MCK e Bonga, juntos, pela liberdade de expressão em Angola
MCK, 34 anos, é rapper e uma das vozes mais contestatárias do regime angolano. Bonga, 72 anos, é talvez o maior símbolo da música popular de Angola. Juntaram-se em palco, esta terça, no MusicBox de Lisboa, exigindo a libertação dos activistas detidos há mais de dois meses.
“Essa música fica por aqui porque, nesta parte, iria entrar a voz do Ikonoclasta”, disse MCK, ou seja Katrogi Nhanga Lwamba, 34 anos, formado em Filosofia, agora a estudar Direito, umas das vozes críticas do regime angolano, naquele que foi o seu primeiro concerto em Portugal.
Estava explicitado o simbolismo da interrupção. O também rapper Ikonoclasta, ou seja Luaty Beirão, foi um dos 13 activistas detidos em Luanda, no mês de Junho, quando se reuniam para debater política à volta de um livro sobre resistência não-violenta contra a opressão.
Outros três foram presos nos dias seguintes, juntando-se a Marco Mavungo, que está detido desde Março. Continuam na prisão, alguns em celas solitárias, sem acusação formalizada, sendo aludido que estariam a preparar “actos tendentes a alterar a ordem e segurança pública do país.”
Na terça-feira, no MusicBox, em Lisboa, pediu-se a libertação. Não é a primeira vez que acontece. Desde que foi tornado público o vídeo-manifesto Liberdade Já!, suportado pelas mais diversas figuras angolanas e portuguesas, mas também moçambicanas ou brasileiras (Agualusa, Ondjaki, Kalaf, Nastio Mosquito, Paulo Flores, Pepetela, Mia Couto, etc), que acontecem iniciativas que denunciam a situação.
A razão directa do concerto era a reedição, em versão aumentada, do álbum Proibido Ouvir Isto (2012) de MCK, referência da nova música angolana, mas relativamente desconhecido em Portugal. Mas como é evidente desde o início que se sabia que aquele não iria ser mais um concerto. Existia a carga emocional dos momentos especiais. Antes mesmo de a música começar, Pedro Coquenão (Batida), subiu ao palco para dizer que o mote da noite era apenas um: “liberdade!” E foi isso mesmo.
Na sala, repleta, como seria de esperar, estavam muitos angolanos, mas também portugueses, sorvendo as palavras de MCK e, depois, ao longo da noite, também de Aline Frazão, Valete e Bonga. Para lançar as bases rítmicas, lá estava o sempre generoso João Gomes (Orelha Negra).
A música, como é evidente, também é contexto. Nas letras de MCK sente-se a riqueza da tradição oral africana, misturada com a eficácia do rap, revertida para acontecimentos precisos da vida sociopolítica de Angola. Por vezes, nestes casos, corre-se o risco do anacronismo. Mas à luz dos acontecimentos actuais, e no contexto de um país em transformação, com todos os antagonismos que daí advêm, adquirem uma ressonância precisa.
É inegável que as novas gerações angolanas ligadas às músicas e às artes estão a jogar um papel importante neste período, reflectindo e estimulando um desejo de mudança para o seu país – no sentido de ser projectada mais justiça, igualdade, tolerância e liberdade.
É verdade que nem todos se revêem de igual modo no olhar tantas vezes simplista que é lançado do Ocidente sobre África (como se todas as questões do continente se resumissem a elites corruptas ou a lideranças musculadas), mas no caso concreto dos detidos sente-se convergência de posições.
Onde também existe confluência é no amor a Angola, “independentemente da pobreza, dos gatunos e da corrupção”, haverá de declamar MCK na direcção da cantora Aline Frazão, a primeira convidada a subir ao palco. Aline concordou, recordou que havia estado naquele palco há meses na companhia de Ikonoclasta e expos a sua excelente voz, cantando com emoção “eu vou morrer aqui.” Sendo aqui, a sua Angola.
O que fascina em MCK é a forma fluída, aparentemente fácil, como debita palavras incisivas, sob batidas secas, sem ornamentos desnecessários. “Os diamantes são deles / O petróleo é deles / A imobiliária é deles / A banca é deles”, canta de forma clara em O país do pai banana, antes de declamar que “Pobreza é negócio / Transformaram Angola no país do futuro / Pois é / Deixamos tudo p’amanhã, né?”, numa crítica velada às elites angolanas, mas também aos que nada fazem para a mudança.
Depois surgiram alusões mordazes aos governantes que se perpetuam no poder – “o meu presidente foi presidente do meu avô, do meu pai e meu presidente e vai ser presidente dos meus filhos e dos meus netos”, disse – antes do rapper Valete irromper no cenário, expondo a habitual e contagiante energia, perante uma assistência totalmente conquistada.
Foi nesse caldo que entrou em cena Bonga, apresentado por MCK como sendo a personificação da angolanidade, 50 anos de canções, da luta pela independência à aflição da guerra, passando pela fase actual, com um país à procura de si próprio, quase a celebrar 40 anos de independência.
O “kota”, como era carinhosamente nomeado pelo rapper, enalteceu o papel de intervenção de MCK e das novas gerações, recordando o papel que a música pode ter na mobilização e no despertar de consciências, recordando que ao longo do seu percurso nunca deixou de ser ele próprio, mesmo se existiam forças que o impeliam para não o ser.
“Não tenham medo, nunca!”, exultou, antes de se lançar na interpretação de três canções, com acompanhamento acústico, perante uma plateia que absorvia a sua voz enrouquecida e histórias que ela contempla. Depois houve ainda tempo para ele e MCK se agruparem na interpretação de mais um tema, simbolizando uma importante irmanação geracional.
Bonga reconhece o activismo e a música das novas gerações. Estas agradecem-lhe o imenso legado e sem deixarem de procurar novas linguagens e expor insatisfação, não deixam de estimar a Angola de todos.
Na terça-feira, no MusicBox, num concerto onde a receita reverteu para as famílias dos detidos, houve qualquer coisa nova que pairou no ar. Alguns dirão que é um novo alento. Outros, desejo de liberdade.