Taiwan, o país entre aspas
Os líderes da China e de Taiwan encontram-se este sábado pela primeira vez desde 1949, o ano em que Mao Tsétung ganhou a guerra civil e Chiang Kai-shek levou a República da China para a ilha.
Chu-Chia Steve Lin, vice-ministro dos Assuntos Continentais do governo de Taiwan, ouve a pergunta e ri-se. "Somos um país? Bom, somos um país entre aspas...". Para que se perceba bem, o ministro levanta os braços e faz o gesto com os quatro dedos para cima e para baixo, a sinalizar a ambiguidade.
Taiwan é um lugar onde se fazem perguntas como "isto é um país?" ou "o senhor considera-se o quê?" e ninguém estranha.
E é um lugar onde as respostas vêm depressa. Afinal, há sessenta anos que se discute a identidade dos taiwaneses, que hoje já são 23 milhões. As respostas, como se espera numa democracia, variam. Em boa parte, há uma linha geracional que separa os que desconfiam muito ou pouco das intenções de Pequim.
Roy Chun Lee, professor de Ciências Políticas e director adjunto do think-tank Chung-Hua, especialista em questões económicas, não hesita: "We are stuck." Sabe que o que vai dizer a seguir parece meio doido, por isso sorri primeiro e só depois anuncia: "Nós somos China. Mas não podemos dizer que somos China. E também não somos de facto China. Estamos entalados."
Formalmente, este país entre aspas chama-se República da China. Nasceu em 1949 da derrota na guerra civil contra os comunistas de Mao Tsétung, fundador da gigante República Popular da China. Pequim considera Taiwan a sua 23ª província e mantém a ameaça de ataque militar caso Taiwan declare a independência. Nos Jogos Olímpicos e noutros fóruns internacionais, Taiwan apresenta-se como "chinese-Taiwan", um híbrido com o qual os taiwaneses convivem em nome de uma progressiva integração na vida internacional que não hostilize Pequim. Entre 1949 e 1971, o lugar da "China" nas Nações Unidas foi ocupado pelo governo de Taipé e não pelo de Pequim. Mas hoje, passados todos estes anos, só o Vaticano e 21 Estados-membros da ONU têm relações diplomáticas plenas com Taiwan. São países como o Burkina-Faso, São Tomé e Príncipe, Palau, as ilhas Marshall, Tuvalu ou Kiribati. Nem Portugal nem nenhum país europeu reconhecem a soberania de Taiwan.
Politicamente, este é um "país" engasgado, que não consegue sair do lugar. Mas onde a economia não pára de crescer. Taiwan acaba de subir no ranking do Índice de Prosperidade do Legatum Institute, de Londres, ultrapassando a Coreia do Sul. É o 21º país mais próspero do mundo (Portugal o 27º), um dos quatro "tigres asiáticos" (com Hong Kong, Singapura e Coreia) e uma peça fundamental da "fábrica asiática", de onde sai metade do que é produzido no planeta.
Quando se pergunta a um taiwanês com mais de 50 anos - cujos pais nasceram na China pré-Mao - "e você é o quê, taiwanês?", a resposta é invariavelmente igual: "Sou taiwanês... e chinês." É isso que dizem os três ministros com quem o PÚBLICO falou em Taipé (Chu-Chia, Shih-Chao Cho, número dois da Economia, e Vanessa Shih, número dois do Ministério dos Negócios Estrangeiros); Roy Chun Lee, do instituto Chung-hua; Jih-wen Lin, investigador do think-tank Academia Sinica; Connie Chang, directora do Conselho Nacional de Desenvolvimento, ou Chenlung Kuo, director adjunto do jornal Daily News.
"Taiwan não é a China"
Abaixo dos 50 anos, e sobretudo entre os estudantes universitários, tudo é mais preto e branco. São taiwaneses.
Nas grandes manifestações de há um ano, quando milhares foram para as ruas de Taipé protestar contra um acordo comercial com a China, os cartazes diziam coisas como “Taiwan não é a China”. Chiang Kai-shek, que atravessou, seguido por um milhão de pessoas (chineses como ele), os 1700 quilómetros que separam Pequim de Taipé, através do estreito, e mais tarde criou a Liga Mundial Anti-Comunista, já não diz nada aos jovens taiwaneses de hoje. É uma peça de museu.
Em 2014, os jovens saíram de casa com girassóis na mão – símbolo da esperança. Mostraram ao mundo que os descendentes dos chineses conseguiram não só criar riqueza como viver em democracia. Mas quando, já depois da euforia daquelas semanas de protesto, se discutia o futuro do Movimento dos Girassóis, houve críticas duras: "Vocês ficavam todos na rua até às sete da tarde mas a seguir iam-se embora", criticou um estudante citado num ensaio da Foreign Affairs. Como quem diz, protestaram sem perder o jantar e uma boa noite de sono.
Sr. Xi e Sr. Ma
Este sábado, num encontro histórico, o presidente chinês Xi Jinping e o presidente taiwanês Ma Ying-jeou vão encontrar-se em Singapura, o que não acontece desde 1949. Toda a Ásia, mas sobretudo Taiwan, está expectante. O que significa isto? O que se segue? O que escondem os dois líderes?
O esforço de neutralidade foi tal que os dois homens vão tratar-se apenas por "senhor" - Sr. Xi e Sr. Ma - e não por "presidente".
"Nós somos os estrangeiros que melhor compreendem os chineses", diz o professor de Ciências Políticas Roy Chun Lee. "Os jovens acham que por detrás de todos os acordos comerciais há motivações políticas. Mas eles não estão a ver as coisas correctamente. Taiwan é o país que mais discrimina a China e que mais restrições no mundo tem em relação à China. A nova geração não entende porque é que todas as conversas com a China têm de ser feitas sob o chapéu da política de 'uma única China'."
Desde que Mao Tsétung fundou a República Popular da China que Pequim quer reunificar o continente e a ilha rebelde. Em 2005, promulgou uma lei anti-secessão que dava a Pequim o direito de usar "meios não-pacíficos" para forçar a reunificação. Três anos depois, porém, já com o actual presidente Ma no poder em Taipé, os dois governos retomaram os contactos ao mais alto nível.
"Em 2007, 40% dos nossos negócios já eram com a China, mas não tínhamos voos directos. Nem um", contou o ministro Chu-Chia durante uma reunião com jornalistas internacionais em Taipé, em Maio. "Para fazer a ligação Taipé-Shangai era preciso ir a Hong Kong. São quase seis horas. Hoje são 90 minutos."
Taiwan decidiu manter o status quo e implementar a "política dos três nãos": não à independência, não à unificação e não ao uso de força militar. E foi abrindo portas. "Mas é importante dizer isto: hoje continuamos a ter 40% de comércio com a China continental - não queremos ficar demasiado dependentes".
A Ideia foi começar pela "parte fácil", a economia, e deixar a parte difícil para depois - a política. Nestes sete anos foram assinados 21 acordos e hoje há 800 voos por semana entre Taiwan e a China e quatro milhões de turistas chineses visitaram Taiwan no ano passado. "70% do investimento de Taiwan no estrangeiro é feito na China", diz Roy Chun Lee. "É mais fácil, não há barreiras de linguagem."
O tempo chinês
Outra porta que se abriu foi a do ensino superior, que o governo de Taipé vê como forma de ajudar a China a democratizar-se. "Os estudantes chineses que vêm estudar para cá acabam por participar nas eleições das universidades. Já vieram seis mil. Às nove da noite desaparecem da rua, os estudantes e os turistas", diz o ministro Chua-Chia. Porquê? "Vão para os hotéis ver os debates na televisão. Ficam impressionados com a liberdade, com as pessoas a criticarem o governo, a dizerem isto e aquilo em liberdade. Isto vai acabar por ter algum tipo de impacto no futuro. A China é grande. Para mudar a China é preciso tempo".
O seu colega Shih-Chao Cho, vice-ministro da Economia, sublinha a importância desta abertura. Como se convence o mundo a fazer negócios com um país entre aspas? "Um dos argumentos é dizer que temos boas relações com a China continental", diz o ministro com convicção. "Que não há conflitos."
Complicado? Ainda é mais do que parece. Este jogo cujo desfecho ninguém se atreve a antecipar ainda tem outra peça. No ano passado, Pequim decidiu que "a questão de Taiwan" será resolvida entre 2021 e 2049. As datas não perturbaram o governo de Taiwan. O que gerou debate não foi o “quando”, mas o “onde”. Na estratégia chinesa, Taiwan aparece na legislação sobre segurança e não sobre administração interna ou nacionalismos.
Alguns vêem nesta decisão um sinal de que Pequim não está disposta a compromissos e, até, de que esta pode ser a forma de abrir caminho legal para uma acção militar contra a ilha.
O plano da segurança nacional chinesa para os próximos 50 anos tem "oito dimensões e quatro fases”. “A questão de Taiwan” surge na terceira fase. O artigo 11 define que a protecção da soberania e da integridade física da China é uma obrigação de todos os chineses, incluindo os povos de Hong Kong, Macau e Taiwan, e que a divisão não será tolerada. E diz, segundo alertaram recentemente politólogos taiwaneses, que “têm de ter tomadas medidas apropriadas para concretizar a unificação nacional e a integridade territorial”, sendo que resolver “a questão de Taiwan” é uma delas.
Ninguém em Taiwan gosta desta linguagem. Mas também ninguém parece saber se ela é real e como se encaixa no encontro histórico de Xi e Ma em Singapura.
“Como vão ser as relações com Pequim daqui a 20 anos?". O professor Roy Chun Lee repete a pergunta para ganhar uns segundos e pensar. “Daqui a 20 anos você vai estar a fazer exactamente essa mesma pergunta.”
O PÚBLICO viajou a convite do Centro Económico e Cultural de Taipei