Patti Smith: "O Papa tem sido mais revolucionário do que Obama"

Na próxima segunda-feira, Patti Smith vem a Lisboa apresentar o seu primeiro e mítico álbum Horses. Oportunidade para falar com ela sobre os anos 70, o presente, o Papa, Obama e a morte.

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Filha da working class americana, Patti Smith indigna-se quando a julgam uma celebridade melodie mcdanies

 “Sabe, as manhãs são a parte mais produtiva do meu dia”, acrescenta, enquanto nos interroga sobre o tempo em Portugal, onde esteve em Junho, tendo actuado por duas vezes no festival NOS Primavera Sound, no Porto.

Um desses concertos resultou na apresentação, na íntegra, de Horses (1975), o seu primeiro e talvez mais icónico álbum. Na próxima segunda-feira, no Coliseu de Lisboa, regressará a esse disco, e a alguns dos temas mais marcantes da sua carreira, numa altura em que o seu papel nas movimentações culturais do rock é enaltecido em todos os quadrantes. Ela, que vivenciou ainda um pouco da agitação da Factory de Andy Warhol e Lou Reed do final dos anos 60, haveria de captar o dinamismo da Nova Iorque do punk e do pós-punk dos anos 70 e 80. No final dos anos 90 parecia um pouco esquecida, mas desde a década de 2000 que não tem parado, com música – o seu último álbum, Banga, foi editado em 2012 –, poesia, livros ou projectos artísticos, tornando-se numa das figuras mais celebradas da cultura contemporânea. E tudo começou há 40 anos com Horses.

Nos últimos tempos tem tocado na íntegra o seu primeiro álbum, Horses, de 1975. Que balanço faz dessa experiência?
Tem sido interessante. Inicialmente assustou-me, porque implicava tocar o álbum como o gravámos, mas depois percebi que era um desafio positivo. Sinto-me profundamente ligada àquele material, gosto de o cantar e as pessoas têm respondido de forma incrível. Parece existir à volta daquelas canções uma espécie de sentimento místico, o que é muito gratificante, até porque nos apresentamos despojados, sem encenações e efeitos especiais. É qualquer coisa de muito cru e foi surpreendente para mim a forma rápida como, 40 anos depois, entrámos na narrativa interna daquele disco e o público a tem captado de forma intensa.

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steven sebring

Existia o perigo de que o gesto de voltar a esse disco fosse lido como recriação nostálgica. O que fez para ir mais além? 
Apresentamos o disco, seguindo a sua sequencia, mas existe espaço para a improvisação. As canções têm espaço para crescer. E é isso que faz com que cada noite seja diferente, mesmo agora quando estamos no fim da digressão. O que posso improvisar pode ser da ordem do prazer, do político, do poético, ou pode ser acerca de qualquer coisa especifica do país onde estou. Por outro lado, hoje, quando olho para trás, percebo que Horses não é apenas um álbum. É também a representação de uma cultura dos anos 60 e 70, que continua imersa no presente e com projecção no futuro. Por isso tocar esse álbum é ao mesmo tempo uma revisitação histórica e uma interrogação sobre um presente em mudança. E eu faço parte dela. Eu existo. O meu trabalho está aí. E quando tocamos Horses transportamos tudo aquilo que sabemos, ao mesmo tempo que vamos também aprendendo.

É o seu primeiro álbum. Seria sempre especial para si. Mas para além disso, no imaginário colectivo, permanece como um daqueles documentos que foi capaz de fixar um tempo e um espaço – a cidade de Nova Iorque dos anos 70.
É uma obra especial porque quando a fiz não tinha nada para comparar. Os álbuns de que gostava nos anos 60 bastavam-se a si próprios. Tinham um universo só deles. Sentia isso quando ouvia Jimi Hendrix ou Bob Dylan. Era como entrar num filme. Tentei que Horses tivesse essa mesma urgência, misto de cinema, poesia e música. De alguma forma todos os meus álbuns contêm algo de semelhante, mas aquela pureza é irrepetível. Algumas daquelas canções resultaram das minhas deambulações com [William] Burroughs ou [Allen] Ginsberg e da minha relação com a poesia. Havia esse fascínio. Estava centrada nisso, não posso dizer que tinha uma grande visão do mundo em sentido lato, mas olhava para o meu lado e via gente como eu, que se sentia à margem e procurava enquadrar-se, e de alguma forma esse disco contribuiu para criar um sentido de comunidade, como se de repente percebêssemos que não estávamos sozinhos. Entretanto, eu mudei. O mundo mudou. Mas não creio que, hoje, seja muito diferente. Continuo a achar que a música tem essa capacidade de aglutinar pessoas à sua volta, fazê-las ver que não estão sós, que existem outros a sentir o mesmo, e isso é uma força incrível.

Existem muitas vozes que proclamam que a relevância estética e cultural do rock se esbateu nos últimos tempos, tornando-se mero entretenimento. Parece-lhe que a energia idealista, que associamos aos anos 70, se mantém?
Se não o sentisse já teria desistido. Claro que não posso falar por todos os artistas, nem pelo público, mas olho à minha volta – e para as muitas pessoas novas que nos vêm ver – e pressinto neles novas esperanças, uma energia nova, novas ideias. Cantar para essas pessoas é revitalizante. Não sou ingénua. Sei que aqueles milhares de pessoas à minha frente não são todos idealistas. Mas muitas dessas pessoas, a grande maioria, são. É evidente que também haverá cínicos no meio delas, mas nos anos 60 e 70 eles também estavam lá... [risos]. Não creio que hoje seja diferente. Sinto que elas nos vêm ver porque têm esperança. Quando damos um concerto é como se criássemos o nosso pequeno mundo, que está intimamente ligado ao lá de fora, mas naquelas duas horas é outra coisa, é algo nosso. O nosso mundo passa por transformações problemáticas, mas no meu mundo sonoro não renuncio à esperança. Recuso-me – por mais conflitos que existam por esse mundo fora – a apresentar um corpo de trabalho sem esperança. Não saberia ser uma pessoa cínica.

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Gloria Horses

Mas não lhe parece que o papel dos artistas e dos intelectuais, seja no sentido de propor novos ideários, ou de estimular novos códigos comportamentais ou estilos de vida, é diferente hoje, até pelo confuso ambiente comunicacional?
Sem dúvida, mas continuamos todos a navegar no mesmo barco, interdependentes uns dos outros. Habitamos todos o mesmo mundo e queremos ser compatíveis entre nós. O meu único privilégio, se posso dar-lhe esse nome, é poder conferir um sentido a isso, através da minha música, da poesia, dos livros, da arte. O meu compromisso é comigo e com aqueles que me rodeiam. Não controlo tudo. É impossível. Mas tento fazer a minha parte, que é utilizar a palavra, ao mesmo tempo dando-a a todos, favorecendo a criação de vozes individuais e de uma voz global capaz de abrir novas perspectivas. Continuo a achar que há muitas pessoas a envolver-se com a arte de forma séria e profunda. Claro que hoje vivemos num mundo confuso em termos de comunicação, mas continuamos a desejar estar juntos, ser reconhecidos pelos nossos pares, encontrar motivos para estarmos unidos. E a música tem essa grande faculdade. Para mim, continua a ser um território de aprendizagem. Quero aprender tanto como aquela pessoa que está na assistência. Nos festivais não assisto muito a concertos, mas gosto de andar pelo meio do público, durante o dia, quando estão menos pessoas, e de falar por vezes com elas para perceber a sua energia e o que as motiva. Não creio que seja diferente hoje de há 40 anos. Mas, mesmo que seja, o meu trabalho quando vou a um festival é concentrar toda a minha energia no concerto. Dou tudo o que tenho, seja para cem ou para cem mil pessoas. O meu foco é esse. A comunicação. Tocarmo-nos. E se tocamos antes de outra banda preocupo-me também em deixar um espírito positivo no palco, de forma a que a não me acusem de provocar más energias... [risos].

Numa outra entrevista dizia-me que a sua principal preocupação eram os problemas ambientais, mas nos últimos anos os focos de tensão (crise económica, extremismos, guerras, refugiados) não param de aumentar. Nesse sentido, nos anos 60 ou 70, as mudanças a propor pareciam mais identificáveis.
Sim, é verdade. Nos anos 60 protestávamos contra a Guerra do Vietname ou preocupávamo-nos com o movimento dos direitos civis. Era mais fácil, talvez. Ao mesmo tempo, a música passava por uma fase de renascença cultural. Hoje sinto as pessoas mais perdidas, sim, no sentido em que estão insatisfeitas, mas não sabem para onde canalizar essa insatisfação. São tempos perigosos, porque podem dar origem a explicações simplistas ou contribuir para o surgimento de figuras como Donald Trump, que é uma extensão dos media sociais e do mundo dos negócios, alguém que representa os aspectos mais negativos da cultura americana. Vivemos imersos numa cultura massificada, pouco atenta aos valores humanistas, e Trump é um exemplo deste período muito narcisista que vivemos.

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Será a segunda vez que Patti Smith toca Horses integralmente em Portugal: a primeira foi no Primavera Sound melodie mcdanies

Por falar em figuras emergentes, já tocou no Vaticano, conheceu o Papa Francisco, como avalia a sua actuação?
O Papa Francisco é alguém que me interessa muito. Ele é católico, eu não, mas a sua visão não é circunscrita aos católicos, é global, e isso interessa-me. É uma figura singular, sendo ao mesmo tempo um líder espiritual, mas também, à sua maneira, um líder político com uma preocupação humanista. É talvez – dentro das figuras com dimensão mundial – a voz mais preocupada hoje em dia com o ambiente ou com a sociedade consumista e à beira do esgotamento. E percebe-se que é uma preocupação sincera e profunda, tendo ao mesmo tempo uma forma muito revolucionaria de olhar para a maneira como nos podemos unir para provocar mudanças positivas. É um prazer ouvi-lo falar sobre a instabilidade do nosso mundo, por causa do extremismos, dos refugiados ou das mudanças climáticas. Não é alguém que fale apenas para apaziguar. Não. Está muito consciente dos problemas, não tem uma forma simplista de os olhar, e deseja que pensemos de forma séria no mundo que estamos a construir, promovendo mudanças. Só tenho pena que não tenha agora 40 anos. Gostava que ele fosse mais novo, para poder estar connosco mais tempo, ajudando-nos o mais possível. É apenas um homem, claro, portanto não é perfeito e tem de seguir uma série de regulamentos, alguns dos quais provavelmente preferia não seguir. E tem de lidar, naturalmente, com muitos poderes, alguns visíveis e outros menos, mas mesmo com todos os condicionalismos tem tido uma acção incrível. Agora não depende apenas dele. Longe disso.

Quem também suscitou muitas esperanças, aquando da sua eleição, foi Barack Obama. Provavelmente essas expectativas desmesuradas até o terão prejudicado. Ou não?
Não sei. Mas sei que o Papa Francisco é muito mais revolucionário do que Barack Obama... [risos]. Quando ele foi eleito achei que era óptimo para o país. E como é evidente aconteceram muitas coisas positivas. Só o facto de termos um presidente negro provocou mudanças, embora também tenha favorecido o surgimento de posições mais polarizadas – sempre que acontecem transformações positivas surgem também posições extremistas. Mas, enfim, houve uma abertura cultural muito grande e que é inegável, independentemente de continuar a haver problemas raciais. Mas por outro lado, Obama, na minha visão, mostrou-se muito verde na forma como lidou com o Congresso e com os Republicanos. Viu-se muitas vezes de mãos atadas e isso aconteceu por uma deficiente apreensão da forma como o nosso sistema funciona, do ponto de vista político e económico. Ele pensava que iria reunir a grande família americana à sua volta mas as coisas não funcionam assim. E a maior desilusão é que acabou por ser mais um presidente militarista. Prometeu fechar Guantánamo e abandonar a ocupação do Iraque, e fê-lo lentamente, mas depois entrou no Afeganistão. Não creio que ele tenha, desde o início, tido consciência de uma série de mecanismos de poder e isso enfraqueceu-o. Do ponto de vista ambiental poderia também ter feito muito mais. O Papa Francisco confronta muito mais poderes do que Obama. Deixou a sua marca desde o início. Obama só agora tenta deixar a sua marca, mas parece-me que se deixou enredar em compromissos de poder que foram nocivos.

No festival Primavera Sound do Porto dedicou a canção Elegie a todos os que já tinham perdido entes queridos e nomeou lendas do rock já falecidas como Lou Reed ou Joe Strummer. Muita gente que pertenceu à sua comunidade, seja de afectos ou artística, já morreu. Pensa na morte?
Sim, é inevitável. Tenho 68 anos e já vi desaparecer muita gente à minha volta: o meu marido, os meus pais, o meu irmão, Robert [Mapplethorpe], músicos, escritores amigos, enfim, muita gente. É triste, claro. E às vezes muito doloroso. Mas continuo a trabalhar com pessoas de quem gosto. São a minha comunidade. Tenho sorte. Lenny Kaye tem a mesma idade que eu, começámos juntos, é o meu guitarrista desde sempre. A minha banda é como uma família. O meu baterista Jay Dee Dougherty está comigo há 20 anos, portanto estou rodeada de boas pessoas. E sou uma trabalhadora e continuo a gostar do que faço. Quando estou em palco não penso no passado. Horses foi gravado há 40 anos mas queremos trazê-lo até ao presente. Não perco a minha energia a pensar nas pessoas que perdemos – prestamos-lhe homenagem, o que é diferente – porque o importante são as pessoas que estão ali, naquela noite, e o que fazemos juntos, utilizando material do passado para, quem sabe, nos ajudar a iluminar o futuro. Sim, perdi imensa gente na minha vida, mas preocupo-me muito com as novas gerações – tenho dois filhos, com 28 e 33 anos, ambos músicos – e com o futuro. Não posso estar sempre a olhar para trás. É preciso olhar em frente. Faço-o por eles. E por mim.

Dá ideia de que nos últimos tempos as novas gerações redescobriram a sua obra, ao mesmo tempo que se revêem em si, talvez porque projecta autenticidade. Mas certamente que também é alvo de mal-entendidos e que dizem de si coisas de que não gosta. Recorda-se de algo em particular?
Não me posso queixar. É verdade que, em geral, me sinto bem tratada pelas pessoas, mas também provoco muita comichão em muitas outras...[risos]. Enfim, é a vida. Aquilo que me chateia mais é pensarem que sou uma celebridade, que ganho milhões e esse tipo de coisas. Sempre fui uma trabalhadora. Comecei aos 14 anos, numa fábrica. Sou de uma família pobre, com mais três irmãos, e todos trabalhávamos. Quando o meu marido morreu e depois regressei à actividade, a meio dos anos 90, percebi que havia muita gente que achava que nunca tinha feito nada na vida, o que me surpreendeu. Em primeiro lugar, porque, em si, não era verdade. E em segundo porque implicava pensar que criar música, poesia, arte e criar dois filhos não era grande coisa. Isso irritou-me. De resto, ao longo dos anos, ganhei algum reconhecimento, mas levo uma vida muito simples. E assim pretendo continuar. 

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