Arqueólogos nas barbas do "Estado Islâmico"
Quando o “Estado Islâmico” pisou Palmira, cinco jovens arqueólogos portugueses, um belga, uma italiana e dois curdos estavam a salvar um pouco da Mesopotâmia, numa colina do Curdistão, não muito longe da linha da frente. Em vez de bandeiras negras, cachecóis do Benfica. Retrato de um mundo partido, entre guerras. Da nossa enviada Alexandra Lucas Coelho, no Norte do Iraque
O comandante Ato apoia-se nos sacos de areia e aponta para o horizonte, uma linha ocre debaixo de um céu azul, cortada por uma coluna de fumo: “Ali é o ‘Estado Islâmico’.” A que distância? “Um quilómetro vírgula oito”, responde ele, com precisão de carta militar. “Mas em Agosto estavam aqui.”
Aqui é uma trincheira no Norte do Iraque, um dos pontos da longa linha da frente que divide as tropas curdas dos jihadistas. E por toda a parte há sinais de como no Verão passado os jihadistas aqui chegaram. Nas nossas costas, Hassan al-Sham, a aldeia mais perto, está deserta, abandonada, possivelmente minada, e as ruínas da ponte que eles fizeram explodir continuam à vista, penduradas sobre o rio. Os soldados curdos, conhecidos como peshmergas, tiveram de fazer outra ponte até à trincheira. Trincheira mesmo: guaritas, barracas para a troca de turno, barreiras de metal, madeira e sacos de areia empilhados, com espaços para enfiar as armas, fazer mira.
Estamos entre Erbil, a capital curda, e Mossul, a maior cidade do Iraque dominada pelos jihadistas. Não exactamente a meio porque Mossul está mais perto. Caminhando em linha recta, chegaríamos aos escombros de Nimrud, a antiga cidade assíria que o “Estado Islâmico” fez explodir como a ponte, só que com mais dinamite, e direito a trailer. Assim acontecera em Mossul, em Hatra, teme-se agora em Palmira.
Porque à ficção do “Califado”, mais que imperialista, apocalíptica, não basta arrasar para a frente, “conquistar Roma, ser dono do mundo”, como proclama o “califa” Abu Bakr al-Baghdadi. É preciso arrasar para trás, destruir a história que vai do século XXI ao primeiro islão e a história anterior a ele até não haver história, apagar rostos, figuras, símbolos, templos, e portanto o começo da escrita, da troca de bens, das cidades.
Esse começo deu-se aqui na Mesopotâmia, a terra entre os rios Tigre e Eufrates que hoje corresponde à Síria e ao Iraque, sobre a qual conhecemos apenas fragmentos, o pouco que ficou em pé ou foi escavado. Teria sido preciso escavar muito mais, e guerras de várias espécies travaram a arqueologia nesta região, sobretudo na segunda metade do século XX. Mas à actual autonomia curda, sempre em braço-de-ferro com Bagdad, interessa trazer a história ao de cima, afirmar um mapa.
E uma das coisas que se aprendem numa colina da antiga Mesopotâmia é como a arqueologia avança através de pequenas sondagens: cortes na paisagem por onde o arqueólogo desce, milénio a milénio, até avistar um mundo.
Eis o que estão a fazer durante as próximas semanas cinco portugueses, um belga, uma italiana e dois curdos numa colina junto a Sulaymanyiah, segunda cidade do Curdistão. Quando a repórter os deixou para ir um par de dias à linha da frente, preparavam a logística que implica uma escavação nesta parte do mundo. Começam a conhecê-la: na temporada anterior, em 2013, antes da proclamação do “Estado Islâmico”, acharam uma tabuinha de argila com cinco mil anos que representará o início da economia, comprovando trocas entre Norte e Sul da Mesopotâmia. Não é um pedaço da Epopeia de Gilgamesh, o que representaria o início da literatura, mas isso também não seria impossível, como veremos ao longo desta estadia entre refugiados, soldados, checkpoints, caveiras, cacos de cerâmica, panelões de massa com atum, mais dias sem água do que com água, nunca esquecendo que o Benfica foi fundado em 1904, porque haverá um cachecol pendurado na despensa e outro no frigorífico. Vieram na bagagem deste regresso ao Iraque, agora nas barbas do “Estado Islâmico”.
A bagagem de um arqueólogo é sempre um problema. Há quase cem anos, quando acompanhava o seu marido Max Mallowan nas escavações, Agatha Christie tinha de se sentar em cima das malas para fecharem. Faz sentido lembrar Mr. e Mrs. Mallowan no aeroporto de Lisboa, à espera de voar para Sulaymanyiah via Istambul. Max Mallowan é uma das referências na Mesopotâmia, com toda a distância política e científica que o separa de arqueólogos como Ricardo Cabral, 31 anos, um dos três directores do projecto que a repórter vai acompanhar. Ele leu as memórias de Mallowan, teremos direito a detalhes na viagem, em que também seguem os arqueólogos Ana Margarida Vaz, 28 anos, e João Barreira, 32. A bagagem de cabine dos três amontoa-se na sala de embarque, mistura de pedreiros com escuteiros e tecnologia de ponta. Um arqueólogo contemporâneo vai assim de trolha a “piloto” de drone, e a repórter ainda não viu nada.
“Ainda bem que o André já levou a estação total”, diz Ricardo, contemplando o monte. Uma estação total é um pesado instrumento de medição que não pode viajar no porão, por ser delicado, nem na cabine, por não caber. André Tomé, 28 anos, o outro director português do projecto, levou-a no cockpit há uns dias. Foi adiantar os preparativos em Sulaymanyiah, incluindo achar uma casa para a equipa, porque a da escavação de 2013 fica num lugar isolado do vale e, com o advento do “Estado Islâmico”, os responsáveis curdos acharam que não era segura.
Horas depois, o voo de Istambul, lotado, sobrevoa o Norte do Iraque, passando por cima de Mossul, até descer para Sulaymaniyah, uma profusão de linhas bem iluminadas. O Curdistão cresceu desde a invasão americana de 2003, para os lados e para o alto, muita construção alimentada pelos negócios locais, petróleo, cimento. Dois autocarros modernos escoam os passageiros para um terminal moderno, onde os seis guichets de passaporte estão abertos, apesar de ser meio da noite. As bandeiras são do Curdistão, e basta um carimbo de entrada, nada de visto iraquiano. Só quem fica mais de 15 dias tem de passar depois por outra burocracia, também especificamente curda. É como entrar num país dentro de outro, sensação que os próximos dias só vão confirmar, em todos os sentidos. A autonomia curda é um facto, e um dos bocados em que o Iraque está partido. Mas enquanto se mantiverem os obstáculos internacionais a que o Curdistão seja um país — a começar pela Turquia, onde os curdos rondam um quarto da população —, vai manter-se a hostilidade entre este bocado do Iraque e os restantes, xiitas por um lado, sunitas por outro, tensões fratricidas que explodiram durante a ocupação americana (2003-2011), favorecendo a ascensão do “Estado Islâmico”.
Mossul, a “capital” iraquiana dos jihadistas, fica apenas a 80 quilómetros de Erbil, a capital curda. Os militantes do “Califado” só recuaram do cerco a Erbil quando Obama ordenou ataques aéreos, em Agosto. Mas ainda conseguiram detonar um carro-bomba junto ao Consulado americano, e isso aconteceu agora, a meio de Abril.
O carimbo nos nossos passaportes diz 7 de Maio, começo da madrugada. Em seguida, passageiros e malas empilham-se até ao tecto num mini-autocarro do tempo de Saddam, porque não se pode ir a pé até ao checkpoint das chegadas. O Curdistão passa o tempo nesta oscilação de quem gostava de ser o Dubai mas continua a ser o Iraque.
André está à nossa espera, dois carros para caber toda a gente e lá vamos pelo meio da noite até à aldeia onde fica a casa que, finalmente, depois de várias questões, foi possível alugar. Uma questão “sensível” para a vizinhança era a equipa ser mista, homens e mulheres. Além de trolhas e cientistas, os arqueólogos têm de ser diplomatas, e o facto é que a casa, mais que grande, são duas, portanto os homens vão dormir em cima, as mulheres em baixo. Mas como não há nada lá dentro, André só teve tempo de ir buscar uns colchões à casa antiga e limpar o piso de baixo, onde esta noite toda a gente vai dormir. De resto, o chuveiro há-de ser instalado, o autoclismo também, a sanita é de cócoras e o lavatório às flores, para compensar.
Amanhã, ou seja, daqui a pouco, vai ser preciso montar uma casa para dez onde se durma, cozinhe, coma e trabalhe. Além de comprar pás, picaretas, picos, cordas, estacas, carrinhos de mão, uma roçadeira para cortar as ervas da colina, loiça em segunda mão, mesas e cadeiras de plástico, caixas para guardar milhares de cacos de cerâmica, sacos para guardar centenas de ossos humanos, etiquetas, canetas, pincéis, arrobas de arroz e de comida em lata, garrafões de água porque a da torneira, quando há, não se bebe, e ainda trazer o fogão e o frigorífico de 2013 seja em que estado for, porque isto é uma escavação que todos os dias faz contas ao dinheiro.
Então, melhor aproveitar a montagem da casa, enquanto não se dão descobertas, e dar um salto à linha da frente já na manhã deste dia, que continua a ser 7 de Maio.
O objectivo é chegar o mais perto possível de Mossul, e isso quer dizer ir primeiro a Erbil. Duas estradas levam lá, uma passando junto a Kirkuk (cidade que era controlada por Bagdad e os curdos acabaram por tomar no meio da disputa com o “Estado Islâmico”); outra pela montanha (ao longo da fronteira com o Irão). Faremos a da Kirkuk à ida e a da montanha na volta. O tradutor contratado é amigo de amigos, chamemos-lhe Adan, quem guia é o irmão.
Colinas verdes, fábricas de cimento, boas estradas, uma das vias ainda do tempo de Saddam, a outra já da autonomia curda. Adan fala do medo dos carros-bomba e dos refugiados que não param de chegar, centenas de milhares vindos das zonas que os jihadistas vão tomando no Iraque e na Síria. Rebanhos de ovelhas convivem com fábricas, por exemplo, de gás. Desde casa já passámos dois checkpoints com peshmergas que nos mandam seguir. Um carro de matrícula curda e ocupantes que falam curdo tem mais hipótese de não ser parado. Adan explica que “peshmerga” quer dizer “pronto a morrer”. Os curdos estão sempre a honrar os seus peshmergas, tudo o que possa ser remotamente curdo, aliás.
Kirkuk é uma zona rica em petróleo, passamos o mais antigo campo do Iraque, e torna-se claro que há combates a menos de 70 quilómetros quando se multiplicam os checkpoints e nos revistam.
Depois, curvando para Norte, nenhum sobressalto até Erbil, que parece tranquila, com a sua cidadela ao alto. As alas do bazar onde se troca dinheiro estão desertas mas cheias de pacotões de notas, porque um dólar vale quase 1200 dinares. Mais movimento na ala da fruta, nêsperas, pêssegos, morangos, menos na dos alfaiates. E ninguém no artesanato. “O movimento caiu para metade desde há um ano”, diz Ali, o jovem vendedor. Vir comprar os tradicionais sapatos feitos à mão, por exemplo, não é uma prioridade agora. Ainda assim, Ali nunca pensou partir. “Temos de nos orgulhar do nosso chão. Quem nos quer tirar o sangue é que tem de ter medo. Se precisarem de mim, estou pronto a combater.”
Meio em obras, e cheia de bandeirinhas curdas, a cidadela tem aquele ar das ruínas demasiado refeitas, modesta herança comparada com outras no Iraque, e sobretudo na Síria. Mas a vista lá de cima abarca todo o horizonte além de Erbil, cidade planíssima, encostada ao deserto.
É quinta-feira, o que aqui significa pré-fim-de-semana desde o fim da manhã, altura em que andámos pelo Ministério dos Peshmergas de edifício em edifício, tentando uma autorização para ir à linha da frente. Incontáveis telefonemas depois, ao longo de todo o dia, um amigo de um amigo de Adan dá-lhe o contacto de um comandante que aceita receber-nos no dia seguinte.
De manhã cedo deixamos Erbil em direcção a Mossul. Uma paisagem de refinarias, chamas e chaminés, depois o trânsito desaparece. Adan, que faz de co-piloto, descobre um caminho mais curto do que aquele que o comandante lhe indicou e nisto chegamos a um grande checkpoint onde os peshmergas nos param, um pouco atónitos. Adan menciona o nome do comandante e tenta ligar-lhe, ele não atende. Os peshmergas dizem que dali para a frente é preciso guiar rápido porque o “Estado Islâmico” está a 10 quilómetros, do outro lado do rio, e há risco de snippers, só têm passado carros militares e aldeões que moram logo adiante. O tempo que esperamos confirma isso, um ou outro carro de agricultores e vários carros militares. Quando o comandante finalmente atende, diz que aquela não era a boa estrada, mas já que estamos aqui o melhor é ir ter com outro comandante, noutro ponto. Arrancamos com um nome e sem saber bem como chegar. Perdemo-nos, voltamos atrás, passamos rios, até de novo a estrada ficar deserta e aparecer o checkpoint junto ao acampamento militar que procurávamos. O tal comandante não está mas o seu vice vai receber-nos. Ontem era um problema ser quase fim-de-semana, hoje não.
“Têm sorte porque é sexta-feira, temos algum tempo”, diz o comandante Ato Zibary, cumprimentando-nos no seu gabinete, com fotografia em destaque do presidente curdo Massoud Barzani, que ainda domingo esteve com Obama em Washington. É um acampamento organizado, blindados alinhados cá fora, peshmergas marciais na continência, gabinetes bem mobilados.
Zibary, um peshmerga “político”, foi nomeado pela presidência, e a seu lado está o general Dedawan. O batalhão deles controla uma faixa de 35 quilómetros da linha da frente diante de Mossul. Como explica o comandante que uma cidade tão grande tenha caído em quatro dias, mil e tal jihadistas contra 30 mil soldados iraquianos, vai fazer agora um ano? “Erros de Bagdad”, responde Zibary. “A divisão sectária entre árabes xiitas [no governo em Bagdad] e sunitas levou a isto. Agora arrependem-se porque vêem que não conseguem lutar sozinhos. Essa divisão não tem que ver com os curdos, nós somos sunitas mas temos yazidis, cristãos, todos a viverem juntos.” E se as tropas iraquianas vierem com milícias xiitas, avisa o comandante, os curdos não participarão na retomada de Mossul. “Porque temos a certeza de que as milícias matarão muitos civis [sunitas] em Mossul.” Mas até à luz verde para a retomada, os peshmergas aguentarão em terra. “A força aérea americana ajuda-nos muito, alemães, canadianos, italianos, franceses... Demoram 12, 15 minutos a chegar do Kuwait.”
Retomar Mossul é “uma decisão política”, diz Zibary. “Depende de quando o exército iraquiano estiver pronto, porque nós estamos prontos há muito. Mais: se não fôssemos nós, o ‘Estado Islâmico’ já teria conquistado Bagdad.”
E nisto vão todas as tensões desta amálgama militar: curdos sunitas, árabes sunitas desmotivados, xiitas apoiados pelo Irão e força aérea de Obama e aliados. Um caldeirão de ex-inimigos que agora têm um fim em comum, derrubar o “Estado Islâmico”, quando há dois anos, em alguns casos, estavam a erguê-lo, ao armarem rebeldes sírios jihadistas contra Assad. Há dois anos, nada era pior do que Assad, e hoje nada é pior do que o “Estado Islâmico”, esse Frankenstein gerado pela guerra civil dos dois lados de uma fronteira que já não existe, a que dividia Síria e Iraque. Se na Síria a guerra era contra Assad, e no Iraque entre sunitas e xiitas, hoje há um “estado” maior do que a Grã-Bretanha a meio dos dois países, com uma capital em cada lado (na Síria, Raqqa, no Iraque, Mossul), e à volta está tudo partido. No balanço das intervenções e contra-intervenções estrangeiras desde 2003, dos Estados Unidos à Rússia, da Arábia Saudita ao Irão, é difícil imaginar pior.
Zibary, este comandante curdo de 50 anos que combateu Saddam, vê o “Estado Islâmico” como “uma continuação da Al-Qaeda, fortalecida pelos erros de Bagdad” desde 2003: “A América derrubou Saddam, deu o poder aos xiitas e assim beneficiou o Irão. O resultado da invasão americana foi dar o Iraque ao Irão. Todos estes erros levaram ao ‘Estado Islâmico’.”
O general Dedawan acrescenta: “O ‘Estado Islâmico’ junta a experiência de guerra no Afeganistão, na Tchetchénia, do regime de Saddam, da guerra civil síria, dos soldados ocidentais. São o mais forte inimigo da humanidade.” E olhando bem de frente a repórter: “Se eles derrotarem os peshmergas, você não se sentirá segura em Portugal. Estamos a lutar por si também.”
O comandante aceita levar-nos à trincheira. Em minutos, três blindados enchem-se de homens, incluindo um atirador e vamos por uma estrada deserta, entre destroços, passando Hassam al-sham, hoje uma aldeia-fantasma, e a ponte que os jihadistas rebentaram.
Cerca de 800 peshmergas revezam-se nesta região, substituídos de dez em dez dias. Há muito fumo no ar, do mato que os soldados queimam para ser mais fácil ver avanços do inimigo. A coluna militar pára junto a um pequeno monte. Os peshmergas saltam dos carros, armas em riste, e marcham pelos calhaus até à barricada. Quem está de turno cumprimenta o comandante e os forasteiros. Na tenda montada junto aos sacos de areia dorme quem fez o turno da noite. O horizonte parece quieto, uma planície árida com areia no ar, muito ao fundo recorte de edifícios. O perigo não são só os tiros, os soldados falam dos veículos que os jihadistas enchem com explosivos e lançam contra as trincheiras. “Há um mês foram duas escavadoras e três Humvees”, conta o comandante. “Foi a meio da noite, em geral atacam à noite, quando chove ou faz nevoeiro, porque aí a força aérea não pode actuar tanto.” O Humvee é um jipe militar americano, um dos muitos equipamentos que o “Estado Islâmico” arrebatou. “Eles têm armas muito sofisticadas do exército sírio, iraquiano, americano, russo...”
De novo a bordo do blindado, o comandante não aceita não como resposta. Teremos de ficar para o almoço no acampamento. Boa comida curda, arroz, frango, sopa, vegetais, azeitonas, frutas várias. Quase um feriado.
Como ainda vamos acabar a tarde mais a norte, em Lalish, o santuário dos yazidis, minoria religiosa que o “Estado Islâmico” massacrou em Agosto de 2014 (ver reportagem no PÚBLICO de sexta-feira passada), é noite escura quando chegamos à região de Erbil. Adan e o irmão têm amigos peshmergas junto à cidade que nos recebem para a ceia. São curdos que vieram do Irão, alguns há muito, alguns para combater agora, têm 50 homens na linha da frente, mas a novidade é que têm 25 mulheres. E são elas, com as suas fardas femininas, que depois da ceia hão-de trazer um colchão para a repórter dormir, guardada por bandeiras e retratos de heróis curdos.
Falam curdo e farsi, e lutam pela autonomia onde estiverem. Por exemplo, Shilan, 28 anos, perdeu dois irmãos no combate com as tropas iranianas e envolveu-se na causa curda aos 15. “Fui treinada por homens, somos a primeira geração de mulheres peshmergas. Primeiro houve homens que se espantaram, mas agora a presença de uma atrai outras.”
Kani, 27 anos, já combateu contra o exército iraniano e agora está aqui. É casada, o marido está na frente. Elas revezam-se para ir lá, em pequenas temporadas. “Não temos medo, estamos habituadas.” Sahar, 25 anos, casou mas agora fica por aí, em nome da luta. “Neste momento não queremos ter filhos.” Uma frase rara num contexto muçulmano. Shilan tem dois filhos, mas só foi uma vez à frente. E a mais bonita, Aiwan, 27 anos, nem pensa em casar. “Sou peshmerga, quero lutar.” A primeira luta é a independência, mas o “Estado Islâmico” tornou-se uma urgência. “Lutamos contra eles porque somos humanas, é dever de todos.”
Kamal, peshmerga de 47 anos que há muito mora na Suécia e agora voltou para treinar os jovens, fala na força do “Estado Islâmico”. Não é só “terem a experiência de guerrilha com armas muito modernas”. É o ânimo: “O que os distingue é que querem morrer, são suicidas, não batem em retirada. Ficam até à última bala e são impiedosos.”
Ele sabe do que fala, veterano da guerrilha curda antes de todo este conforto de tropas peshmergas com gabinetes e ministérios. “Vivíamos nas montanhas. Só às vezes conseguíamos um pouco de comida. Cheguei a estar 45 dias sem tirar os sapatos.”
Para não falar nos anos 80, quando milhares de curdos foram exterminados pelas tropas de Saddam num genocídio com armas químicas, e milhares de combatentes presos e torturados.
Rapidamente nos habituamos a que os dias aqui valham por dez, começando pelo facto de às 4h30 ser dia. Entre as despedidas aos peshmergas e a viagem de volta, Adan e o irmão contam como foi crescerem curdos no tempo de Saddam. “Os soldados vinham e destruíam as nossas casas. Aos seis anos vendíamos coisas na rua para ajudar em casa.” Hoje, Adan é arqueólogo, o irmão, professor de liceu. Longo caminho. No começo dos anos 90, quando às armas químicas se sucederam outros ataques de Saddam, fugiram a pé de Sulaymaniyah até ao Irão, 100 quilómetros à chuva. “A ONU entregava coisas aos iranianos e eles despachavam-nas para o mercado negro. Mas houve aquele dia em que a Unicef decidiu ir ao campo entregar em mão e de repente éramos milhares de crianças às cores, vestidas de rosa, vermelho, azul…”
Mesmo sem Saddam, Adan continua a não ter boas palavras para Bagdad. Há meses que não recebe a sua bolsa de doutoramento, congelada pelo governo xiita iraquiano. Milhares de funcionários também não recebem os salários. O boom do Curdistão está suspenso no ar, como as centenas de prédios que passamos nos arredores de Erbil, bairros inteiros que ficaram a meio porque entretanto caiu o petróleo, veio a crise e o “Estado Islâmico”.
Ao longo da soberba estrada de montanha, Adan e o irmão têm ainda outra memória, a de quando resolveram trepar por estas rochas e descobriram que elas ainda estavam minadas, desde a guerra com o Irão nos anos 1980. Tiveram de voltar saltando de pedrinha em pedrinha, sem pisar o chão.
Entretanto, rapazes penduram na estrada faixas em homenagem a combatentes curdos que acabam de ser mortos pelo “Estado Islâmico”.
Onze pares de botas no pátio. A casa pulula de arqueólogos e uma visita. Veio o fogão, Ana prepara o almoço. Veio o frigorífico, mas a porta voou no caminho, foram à procura dela, não acharam, o frigorífico foi para arranjar. Já há mesas e cadeiras na cozinha, despensa cheia, loiça, tachos. A sala da frente começa a parecer uma oficina de trabalho, mesas montadas, computadores, um estendal de equipamento. Na sala de dentro, esteiras e espumas para toda a gente, sala oriental.
Tiago Costa, 27 anos, o perito nos cacos de cerâmica que veio à frente com André, faz um ponto da situação aos que chegaram depois. Ana já escavou na Síria, Ricardo na Síria e no Iraque, mas João está a estrear-se nesta parte do mundo, e Mustafa Ahmed, o entusiástico estudante que hoje cá está em visita, também quer ser arqueólogo. “O mais importante é pensar isto como algo único, que vale pela própria experiência”, diz Tiago. “Idealmente encontraremos um compartimento cheio de cerâmica, mas não podemos esperar nada.”
A repórter é apresentada a Awaz Shadan, 26 anos, e Zana Abdulkarim, 30, os dois arqueólogos curdos nomeados pelas autoridades locais para viverem com a equipa; a Giulia Gallio, 25, a italiana mais inglesa das redondezas, que não por acaso mora em York, e será a antropóloga responsável pelos ossos; e Steve Renette, 33, o flamengo de barba ruiva que é um dos três directores deste projecto, ao lado de Ricardo e André.
Como Steve está ligado à Universidade de Pensilvânia e Ricardo e André à Universidade de Coimbra, institucionalmente isto é uma parceria entre as duas universidades e as duas partes vão-se revezando no financiamento. Para 2015, foi Steve que arranjou o orçamento. Mas os três estão sempre a pensar como viabilizar a escavação no futuro. Esta colina foi pessoalmente escolhida por eles e ninguém aqui recebe salário. João veio apesar de estar planear a sua tese de mestrado, porque queria mesmo trabalhar na região, ajudar os amigos. Os cinco portugueses são grandes compinchas em Coimbra, colegas de turma, de apartamento, de escavações e férias, há anos. Ao fim de dez dias com eles, uma pessoa até pondera voltar a Coimbra.
Onze à mesa. Numa comuna deste género só deve haver duas hipóteses, ou o humor ganha ou a falta de humor mata, sobretudo ao fim de um mês a trabalhar 12 horas com hérnias e 50 graus ao sol. Aqui, tanto quanto a repórter verá, até a discreta Giulia tem de tirar os óculos para limpar as lágrimas de rir. Ricardo é o Seinfeld do Mondego, e Zana, o curdo, um viking da stand up, mesmo sentado. Tudo isto sem um grau de álcool, nem na grande noite que espera o Benfica, porque o álcool é uma daquelas “questões sensíveis” na vizinhança.
Awaz estreia-se no chá com canela, que se tornará um must da casa. Copos e gente pelo chão da sala, o capitão André abre o saquinho do tesouro, aquele que diz: “KS 13 / 1017 / SF-27”. Traduzindo, KS é Kani Shaie, o nome da colina; 13, o ano do achado; 1017, a camada; SF, Small Findings (Pequenos Achados), e 27 o número do achado.
Eis a tabuinha de argila com mais de cinco mil anos que prova como André, Ricardo e Steve escolheram bem a colina: há talvez 5200 anos, um homem rolou o cilindro em relevo que era a sua assinatura, imprimindo num bocado de argila fresca o desenho nítido de veados a serem transportados de barco. À direita, fez uma perfuração, indicando a quantidade, provavelmente dez, algo que ainda não era praticado aqui. Estamos assim perante o começo da burocracia, da contabilidade, da economia: uma factura. E uma factura que aponta para uma relação com a Uruk de Gilgamesh, então a grande cidade da Baixa Mesopotâmia. Talvez a nossa colina tenha sido uma colónia de Uruk e venha a revelar como as primeiras cidades se expandiram para Norte, e porquê. “Nossa colina” porque isto já se tornou uma observação participante.
Steve teme pelo chá na vizinhança do tesouro e a tabuinha volta ao saco de plástico. Tiago espalha cacos como quem estuda um puzzle, coadjuvado por Ricardo e João. Mas nada bate a imagem de Giulia no chão, a esfregar uma caveira com uma escova de dentes, incluindo os próprios dentes da caveira. “Podemos ver pela forma da mandíbula que é uma mulher, e devia ser jovem porque os dentes estão bons.”
Este projecto não anda à procura de caveiras, gostaria mesmo de as evitar. O problema é que tendo de escavar de cima para baixo vai ter de lidar com os ossos de todos os defuntos enterrados por cima das camadas milenares, que são as que importam neste caso. E como isto não é um filme do Indiana Jones, nem sequer a época de Max Mallowan, tudo o que um arqueólogo vá achando deve ser cuidadosamente escavado, identificado e guardado, mesmo que não lhe interesse nada e pese nas hérnias e no orçamento.
As conversas cruzam-se. Ouvindo que a repórter foi a Lalish, o santuário dos yazidis, Ricardo, que ama os yazidis, explica-nos o problema que eles têm com a alface. Há uma propensão para amar os yazidis nesta equipa. “Lalish é o meu lugar favorito”, anuncia Steve. Entretanto, noutra zona da sala, alguém pergunta se há corda, alguém responde que há corda para dez temporadas, o frigorífico regressa com porta, e o capitão André recapitula os problemas: “Temos de ir tratar do prolongamento dos vistos, temos de ir arrancar as ervas…” Se não chover, porque ameaça.
Entretanto, como depois de amanhã temos de ir ao Museu de Sulaymaniyah, e hoje o poente promete, os três directores não querem acabar o dia sem um pulo à colina. Ricardo enfrentará a roçadeira que comprou no bazar. Já inventou até um escudo para as pernas com os cartões de uma embalagem e, como não tem máscara, vai de óculos de sol.
De Tasluja, a aldeia onde moramos, à colina da escavação, tudo depende do checkpoint a meio, varia entre 15 e 30 minutos. Há um ponto em que o carro sai da estrada e entra por um caminho com estufas de um lado e do outro. Aí, estamos em pleno vale de Bazian, atravessado desde há milénios, vastidão mansa de colinas verdes, pedra branca e campos de trigo, hoje ensombrada por três cimenteiras que lentamente comem as colinas, com um rugido permanente. A região não só foi pouco estudada, como agora estão a rebentá-la com dinamite.
Ao poente já tudo passa de verde a dourado em silêncio. O sol que apareceu no Irão desaparece na Síria, lá adiante, onde os deuses de Palmira hão-de ver chegar bandeiras negras. Estar aqui é escavar contra essa destruição, quase um trabalho de Sísifo, recomeçando de cada vez. Por exemplo, desde 2013, o mato tomou a colina, mas é para isso que serve uma roçadeira.
“Kani Shaie!”, exulta André, saindo do carro como se voltasse a casa. Trepamos. Papoilas, trigo selvagem, ninhos de vespas. No cimo há uma pequena árvore, a vista é assombrosa e só de pisar aparece cerâmica. “É uma colina tão pequena que tendem a não lhe dar importância, e agora está toda a gente espantada com o que achámos”, diz Steve. Uma das poucas escavações neste momento no Iraque, uma das únicas portuguesas no mundo.
“Em 2013, fizemos um corte para chegar aos níveis mais antigos de forma rápida”, explica André. “E agora queremos expandir cada degrau.” Ou seja, cada milénio. Com o seu colherim — uma espécie de colher de pedreiro mas em forma de losango e muito mais forte —, André cava entre o terceiro e o quarto milénio a.e.c. (antes da era comum), enquanto Ricardo já anda com a roçadeira a zunir, impávido perante as ervas e pedras que vão saltando.
Em meia hora, André e Steve acharam mais cacos do que conseguem trazer nas mãos. “A cerâmica é o nosso melhor amigo [para situar épocas], mas também pode ser o amigo mais aborrecido”, diz André. Escurece, cheira intensamente a erva, o operário Ricardo descansa, antes de logo começar a debater onde vão cortar a terra, abrir mais sondagens. É um diálogo que só arqueólogos podem ter: “Repara, aqui estou no terceiro milénio”, diz um, em pé na encosta. Medem o terreno às passadas, decidem o número de trabalhadores. “Podemos começar com 12”, propõe Steve, prudente: 12 salários a sair do orçamento.
E ao serão, no pátio, entre os relatos de uns, bolseiros; outros, professores só metade do ano; outros, desempregados depois de estágios de 600 euros; Ricardo compara arqueologia e astronomia. “Quando olhamos uma estrela, também estamos a ver o passado. São duas máquinas do tempo.”
Kani Shaie é a colina que escolheram, e escavar, o que mais gostam. Talvez não haja outra forma de estar num lugar como o Iraque.
Na manhã seguinte, toda a casa ruma ao Museu de Suleymaniyah, onde primeiro seremos recebidos por Kamal Rahim, o director do Serviço de Antiguidades a que os arqueólogos estrangeiros reportam. André, Steve e Ricardo têm vindo a abrir caminho nesta relação desde 2013, e o que entretanto acharam ajudou. Mas de cada vez há burocracia e diplomacia para resolver.
Ainda bem que o gabinete é grande, porque, à boa maneira oriental, vai acumulando gente à espera de ser recebida. Pouco depois de nós, chegam três arqueólogos japoneses, que trazem presentinhos, e depois um arqueólogo espanhol, que tem pelo menos uma coisa em comum com todos os portugueses em Sulaymaniyah: é um fã de Cláudio Torres. Mulheres de preto servem copinhos de chá, os sofás são de napa, há fotografias do presidente na parede, lenços de papel na mesa, ao lado de um calendário da Asia Oil.
O director desdobra-se. Enquanto André e equipa vão tratar dos vistos, incluindo tirar sangue, ele atende a repórter entre os japoneses e o espanhol. “Nesta região de Suleymaniyah, só houve duas escavações no século XX, uma entre 1947 e 1955, de ingleses, outra entre 1957 e 1959, de dinamarqueses”, resume. “Depois, o regime de Saddam não autorizou mais. Foi por isso que em 2003 abrimos portas e janelas a estrangeiros. Temos vestígios desde a Idade da Pedra ao islão, um espectro muito longo, e tentamos que cada projecto escave um período diferente.” André, Steve e Ricardo estão focados no terceiro e quarto milénio a.e.c. “É a primeira equipa a trabalhar esta era, muito importante para nós, das primeiras cidades, dos primeiros impérios, a relação entre Norte e Sul, e eles já encontraram muitas coisas.” Os resultados são publicados por ambas as partes, mas todos os materiais ficam no museu, que neste momento é o segundo mais importante do Iraque (depois do de Bagdad), com destaque para um estupendo fragmento inédito da Epopeia de Gilgamesh recentemente identificado. O edifício, onde há baldes a conter infiltrações, espera ser modernizado em colaboração com a UNESCO.
O outro interlocutor dos arqueólogos estrangeiros é o próprio director do museu, Hashim Hawa. A cena do gabinete repete-se quando a repórter lá chega. Cá estão os japoneses, distribuindo presentes, cá está o simpático espanhol. Hashim também é simpático, toda a gente é simpática, ainda vão chegar consultores, funcionários, a mulher do director, e acabou de sair o embaixador da Letónia, o que gera um debate local sobre se a Letónia é a Lituânia.
“Queremos focar o museu nas peças achadas aqui”, diz Hashim, depois de atender toda a gente sem perder o sorriso. “Antes, este museu era para mostrar a Mesopotâmia, era como o Museu de Bagdad. Agora, a vinda de arqueólogos estrangeiros é muito boa porque as peças ficam todas aqui e podemos fazer convergir o que sabemos.” Lido politicamente, isto quer dizer que o Curdistão quer ter um museu curdo, com bom material local, afirmando-se, portanto, num mapa antiquíssimo, além de criar laços internacionais, que simultaneamente vão formando novas gerações de arqueólogos curdos.
O “Estado Islâmico”, crê este director, não pode ameaçar isso. “Suleymaniyah está segura. Eles conseguiram tomar Mossul porque contaram com a ajuda das pessoas na região [árabes], que odeiam o governo [xiita] de Bagdad. Aqui ninguém os deixaria ficar, destruir a nossa herança.”
Suleymaniyah é uma cidade suficientemente aberta para um velho livreiro se declarar ateu e vender Nietzsche, Zizek, Dante, Kafka, na sua barraquinha no centro da cidade. No jardim ao lado, amigos e famílias estão deitados-sentados na relva, uns com violas, outros com cães. Um fim de tarde sem sombra de guerra, à primeira vista. Mas, se antes de partir olharmos para o canto, veremos um pai, uma mãe e um filho a chorarem. Choram porque se despedem, contaram à repórter. Os pais partem de volta à Síria, o filho continuará aqui porque fugiu a matar na Síria. E a mãe não pára de chorar, dizendo: “Eu não vi o meu filho durante dois anos.” Cada um deles é uma história que não cabe aqui.
A abertura de Suleymaniyah foi decisiva para que os americanos, depois de décadas de presença académica em Beirute e no Cairo, decidissem instalar a Universidade Americana no Iraque, monumental campus inaugurado há meia dúzia de anos. Um estudante vindo de Bagdad, como Mustafa, o entusiasta da arqueologia, árabe de origem xiita, pensa que “em Erbil não deixariam entrar árabes”. O seu professor, Tobin Hartnell, 39 anos, arqueólogo com duas décadas de experiência no Médio Oriente, dirá mais genericamente que “Suleymaniyah é a parte mais tolerante do Curdistão”. O facto é que, de todos os pontos do Iraque, foi aqui que os americanos acharam mais seguro investir. Estão com 1400 estudantes que variam entre pagar 4 mil dólares por ano e ter bolsa que cobre tudo. “Os curdos de Suleymaniyah são a maioria, mas temos gente de outras províncias, curdos, árabes xiitas, sunitas, yazidis”, explica Tobin, sentado na ampla cafetaria da universidade. “É provavelmente a única universidade no Iraque assim.”
Tobin tinha as malas feitas para se mudar para cá quando o “Estado Islâmico” cercou Erbil, em Agosto passado. Mas não mudou de ideias. É casado com uma arqueóloga iraniana, têm uma filha que se desdobra em inglês, farsi e curdo. Esta parte do mundo foi a que ele escolheu.
“Para quem quer estudar a Mesopotâmia, estar no Curdistão é uma prioridade”, diz Tobin. “Cada descoberta que fazemos é um grande salto em frente.” Enquanto as gigantes Ur ou Uruk, no Sul do Iraque, são escavadas há um século “e ainda sabemos tão pouco”, aqui numa escavação pequena é possível avançar muito. “O ‘tell’ deles é espantoso”, elogia, referindo-se à colina de Kani Shaie, escolhida por André, Steve e Ricardo. “Tell” é o nome que se dá a uma colina artificial, resultado de várias camadas de ocupação humana. “O que eles estão a escavar é o nascimento de uma civilização.”
Tobin acredita que as montanhas curdas vão revelar toda uma outra Mesopotâmia, diferente do que sabemos das civilizações urbanas. “O que estamos a tentar ver aqui são impérios e não cidades. Todas as grandes dinastias vieram das montanhas ou lutaram para controlar as montanhas, de onde o perigo vem. Mas ainda não sabemos que civilização começou nestas montanhas. Acho que foi um tipo de civilização não centralizada, colaborativa, de partilha de poder.” Em suma: “O federalismo pode ter começado aqui.”
E se o “Estado Islâmico” é “uma ameaça à diversidade”, mais uma razão para ficar. “A destruição deles só torna o nosso trabalho mais importante. Não há futuro estável do Curdistão sem arqueologia. As pessoas precisam de provas para falar de quem são.”
Os trabalhadores contratados são pontuais, o que de repente faz 20 pessoas em cima da colina. Ricardo, que ontem desencantou uma máscara no bazar, põe gasolina na roçadeira, uns enfiam as pás na terra, outros arrancam ervas à mão, todos fazem tudo, erva, terra, pás, baldes. Talvez Portugal não afunde se o futuro da investigação for isto, é a alegria no trabalho.
Centenas de pazadas depois, entra em cena o colherim para definir o contorno das pedras, o terreno. É a fase do contacto zoológico: dois escorpiões, uma aranha, um lagarto, assim onde a repórter está.
Às 7h30 parece que já passaram horas. O sol queima, talvez nasça uma hérnia. Quando uma pessoa escava de colherim, não há boa posição para as costas, só menos más. Descanso de dez minutos e voltamos a meter o nariz na sepultura. Porque do que se trata aqui, nesta camada de cima, é de várias sepulturas islâmicas, está claro já, pela disposição das pedras. Então, primeiro as pedras à volta do esqueleto são escovadas a pincel e colherim, e depois vai-se escavando com cuidado a terra no meio, tão delicadamente que a certa altura já nem podemos usar o colherim, tem de ser uma colher de sopa e depois uma pequena espátula de madeira. O arqueólogo oscila assim entre a força bruta e o bisturi, fora o que ainda vai lavar, estudar, fotografar, escrever.
Aparece um fémur. A seguir, um sapo, vivíssimo, e a seguir um escorpião. Depois da morte não se sabe, mas definitivamente há vida sobre a morte. “Alguns arqueólogos recusam-se a escavar sepulturas por razões éticas”, diz Steve. “Imagina pensares que vais ficar ali para sempre, chega alguém, desenterra-te, põe-te dentro de um saco de plástico.” Exactamente o que vai acontecer a este esqueleto, quando acabarmos de o escavar, o que demorará dolorosas horas. “A cremação é uma grande coisa!” Mais abaixo, Tiago continua às pazadas, está a escavar há horas. Um arqueólogo sem bolsa e sem emprego pode sempre recorrer à enxada, é um perito (alô FCT).
Ao mesmo tempo, também percebe de fotografia em 3D e quadricópteros. Ricardo empunha uns comandos tipo PlayStation e o famoso drone sobe como um insecto. Tem quatro hélices nos cantos e uma câmara na barriga, a missão dele é fotografar a grande altura, mas para quem não sabe parece um zangão extraterrestre. Os rapagões curdos largam as pás, tudo de queixo no ar.
Às 9h30 faz-se a refeição que corresponde a um primeiro almoço, já que começámos às 5h. Piquenique de pão com triângulos de queijo, pepino, tomate, fruta, ovos cozidos. Dá meia hora de pausa, à sombra da árvore.
As sepulturas multiplicam-se. No dia seguinte, Giulia e João passam horas semideitados a escavar ossos: pá, vassoura, colherim, pincel, espátula e infinita delicadeza. Há ossos que se transformam em pó mal são tocados. Giulia é a especialista, mas João trabalha como se não houvesse amanhã, nada parece pesar-lhe. E Ana está como Tiago ontem, uma heroína de pá, picareta, vassoura, balde, num dos outros níveis que é preciso tratar, além de cozinhar todos os dias para dez, porque no ano passado foi André, e é consensual que ela cozinha melhor. De resto, para lavar loiça e limpar a casa, há uma escala.
Steve e André juntam-se noutra sepultura, crânio já exposto. O bom estado dos dentes impressiona. “No século IX, as pessoas comiam um quilo de açúcar por ano”, diz Giulia. “E era açúcar natural, de fruta e cereais. Nós comemos 65 quilos por ano.”
Às 13h, já são oito horas de trabalho, os trabalhadores contratados terminam o dia, mas parte da equipa vai só a casa almoçar e volta, porque há ossos expostos, é preciso acabar de os escavar, fotografar e guardar, para não ficarem abandonados uma noite. Quem não vai lava centenas de cacos de cerâmica entretanto achados, vai comprar mantimentos, resolver a crónica falta de água. Jantar pelas 19h, hora a que Ricardo Seinfeld pode, por exemplo, dedicar o seu episódio de hoje à cimenteira mais vizinha da colina, um gigante mundial que talvez esteja disposto a patrocinar a escavação. Investigou tanto sobre eles que descobriu uma secção de responsabilidade social de que eles próprios nem se devem lembrar. Até Giulia, que de tanto sol e trabalho ficou doente, não come mas ri.
Com todo o seu amor aos yazidis, Ricardo topou com uma família de 11 quando entrou nas estufas vizinhas, a perguntar se a equipa podia guardar ali os carrinhos de mão, e demais material pesado, da noite para o dia. Um deles falava inglês, contou ele, então numa das manhãs a repórter desce a colina e vai lá.
Uma casa precária, feita entre as estufas, moscas, calor. As crianças vêm descalças à porta, Saado estende a mão. Tem 25 anos, é ele quem fala inglês porque estudou Engenharia em Mossul. Agora está neste buraco, e é porque não morreu, ao contrário de milhares de yazidis da sua idade, apanhados pela conquista do “Estado Islâmico” na região do Sinjar (Noroeste de Mossul).
Saado tinha saído da aldeia onde toda a família vivia e foi ao Sinjar em visita. Calhou lá estar na tarde em que os jihadistas chegaram, “com muitos carros, Toyotas, armas e bandeiras negras”, conta, sentado numa das espumas que à noite fazem de cama, enquanto um irmão mais novo traz um copo com água, depois outro com chá.
“Nós não tínhamos armas. Eles primeiro disseram: ‘Têm de levantar uma bandeira branca’, e nós levantámos. Depois separaram homens, mulheres, crianças e disseram a todos que se tinham de converter ao islão. Depois disseram um a um e começaram a matar os homens que diziam que não.” Falavam em curdo, explica, porque sabiam que eles falavam curdo, mas Saado também ouviu árabe e inglês. “Diziam que nos iam libertar. Libertar do quê?” Viu cortarem cabeças e crianças pequenas serem mortas, guardarem as mais velhas como combatentes. Tudo isto demorou horas, era muita gente. Às oito da noite já estava escuro e Saado decidiu fugir. “Pensei: se ficar aqui vão matar-me com uma faca. Se correr terei duas hipóteses, morrer com um tiro ou escapar com vida.” Qualquer uma dessas lhe pareceu melhor. Teve sorte, caminhou até à Síria, e por mais sete horas. Mas um dos seus primos foi levado pelos jihadistas para Tal Afar, a ocidente de Mossul. “Disse-lhes que se convertia para se salvar. Não consegue fugir. Há duas semanas falámos com ele e só chorava. Disse que os jihadistas fazem o que querem e as pessoas só ouvem. Obrigam os homens solteiros a lutar. Casou com uma rapariga yazidi para a salvar.” De ser feita escrava.
Saado e família acabaram refugiados aqui, como tantos. Arranjaram trabalho nas estufas de pepino, Saado, a mulher e dois irmãos. Pagam-lhes 80 dólares por mês, para todos. O que ele gostava de fazer? “Ir para fora do Iraque”, responde, sorrindo da pergunta. E não vale a pena perguntar-lhe do que precisa. “De tudo e nada. Veja como vivemos. Sou engenheiro e trabalho nesta estufa. Isto é um país islâmico e yazidis e cristãos não podem viver aqui.” Mesmo no Curdistão? “Mesmo os curdos às vezes perguntam porque não nos convertemos.” O governo local defendeu-os de pressões, mas Saado acha que aqui não terão paz. Quer ir para qualquer lugar da Europa ou dos Estados Unidos.
Mais ossos. Vizinhos que sobem à colina porque querem ter a certeza de que não são sepulturas recentes. Idas a Erbil para ter um papel que falta, em vão, e com dois carros avariados. De vez em quando falta luz além de água. Tempestades de areia enquanto se guardam falanges, falangetas. Sem falar da maldição de Tutankhamon, os arqueólogos que morreram depois de violarem a sepultura. Porque as doenças sobrevivem milénios nos ossos, explica Giulia.
A propósito de vida depois da morte, “quem gostaria de ter 70 virgens à espera?”, pergunta João. “Eu não.” Uma canseira ensiná-las, sobretudo quando se é arqueólogo, e já tem de se saber de geografia, topografia, paleobotânica, antropologia social, sistemas de datação carbono 14, sistemas de informação, digitalização, legislação local, políticas públicas, marketing, cartografia, fotografia, aeromodelismo, roçadeiras, cozinha em massa, e tudo isto sobrevivendo ao “Estado Islâmico”, e à maldição de Tutankhamon.
Na sexta-feira em que a repórter vai deixar o Iraque, porque é sexta e os trabalhadores estão de folga, Tobin vem com a mulher e a filha e Mustafa em visita. Percorremos todo o vale, passando pelas cimenteiras. Subimos a outras colinas, que André, Steve e Ricardo subiram antes de escolherem Kani Shaie. A cerâmica pelo vale é tanta que a calcamos ao andar nos campos. Mesopotâmia lavrada, espalhada à superfície. O Iraque de 2015 também não está muito inteiro.
De volta a Lisboa, fazemos um skype para André mostrar mais um caco, que não é mais um caco. É o bordo de uma jarra com três homens, um escorpião, mil anos posterior à tabuinha e, como ela, vinda certamente do Sul. “É uma descoberta muito importante porque, ao contrário do que se pensava, indica que não deixou de haver contactos entre Norte e Sul”, explica André.
Para eles, é só o princípio, quem sabe não fazem uma casa lá. A TV curda até transmitiu a vitória do Benfica. Ah, Saado, o yazidi, mais irmãos, já estão a escavar na colina. Ainda acabam em Portugal.