A vingança de Assad atinge novamente Ghouta, onde quase só morrem civis
Cercado, sem água, comida e medicamentos, o Leste de Ghouta é palco de uma das piores crises humanitárias na Síria. Bombardeamentos desde o início do ano mataram 462 civis, mas apenas 16 eram rebeldes.
Caças do regime sírio responderam ainda durante a manhã ao ataque na capital com uma onda de bombardeamentos aéreos. Morreram pelo menos 31 pessoas e outras 120 ficaram feridas, de acordo com o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, uma organização anti-Assad com centenas de activistas no terreno que avança também o número de vítimas para o centro de Damasco. Não há notícias de combatentes separatistas entre as vítimas de Ghouta. As imagens que surgiram pouco depois dos bombardeamentos são de crianças e homens vestidos à civil, mortos e ensanguentados no chão de um hospital improvisado, e de um mercado atingido pelos aviões de Assad.
É uma imagem muitas vezes repetida no Leste de Ghouta e nos arredores de Damasco. Os ataques aéreos do Governo sírio mataram mais de 2826 civis nos arredores da capital síria desde Janeiro de 2012, nas contas do Centro para a Documentação de Violações na Síria (VDC, na sigla em inglês), que monitoriza o número de vítimas no conflito desde Abril de 2011. Mais de metade, 1740, morreram no Leste de Ghouta. A organização calcula que os mesmos bombardeamentos tenham vitimado apenas 63 membros de facções rebeldes.
São números que equivalem a "crimes de guerra", nas palavras da Amnistia Internacional, que publica, também nesta quarta-feira, uma investigação aos bombardeamentos governamentais dos primeiros seis meses de 2015 no Leste de Ghouta. A investigação baseia-se em números do VDC e em dezenas de entrevistas com testemunhas e residentes. Segundo o relatório, entre Janeiro e Junho morreram nesta região pelo menos 462 civis, mas apenas 16 combatentes rebeldes. A Amnistia Internacional investigou 13 ataques, dos quais resultaram 231 vítimas civis e três rebeldes. "Em pelo menos dez dos 13 incidentes que a Amnistia Internacional investigou, conclui-se que não existia nenhum objectivo militar legítimo nas proximidades ou no local atingido", escreve a organização. "Ataques tão desproporcionais são proibidos pela lei humanitária internacional e são crimes de guerra."
Termo de comparação: um ano de ataques aéreos da coligação comandada pelos Estados Unidos na Síria e no Iraque terá matado pelo menos 459 civis, de um universo de cerca de 10 mil combatentes do autoproclamado Estado Islâmico.
A vida em Ghouta
À semelhança do campo de Yarmouk, também nos arredores da capital síria, Ghouta é um dos exemplos humanitários mais graves da guerra civil no país. Foi Ghouta, Leste e Oeste, que Assad atacou com armas químicas em Agosto de 2013, o que quase precipitou uma intervenção militar dos EUA no país. Morreram centenas de pessoas, mais de 700 na zona Leste, muitas delas crianças. Assad prometeu desarmar-se de armas químicas e, em parte graças à intervenção da Rússia, os norte-americanos não invadiram a Síria. Mas Ghouta continuou a sofrer.
Há mais de 163 mil civis no Leste da região. Estão completamente cercados pelo Exército sírio, como também os cerca de nove mil rebeldes do grupo dominante na região, o Exército do Islão – no pico dos combates internos, no início de 2013, o Leste de Ghouta era disputado por 16 grupos rebeldes. O cerco governamental começou nos primeiros meses de 2012 e, com ele, as restrições à entrada de água, alimentos e material médico vindos de Damasco e de organizações humanitárias na Síria. Calcula-se que tenham morrido 208 civis de fome e falta de medicamentos até Janeiro deste ano.
Para fugir aos bombardeamentos – hospitais e escolas são frequentemente atingidos –, os poucos médicos que ainda vivem em Ghouta mudaram-se para espaços subterrâneos. Sem aquecimento ou ar condicionado, susceptíveis a vários cortes de energia. "Conseguimos lidar com a falta de ar", diz um médico à Amnistia. "Mas os feridos sofrem com a humidade, a falta de luz solar e o ar fresco, que lhes afecta a pressão arterial, as feridas e a saúde mental."
Faz parte de uma táctica de guerra do regime sírio, escreve a organização. Ao impedir a entrada de bens de primeira necessidade em Ghouta, o Exército assegura que os combatentes rebeldes não recebem mantimentos e, simultaneamente, desperta animosidade entre combatentes e residentes. Nas palavras de um dos civis: "Celebrámos quando o Governo sírio foi expulso, mas não sabíamos que iríamos estar cercados até que os grupos armados se rendessem. Por estes dias, com pouca ou nenhuma comida no prato, desejo que os grupos armados se rendam."
O cerco significa também a clausura em Ghouta. O Governo sírio permitiu o trânsito de civis até Agosto de 2013, pese o risco das várias detenções arbitrárias nos postos de controlo e dos vários casos de disparos de atiradores furtivos do Exército que atingiram quem procurava fugir para Damasco. Desde então, é praticamente impossível sair de Ghouta. Se não for o Governo a impedi-lo, são os combatentes do Exército do Islão. "Gostava de poder sair", diz um dos residentes à Amnistia. "A minha família e eu não temos comida, água ou electricidade. A assistência alimentar de organizações locais não dá para mais de uma semana ou duas. Mas mesmo que conseguisse subornar as autoridades sírias, o Exército do Islão nunca me permitiria sair. Há pessoas que tentaram pedir autorização e foram detidas."