Quando o PS desceu à rua
1.º de Maio de 1975. PCP e Intersindical tentam por duas vezes impedir os socialistas de participar nas celebrações. À segunda, conseguem. No tumulto, Manuel Alegre, com um pontapé, trava a tentativa de esfaqueamento a Mário Soares. Nesse dia, separam-se águas na esquerda portuguesa.
Venho partilhar um momento histórico. Ouvi com emoção as palavras de Jerónimo de Sousa e a posição do PCP e quero enviar-lhe um abraço porque hoje [Jerónimo e PCP] contribuíram para um aprofundamento da nossa democracia.” A declaração de Manuel Alegre, um dos socialistas impedidos de entrar no estádio 1.º de Maio em 1975, fez coro entre os que há uma semana na comissão política do PS aprovaram o acordo de António Costa com comunistas e bloquistas para um governo à esquerda.
O entendimento histórico entre PS e PCP foi recebido com surpresa, incredulidade até. A emoção soltou-se sobretudo entre os que viveram no Verão Quente de 1975 a clivagem violenta entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, entre PS e PCP, que durou 40 anos. Tão insanável tem sido que mantém brechas.
“As nossas divergências de fundo são de tal ordem que não é possível [entendimento]”, diz Francisco Assis, a cara da oposição socialista a este acordo. Há quatro décadas, esta bem poderia ser a frase de Manuel Alegre sobre Cunhal e os comunistas, no rescaldo dos incidentes do Dia do Trabalhador mais tumultuoso da democracia.
A 1 de Maio de 1975, os militantes e simpatizantes socialistas nas imediações do Estádio 1.º de Maio gritam contra o PCP e a Intersindical: “O PS foi atacado, o PS não fica calado”, “Socialismo sim, ditadura não”. Por duas vezes a delegação do PS é impedida de participar nas celebrações oficiais, organizadas e controladas pela Intersindical e tuteladas pelo Movimento das Forças Armadas (MFA).
Animados pela vitória eleitoral conseguida seis dias antes, que lhes deu o triplo dos votos dos comunistas, e pela capacidade de mobilização popular na luta contra a unicidade sindical — que dava a hegemonia do poder sindical à Intersindical, controlada pelo PCP —, os socialistas aproveitam para separar águas na política portuguesa, em pleno processo revolucionário em curso (PREC).
No livro 25 de Abril, Mitos de Uma Revolução, a historiadora Maria Inácia Rezola escreve que “é difícil apurar com precisão a sequência de acontecimentos ou as causas imediatas que levaram ao confronto físico e verbal” nestas celebrações, embora seja claro que decorrem sob o signo da discórdia” e com “um fosso” entre PCP e PS.
Tudo começa com a ausência dos socialistas na manifestação alegadamente unitária que arrancara da Alameda Afonso Henriques em direcção ao estádio. O PS faz a sua concentração na Praça do Chile e segue daí rumo ao recinto.
Nas negociações prévias da Intersindical, o lugar da “ponta final do cortejo” fora atribuído ao PS. Álvaro Cunhal diz ter tentado, depois, por “diligência pessoal”, convencer Soares “para passar à frente na manifestação” e ir a seu lado. O socialista recusa, por entender que a intenção é separá-lo do resto da massa socialista — que continuaria no final do cortejo. Um ano antes, os dois tinham desfilado lado a lado pelas ruas. Como ia longe esse dia.
Quando os socialistas chegam ao estádio, “o comício já havia começado e as tribunas estavam quase integralmente ocupadas por elementos do PCP”, queixa-se o PS no primeiro de três comunicados. Quem já está no estádio não percebe a razão por que Mário Soares tarda a entrar e, depois de entrar, não aparece na tribuna.
Do cockpit de um dos helicópteros que sobrevoam a concentração, Otelo Saraiva de Carvalho avista uma multidão em festa à qual vai atirando cravos. Lá de cima, não se descortinam as dificuldades. A organização fecha os portões do estádio pouco antes de a comitiva socialista, com Soares à frente, conseguir entrar.
“Quando chegámos, os comunistas já tinham fechado os portões e disseram-nos que estava cheio. ‘Ai não podemos entrar? Então ficamos à porta!’”, conta o fundador do PS no documentário Memórias do Portugal Futuro, de Mário Barroso.
Com a entrada barrada, Soares, ministro sem pasta, e Salgado Zenha, titular da Justiça (do IV Governo Provisório), sentam-se no chão. Os discursos prosseguem na tribuna, onde estão outros ministros. Um militante socialista entra discretamente no estádio com a missão de verificar “se estava de facto repleto. Veio, daí a algum tempo, informar-nos de que havia bastante gente, mas estava longe de cheio”, conta Mário Soares, narrador incontornável deste dia, na sua autobiografia Um Político Assume-se. “Como ministros em exercício, abrimos à força o portão e avançámos pelo estádio em direcção à tribuna, aos encontrões. Foi um verdadeiro combate corpo a corpo.”
Costa Gomes, Presidente da República, Vasco Gonçalves, primeiro-ministro, e Pinheiro de Azevedo, membro do Conselho de Revolução, presidem na tribuna. Estão lá elementos do MFA, da Inter, do Governo, do PCP, do MDP/CDE e da FSP. O PPD tinha sido excluído. Entre as fardas e os fatos mais escuros, emerge Álvaro Cunhal ao centro, de pé, cabelo grisalho farto e camisa branca. É a referência visual da tribuna, para qualquer ponto do recinto.
“Nós cabíamos [no estádio]. Ficou provado que não nos queriam deixar entrar. Foi uma coisa física de encontrões, socos.”
A televisão capta a agitação causada pela entrada da delegação socialista e o momento em que um popular tenta esfaquear Soares. “Dei-lhe um pontapé e tirei-lhe a faca da mão”, relata à Revista 2 Manuel Alegre. Soares sai ileso. No meio da confusão, nem se dá conta.
O inquérito oficial do Conselho da Revolução (CR) aos incidentes, cujas conclusões a historiadora Maria Inácia Rezola considera “favorecerem amplamente” o PCP, reconhece que o estádio “não está cheio (no interior já se encontravam inclusive alguns núcleos sindicais afectos ao PS). Porém, a entrada está totalmente congestionada, não se conseguindo averiguar se voluntária ou involuntariamente, facto que retarda a entrada da manifestação do PS”.
Com Soares dentro do estádio, os socialistas agitam-se, surgem reacções contrárias, “trocas de palavras de ordem antagónicas, assobios, que perturbam e por vezes interrompem os discursos do primeiro-ministro Vasco Gonçalves e do Presidente da República Costa Gomes”, relata o CR.
As versões sobre o que se passou diferem. Os socialistas alegam que, quando chegaram ao estádio, um elemento da Intersindical e dois do MFA convidaram Soares, Zenha e Marcelo Curto para a tribuna. As intervenções estavam a terminar. Falava então Costa Gomes.
“Quisemos entrar, mas estava fechada. Demos grandes punhadas na porta e aparece um tipo a dizer: ‘Aqui não entram traidores à classe operária’.” Porta fechada. “Isto cinco dias depois de termos ganho as eleições”, frisa Soares a Maria João Avillez, em Soares e a Revolução.
Na versão do CR, dois elementos do MFA, um furriel e um aspirante, pedem apenas a Soares que pare a agitação dos socialistas no estádio, “que aquele não era local para se discursar e que o melhor seria entender-se com os dirigentes da Inter, na tribuna”. O que Soares faz. “Dirige-se à tribuna, onde chega quase no final do discurso do Presidente, acompanhado por bastantes adeptos do seu partido.” E, continua o relatório, “a entrada é-lhe impedida por um dirigente da Intersindical”, acusando-o das tais “atitudes divisionistas”.
Quem fecha a porta na cara ao líder socialista é José Gomes, do secretariado da Intersindical. “Fui eu próprio que impedi a entrada do dr. Mário Soares na tribuna”, confessa na conferência de imprensa no dia seguinte aos incidentes. Razões invocadas: “Nessa altura estava a discursar o Presidente da República” e, “além de poder provocar mais incidentes, o PS tinha violado todos os acordos previamente estabelecidos”.
O sindicalista fechara a porta, mas a ordem viera de cima. O inquérito apura que “o oficial responsável pela segurança da tribuna, o major Campos Andrade, se declarou, nessa ocasião, contrário à entrada fosse de quem fosse na tribuna, temendo consequências desagradáveis para o Presidente da República, como por exemplo a interrupção do seu discurso, motivada pela reacção da multidão”.
A Intersindical e o PS entram numa guerra de comunicados. A central acusa o partido de incentivo ao “achincalhamento” das intervenções no estádio. Os socialistas queixam-se de ter sido ignorada a presença dos “representantes do maior partido dos trabalhadores portugueses”. Quarenta anos depois, as memórias e testemunhos posteriores aos incidentes são dominantemente socialistas. Escasseiam os comunistas.
João Maria de Freitas Branco, ex-quadro do PCP e convocado para a segurança da tribuna, recorda hoje à Revista 2 o que se passou do lado de dentro: “A decisão de fechar a porta [a Soares] é exclusivamente do major Andrade” e [José Gomes e Freitas Branco] fizeram “o que estava combinado.” “Mal ele [o sindicalista] dissesse a frase [do divisionismo], recuava com a cabeça e fechávamos imediatamente a porta.”
“O dr. Mário Soares — conta — reagiu de forma muito veemente. Houve alguns pontapés na porta. Mais do que os ruídos, o que me ficou na memória foi um som estranho, que não consegui identificar, de qualquer coisa que embateu.” Quando a cerimónia termina, voltam ao ponto de observação, abrem a porta e, assegura, “os cravos que o dr.Soares trazia na mão estavam espalhados à entrada, do outro lado da porta”. O som seria de “um ramo de cravos” a bater.
Soares, cujo comentário não chegou a tempo para este artigo, recorda em testemunhos anteriores “as punhadas” que deu para lhe abrirem a porta, nada mais. Manuel Alegre, que andava por perto, garante que “há apenas uma versão deste momento” e não é a de Freitas Branco. É-lhe descabida a ideia do ramo de cravos. “Não me lembro. Seria, aliás, estranho andar com um ramo de cravos naquela confusão, a bater com os ombros, com os cotovelos.” Admite, talvez, “um cravo”. É-lhe ainda mais inverosímil “o dr. Soares a bater com cravos numa porta”.
Os socialistas saem, entretanto, do estádio e arrastam a multidão. É a segunda grande manifestação popular do PS, quatro meses depois do comício do Pavilhão dos Desportos contra a unicidade sindical. Avenida de Roma abaixo até aos Restauradores, os socialistas gritam palavras de ordem. “É preciso respeitar a vontade popular.” Conta Mário Soares: a “avenida esvaziou-se. Veio toda a gente para a manifestação, até ao fim”. O desfile improvisado fica para a história como o início da grande viragem, com o PS a desafiar o PCP e os sindicalistas comunistas na mobilização de rua.
No dia seguinte, contra-atacam com mais uma manifestação espontânea em Lisboa, de São Pedro de Alcântara ao Rossio, que começa ao final da tarde e se prolonga pela noite. Maria Inácia Rezola descreve-a como uma “gigantesca manifestação de protesto”. Juntam-se milhares de pessoas nas ruas contra a unicidade sindical — “não queremos uma Intersindical ao serviço de um partido único”, dirá Soares — e pela afirmação da legitimidade do voto. As palavras de ordem reafirmam-no. “Se isto não é o povo, onde está o povo?”, “O PS foi atacado, o PS não fica calado”, “A verdade não esteve em Alvalade”, “Socialismo sim, ditadura não”, “Central sindical só por via eleitoral”, “O PS venceu, o PS vencerá”, “Não haja confusões, somos dois milhões”.
Na luta contra a unicidade sindical, o PS enchera em Janeiro o Pavilhão dos Desportos, no que foi a primeira prova do seu poder de mobilização popular e o primeiro ponto de viragem no processo político do 25 de Abril. “Percebemos que tínhamos uma força inesperada entre os trabalhadores”, recorda Soares.
As primeiras eleições livres em 48 anos, para a Assembleia Constituinte, tinham-se realizado seis dias antes. O PS ganha com 37,9% dos votos, o PPD tem 26,4%, o PCP consegue apenas 12,5%. Na véspera das eleições, o primeiro-ministro Vasco Gonçalves traça ao líder socialista as suas previsões: “O MDP/CDE [liderado por José Manuel Tengarrinha] vai ser o maior partido, depois o PCP e o PS talvez fique em terceiro. O resto quase não conta.” O que aconteceu na realidade “foi uma surpresa”, nas palavras do próprio Soares, que define como as eleições para a Constituinte se tornaram o segundo ponto de viragem: “Era agora a legitimidade revolucionária contra a legitimidade do voto popular.”