Género, sexo e economia: “Somos todos potencialmente precários”
Depois de defender a liberdade de género, das mulheres aos gays passando pelo transgénero e outras sexualidades, a filósofa Judith Butler chegou ao corpo do migrante, do trabalhador, à precariedade. Onde estão as novas violências sobre os nossos corpos?
Políticas de austeridade, migrantes esperançosos a morrer nas costas das férias do Mediterrâneo, violência sobre estudantes no México, sobre as mulheres, os trabalhadores do sexo, as pessoas transgénero, os homossexuais. Leis da imigração “racistas”, exploração laboral temporária ou persistente, o medo em regimes autoritários, “o profundo sentimento de não haver futuro, o peso da dívida impossível de pagar”. Este é o mundo e Judith Butler só vive nele. Mas há 25 anos, ajudou a reenquadrar o olhar sobre as questões de género e sexualidade como construções culturais.
Na sua carreira e no Teatro Maria Matos, Butler fez um caminho que partiu então da teoria de género e de todo esse trouble que envolve feminismo, filosofia, linguística, teoria crítica e que instiga a teoria queer. Esse percurso serpenteou até uma reflexão também sobre a precariedade. Em linguagem 2.0, primeiro a sua fama era um retrato seu a circular na Internet em que se resumia a sua tese sobre o género como algo que é atitude, acção, performance e não algo de “essência”; depois tornou-se partilhada no vídeo em que fala aos activistas do Occupy Wall Street em 2011 em Nova Iorque.
Butler reclama a rua. O direito à visibilidade, à segurança de andar (sem companhia) na rua vestido de forma diferente, sendo gay, ou transgénero, num McDonald’s. “Andar é dizer que este é um sítio público onde”, explicou, estas pessoas que não se conformam às normas de género, às estruturas de poder heteronormativas e binárias, “são livres de se mover sem a ameaça de violência ou de prisão”.
Figura de negro de voz calma, pediram-lhe “ferramentas para combater a norma num mundo binário” (aquele que é feito de meninas e meninos e nada mais), agradeceram-lhe mudanças de vida, pediram autógrafos. No Maria Matos e neste programa que decorre até dia 24, Judith Butler estava a pregar aos convertidos, mas reconhece a discórdia sobre o seu trabalho - acusam-na de reduzir o género ao discurso, de indicar que o género pode ser escolhido, que há determinismo social, tudo ideias que desmonta regularmente e também em Lisboa - e até a dificuldade de alguns em ler Gender Trouble, ou Bodies that Matter - On the Discoursive Limits of Sex (1993), por exemplo, obras seminais dos estudos de género.
“Até hoje muitas pessoas preocupam-se porque Gender Trouble estabelecia o sexo como construído socialmente e assim recusava ou repudiava a materialidade do corpo. Tenho sonhos em que as pessoas me dizem isto”, sorriu, para libertar as primeiras gargalhadas de uma sala conhecedora da obra e suas atribulações.
Reiterou, começando a afinar a mira nos tais corpos importantes (e materiais, com o duplo sentido do inglês matter), que “o corpo é moldado e dotado de significado por uma moldura histórica e discursos históricos que o formam”. Enumerou as dissensões na visão científica na definição de sexualidade e sexo (o prisma da reprodução - e não há quem não queira ou quem não possa? -, contagem cromossómica, níveis hormonais, intersexuais fora do quadro). É tudo uma questão dos tempos, e das palavras que nos falham. “Há formas de sexualidade para as quais não há bom vocabulário precisamente porque as poderosas lógicas que determinam como pensamos no desejo, orientação, actos sexuais e prazer não admitem certos modos de prazer, práticas ou orientação sexual?” Judith Butler não mastiga as palavras, questiona-as. “Talvez o corpo seja o nome para a nossa humildade conceptual, o limite para os nossos esquemas conceptuais, talvez seja o local para a nossa falha linguística.”
Com parêntesis de humor, a teórica do género e activista apoderou-se serenamente das palmas, gargalhadas e dos assentos da assistência - cerca de 450 pessoas na sala, perto de 70 que assistiam por streaming no café do teatro e muitos outros também a ver na web os 45 minutos de conferência e outros tantos de perguntas e respostas à influente professora da Universidade da Califórnia - Berkeley.
A teoria de género
Enquanto a filósofa fala, João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira são gigantes no meio de uma multidão de ícones. Os artistas portugueses fizeram um painel que serve de fundo ao palco de Butler em que são como Golias entre pequenas figuras com carga queer. “Adoro isto”, riu-se Butler. Mais tarde lá voltaria para dar exemplos práticos de normatividade de género e suas flutuações com uma ajuda de Barbra Streisand. “É nas reuniões públicas que as formas visuais, audíveis e tácteis de reconfigurar quem são as pessoas têm lugar”, comenta sobre uma mulher que pode ser uma figura da cultura dominante nas revistas americanas, mas cercada por Freddie Mercury, Almodóvar, Bowie, James Dean, Mulher-Maravilha, Batman e Robin, Tootsie, António Variações, o Teletubbie púrpura ou a Eurovisão de Conchita Wurst. E, lá no centro e ainda Bruce, Caitlyn Jenner, a atleta olímpica e estrela da reality TV que, antes da sua transição mostrada esta semana a bater recordes no Twitter, vivia como Bruce Jenner. Um chapão trans na piscina da cultura popular, um episódio de tomada de consciência no mainstream.
Lisboa lá fora estava solar e morna. Butler lembra-o e faz à assistência uma de muitas perguntas. “Porquê preocuparmo-nos com isto?” Não deixa tempo para a resposta. “Porquê preocuparmo-nos com a forma como as mulheres, as pessoas que não se conformam a um género ou as minorias sexuais que não magoam ninguém são regularmente não-reconhecidos ou misrecognized [erradamente reconhecidos]?”, continua, evocando conceitos lacanianos e antropológicos. Porque se tornam espectros.
“Quando se vive como um corpo que sofre um reconhecimento errado, talvez insulto, perseguição, preconceito cultural, discriminação económica, violência policial ou patologização psiquiátrica, isso leva a uma forma de viver no mundo des-realizada, uma forma de viver nas sombras não como um sujeito humano mas como um fantasma. O fantasma de outrem. Mas estamos a vivê-lo.” E, defende, “a pergunta ‘quem pode ser reconhecido’ estende-se a muitas populações”, ao número crescente de pessoas que “vivem vidas precárias”.
A teoria de género de Judith Butler sempre se focou, vai frisando, em possibilitar que “as vidas das minorias de género e sexuais se tornem mais possíveis, mais habitáveis” - e forcemos a palavra uma vez só, para se aproximar do ethos Butler, “vivíveis”. A académica sugere (termo que usa discreta e persuasivamente) que a precariedade designa “condições politicamente induzidas nas quais certas populações sofrem mais do que outras” quando tudo falha, quando as redes sociais e económicas abrem brechas, e por isso esses grupos estão mais expostos à violência, ao risco. Algo que também é verdadeiro para “aqueles que não vivem os seus géneros de formas inteligíveis”.
Com Warhol, a rainha do deserto Priscilla ou o elenco de O Feiticeiro de Oz sobre o ombro, lembra o objectivo maior do seu trabalho: “não podemos deixar formas tão comuns de pensar limitar as nossas imaginações políticas”. Fala-nos do “importante movimento anti-despejos em Espanha”, da violência a que estão expostos os trabalhadores sexuais transgénero, vinca a importância do “domínio estético e teatral” para “contestar os limites arbitrários impostos no campo da aparência”.
Por que é que os corpos importam e interessam? O tema da conferência não era sequer uma pergunta.
“Quando dizemos que os corpos importam, como acho que dizemos, estamos a afirmar o valor que os corpos têm”, diz Judith Butler, que começou Bodies That Matter de mapa na mão (destino: “materialidade do corpo”, como escreve na obra) e acabou a abri-lo mais e mais. E a redesenhá-lo.
“Os nossos corpos só importam no contexto de uma qualidade justa e equitativa”, propõe, à esquerda, em Lisboa, num “futuro político baseado em princípios fundamentais ou no que chamamos democracia radical”.
Judith Butler gosta de ajuntamentos. Ecoam no Maria Matos elementos do seu texto de 2011 Bodies in Alliance and the Politics of the Street, que vai de Hannah Arendt à Praça Tahrir. Valoriza os protestos, os corpos que se reúnem e transitam da invisibilidade, da vergonha, do medo ou da pura ausência de personalidade jurídica (o imigrante ou o trabalhador sem papéis, a pessoa transgénero que vive de uma forma e tem um documento com outra, por exemplo) para um local mais iluminado “como que para dizer ‘Nós, os invisíveis, existimos’”, evoca. Fala da violência policial sobre a comunidade gay na Rússia ou da transfobia na Turquia. Corpos que se deram às balas ou, como explica em inglês, eles que “put their bodies on the line”.
As perguntas e respostas tocaram a necropolítica e Foucault, o neoliberalismo, a possibilidade de “alianças agonísticas” entre tantos que já (sobre)vivem “fora da norma binária” como a comunidade LGBT, os migrantes, os feministas, um convívio forçado da filósofa com “um político francês”. Só no final dessa interacção com a assistência é que a plateia se levantará parcialmente num longo aplauso. Mas Judith Butler, nascida em Cleveland e a quem em 1956 foi atribuído o género feminino - “são preenchidos formulários, somos postos no mundo como rapaz ou rapariga” - tem mais uma “sugestão”. Quer deixar uma mensagem. Corpos políticos remexem-se nas cadeiras para depois aplaudirem e ulularem.
“Continuemos a ser reactivos mesmo quando pareça que ficaremos assoberbados, mesmo quando pareça que não há esperança” perante as “condições em que a precariedade”, conceito que alargou com mãos de filósofa, “se torna mais e mais a norma”. Para Butler, a habitabilidade das “vidas incorporadas que somos e que merecemos ser”, exercendo a liberdade de género como qualquer outra, é um direito inquestionável.