram várias —, e lembro-me de um tipo pegar numa arma e atingir-se a si próprio, e quando fazíamos a ronda dos postos de vigia, metade não estava ao serviço.”
As circunstâncias em que José Rocha se juntou ao movimento confirmam bem o retrato que Daniel Pereira Gomes traça da tropa daqueletempo. A cumprir um castigo de três dias no RASP, arranjou maneira de ir passar as noites a casa, e ia justamente a caminho dela, já sem farda, quando apanhou a manifestação que vinha do CICAP. “Comecei a ver malta conhecida, inteirei-me do que aquilo era e fui para a frente da manifestação com os outros”, conta. “Chegámos ao RASP já era noite, e de repente estávamos todos dentro do quartel: grande confusão, até que alguém dá um murro na mesa, a malta junta-se, elege-se ali a Comissão de Luta, e quando dou por mim estou eleito, ainda vestido à civil e tudo.”
Confirmando que “todos os dias havia assembleia e ponto da situação”, Rocha lembra-se de que, “para manter o pessoal entretido”, produziam panfletos que os soldados iam depois distribuir, em camiões de caixa aberta, pelos bairros operários. “Era bastante divertido.” Na verdade, até se tinha criado uma comissão para isso, a Comissão de Agitação e Propaganda. E havia também uma Comissão de Imprensa e uma Comissão Interna, que se ocupava da limpeza do refeitório, do jornal de parede e de todos os outros aspectos da vida quotidiana do quartel. E todas elas reportavam, claro, à Comissão de Luta.
Segundo José Rocha, é a Manuel Resende que se deve a última machadada nos resquícios de hierarquia militar que tinham sobrevivido à ocupação. “Um dia, o Resende arrancou as divisas, deitou-as ao chão e disse: ‘Acabaram-se as divisas neste quartel, aqui somos todos iguais e quem tiver de limpar limpa’.” Resende não se lembra com exactidão do episódio, mas reconhece que a sua principal intenção era mesmo “acabar com a porcaria das hierarquias na tropa”.
Do que nunca mais se esqueceu foi do que aconteceu na noite de dia 8: a sua mulher, que se encontrava no meio da multidão que apoiava a luta no exterior do quartel, foi apanhada no confronto com as tropas do Copcon e da Polícia Militar, de modo que a deixaram entrar no RASP para se proteger. “E como depois não podia sair, a minha senhora acabou por ficar toda a noite no quartel”, conta Resende, e percebe-se que a memória do episódio ainda hoje o faz rir.
Mas essa noite não teve, na verdade, muito de divertido. O que exactamente aconteceu, e quando, e por que ordem, não é fácil de estabelecer com inteira precisão, dadas as contradições entre os relatos jornalísticos da época, e mesmo entre os ex-membros da Comissão de Luta do RASP. Começando pelo fim, o Janeiro publicava no dia seguinte, na primeira página: “Confrontação entre diferentes grupos de manifestantes nas imediações do RASP originou mais de 80 feridos.” Um arredondamento bastante por baixo, já que o próprio jornal inventariava depois os feridos que tinham dado entrada em cada um dos hospitais próximos, e o total perfazia 93.
“Os incidentes, que assumiram proporções alarmantes”, diz o Janeiro, “tiveram origem numa confrontação entre populares que apoiam os SUV, os soldados do CICAP e do RASP, e outros que, ao princípio da noite, participavam numa manifestação do PPD, seguindo da Praça General Humberto Delgado [junto aos paços do Concelho], para o RASP, em V. N. de Gaia, após passarem no CICAP”. Há dias que tanto o PPD como o PS vinham publicando anúncios na imprensa a convocar os seus simpatizantes para dois grandes comícios de apoio ao VI Governo Provisório e a Pires Veloso, o primeiro no dia 8 e o segundo, o do PS, no dia 10.
Os sociais-democratas começaram por se reunir no centro do Porto e avançaram depois para o CICAP, gritando palavras de ordem como: “Só pode ser soldado o homem honrado”, “Soldado do Norte, tu és o mais forte” ou “Prà frente sem medo, Pinheiro de Azevedo”. Chegados ao quartel do Porto, os militares acenaram-lhes com cravos vermelhos, diz o Janeiro. E foi então que se levantou uma nova palavra de ordem: “O povo sem jantar vai à Serra do Pilar”. O humor de travo popular até podia ser de Vasco Graça Moura, que foi um dos oradores da manifestação, com Miguel Veiga ou Sá Borges, ministro dos Assuntos Sociais no executivo de Pinheiro de Azevedo.
Tanques na rua
O cortejo atravessou a Ponte de D. Luís pelas 22h30, avançando para a multidão que defendia o RASP e a partir daí o Janeiro conta que os manifestantes se depararam com uma barricada que não ofereceu grande resistência e seguiram adiante, aparentemente procurando a confrontação. Foram recebidos à pedrada e debandaram momentaneamente, mas logo voltaram a concentrar-se e, desta vez, conseguiram fazer recuar os civis e militares que, no exterior, defendiam o RASP. Pelas 23h00,são lançadas granadas de gás lacrimogéneo e ouvem-se rajadas de tiros. Nova debandada, desta vez “com os manifestantes a caírem e atropelarem-se”, descreve o jornal. Por esta altura já havia vários feridos, e a concentração do PPD regressa uma vez mais, agora gritando: “Assassinos! Assassinos!”
Os militares do RASP decidem então avançar com dois blindados Sherman, que fazem circular nas imediações do quartel, em manobras de dissuasão que, reconhece o Janeiro, “não resultaram completamente, mas evitaram sem dúvida que o conflito tomasse mais graves proporções”. Mas, quando o pior parecia ter passado, chegaram ao local forças do Copcon, da Polícia Militar e do Regimento de Cavalaria do Porto, transportadas em jipões e autometralhadoras Berliet. A estas viaturas juntaram-se, diz ainda o jornal, três Chaimites e um blindado Panhard da PM.
Presumivelmente enviadas para conter a violência, estas tropas terão efectivamente tentado criar um cordão de segurança entre os manifestantes dos dois lados, mas rapidamente se envolveram numa troca de tiros com os militares do RASP. À 1h30, diz o Janeiro, já havia 50 feridos a receber tratamento no Hospital de Sto. António e 36 na Misericórdia de Gaia, dois deles em estado grave, um com perfuração do abdómen e o outro com um estilhaço de bala no crânio.
António Marques lembra-se de que, no início dos confrontos, saíram a dada altura do RASP uns 50 militares desarmados (ele incluído) que se interpuseram entre as duas multidões. “Pensámos que a farda seria um elemento dissuasor, mas cá fora a violência era muito acentuada e rapidamente percebemos que tínhamos de retroceder.” Mas “tudo ficou pior quando vieram as forças enviadas pelo Comando”, diz. “Saímos com dois Sherman, que tinham uma acção mais intimidante do que propriamente eficaz numa situação daquelas, e as forças do Comando abriram fogo de metralhadora, eu ouvia as balas bater no blindado em que estava.” E como do RASP também se começou a disparar, acrescenta, percebeu que as coisas se iam complicar e deu ordens para que os Sherman recuassem para junto das portas do quartel.
No dia seguinte, cada uma das forças acusará a outra de ter disparado primeiro. Francisco Sá-Carneiro, acabado de regressar à liderança do PPD, envia um telegrama a Pires Veloso, transcrito no Povo Livre de 10 Outubro, a exigir-lhe que proceda “à imediata identificação dos desordeiros e criminosos que ocupam o RASP e disparam sobre manifestantes pacíficos e indefesos”. O número de feridos é muito elevado, mas fica-se com a impressão de que só por sorte não houve mortos. E não é de excluir que, por iniciativa própria ou instruções superiores, as forças enviadas pelo Comando da RMN tenham querido testar a reacção do RASP e ver até onde iriam os seus ocupantes. E se foi assim, Pires Veloso, admitindo que alguma vez tenha pensado em tomar o quartel pela força, terá percebido que essa solução estava excluída.
Cowboys com lenços e bombas
Também o grupo que parece ter controlado a Comissão de Luta procurava evitar cenários de potencial violência, contra algumas ideias mais aventureiras que iam surgindo internamente, como a de “sair para ir tomar o CICAP”, que José Rocha diz ter chegado a ser aventada. Mas a ideia mais louca — para usar um termo simpático — que esteve em cima da mesa foi trazida de fora, por uma delegação do Regimento de Artilharia de Lisboa (RALIS), que tinha fama de ser um quartel revolucionário.
“Foi um bocado ridículo: nós estávamos todos cansados, com a barba por fazer, se andássemos com alguma arma, era uma pistola, e chegam de repente os gajos do RALIS de macacão preto e lenço vermelhinho ao pescoço, todos janotas, a mandar bitaites”, descreve José Rocha. “Era suposto virem ajudar, mas ninguém lhes passou cartucho.” A memória de Ferreira Fernandes é menos colorida, mas condiz. “Eram completamente radicais e militaristas, achavam que nós não sabíamos nada de luta armada, mas nós estávamos era numa de acção política”, diz, acrescentando: “Abortámos uma coisa que podia ter sido grave.” Referir-se-á provavelmente a um tresloucado projecto que António Marques também recorda: “Eles tinham um ar de cowboys, vinham com obuses de calibre importante e a ideia deles era pura e simplesmente bombardear a Ponte de D. Luís quando as forças oposicionistas estivessem a atravessá-la.”
Uma das singularidades da situação do RASP é o facto de a democracia interna imposta pela Comissão de Luta ter sempre coexistido com a manutenção no cargo do comandante da unidade, o major Castanheira, que só pedia garantias de que não tocassem no arsenal, uma exigência que terá sido razoavelmente cumprida, embora José Rocha esteja convencido de que, “quando se conseguiu selar aquilo”, já tinham desaparecido algumas armas. “Ficámos no RASP numa situação de duplo poder”, diz Ferreira Fernandes, numa provável alusão ao período imediatamente anterior à revolução russa de Outubro de 1917, quando o governo provisório e os sovietes exerciam o poder em simultâneo.
António Marques guarda boas memórias do major. “Ficou no quartel e fui mantendo um contacto muito estreito com ele, que representava ali a hierarquia militar e estava um pouco constrangido, mas era uma pessoa muito sensata, que manteve sempre connosco um diálogo equilibrado e cordial”, diz. “E nós percebíamos que ele estava numa situação difícil e também não lhe dificultávamos a vida.”
O último momento bastante animado da ocupação do RASP foi no dia 10, quando uma série de manifestações de apoio à luta dos soldados, convocadas por diversas forças partidárias e por outras organizações, como o Conselho Municipal do Porto, convergiram para a Serra do Pilar. Uma dessas manifestações era da OCMLP, a presença mais forte, segundo Ferreira Fernandes, entre os civis que protegiam o quartel. Mas enquanto em Gaia a violência parecia agora afastada e se gritavam palavras de ordem sem receio de confrontações, no centro do Porto, onde Mário Soares e Manuel Alegre participavam numa grande manifestação do PS, a sede da UDP, na Praça D. João I, era atacada por uma multidão em fúria e ouviam-se ruídos de tiros e explosões.
No dia seguinte, o Janeiro titula: “Milhares de pessoas tentaram durante horas assaltar a sede da UDP na Praça D. João I.” O diário adianta que se ouviram disparos e se viram “corpos tombados, atingidos por balas e estilhaços”. De vez em quando, conta o repórter, “uma das nove janelas do edifício (…) abria-se e, aos gritos de aviso, a multidão resguardava-se ‘dos tiros que eles estão a disparar lá de dentro’”.
Às 22h00, a chusma incendiou um taipal de madeira na base do edifício, mas o incêndio foi rapidamente extinto. Meia hora depois, garante o Janeiro, a sede já não tinha um único vidro intacto. Às 23h00, “ouve-se uma grande explosão e ficaram tombadas no chão quatro pessoas”. Só às 2h30, os militantes da UDP deixam o edifício, escoltados por militares. O balanço do tiroteio são 53 feridos, alguns graves, mas a imprensa do dia seguinte não regista nenhuma morte. A sede da UDP é depois vasculhada pela polícia, que encontra um pequeno arsenal: duas pistolas de alarme, detonadores, 16 cocktails Molotov, latas de gasolina, uma granada de fumos, alavancas de granadas de mão ofensivas.
O Janeiro noticia ainda que um grupo numeroso entrou na sede da FEC-ML (a frente eleitoral da OCMLP) ao princípio da madrugada “e destruiu grande parte do recheio”, lançando-o à rua. Com uma linha política muito crítica não apenas do PCP, mas também da FUR, da qual a UDP se vinha então aproximando, é bastante provável que a FEC-ML tenha ficado a dever este ataque tardio ao facto de ter ajudado a retirar os militantes da UDP através da sua própria sede, já que os dois edifícios tinham traseiras contíguas.
O advogado Mário Brochado Coelho, dirigente da UDP, agradeceu a solidariedade à FEC-ML, segundo noticia o Janeiro, e co-responsabilizou pelo ataque “comandos do ELP” e elementos do MRPP (recorde-se que um militante deste partido, Alexandrino de Sousa, tinha morrido na véspera, lançado ao Tejo por elementos da UDP). Brochado Coelho garantiu também que as armas só tinham entrado na sede após ter começado o assalto, que os disparos tinham sido feitos em legítima defesa e que não tinha havido intenção de matar, como os poucos feridos com balas confirmariam.
Tanto a UDP como a FEC-ML fazem questão de deixar claro que não atribuem responsabilidades ao PS, cujos serviços de segurança até andaram a chamar os militantes socialistas de volta à sua manifestação.
No segundo volume das suas memórias — Da Revolução Gorada aos Desafios do Presente (1974-2014) —, lançado há poucos meses, Pedro Baptista, que era então o líder da OCMLP, duvida de que o MRPP estivesse de facto envolvido no assalto e adianta que dois dos retirados pela sede da FEC-ML “eram elementos há muito expulsos da OCMLP, e logo acolhidos na UDP, precisamente pela sua propensão armamentista”. E sem os nomear acusa-os ainda de terem escondido na sede da FEC-ML armas que só por sorte a polícia não encontrou.
A perspectiva que Pedro Baptista tem hoje da aventura do RASP, que a OCMLP então defendeu ao mesmo tempo que colocava reservas aos SUV e à FUR, é a de que já não tinha qualquer hipótese de sucesso depois da nomeação de Pires Veloso e era apenas uma reacção desesperada. “Aquilo já não tinha objectivos, ninguém sabia o que andava ali a fazer, e é por isso que o Pires Veloso também não interveio”, diz o antigo dirigente da OCMLP e ex-deputado socialista à Revista 2.
E, na verdade, nesses últimos dias de ocupação, já todos pareciam ansiar por uma saída minimamente aceitável que viesse pôr cobro à situação. “Já não tínhamos muitas soluções e, ao fim de dez dias em que mal se dormia, começou a instalar-se uma sensação de cansaço físico e psíquico”, diz António Marques. “O movimento foi morrendo e não se via uma saída”, concorda Daniel Pereira Gomes. “Já não sabíamos o que fazer”, reconhece Ferreira Fernandes. Quando Carlos Fabião aterra no Porto a 14 de Outubro e vai ao RASP lançar um ultimato amável, acompanhado da promessa de que nenhum dos implicados sofrerá penalizações, ninguém terá tido de cerrar os dentes para aceitar. José Rocha põe a questão com exemplar sinceridade: “Não se imagina o alívio que foi!”
Na verdade, acabou por haver algumas punições. A Ferreira Fernandes, convidaram-no a sair pelo seu pé, mas recusou e foi expulso. E transferiram António Marques para o Quartel-General. O aspirante Marques foi ainda o único que acabou mesmo por ser julgado em Tribunal Militar, dois ou três anos depois, mas o juiz ilibou-o, argumentando que as suas acções tinham sido cometidas “num contexto muito revolucionário”.
Tudo pesado, Ferreira Fernandes diz ter gostado de passar por esses dias, porque “foram interessantes e não houve nenhuma tragédia” a lamentar. “Mas”, acrescenta, “o Pires Veloso é que estava certo, não era eu”.