Novos fósseis da Etiópia vêm complicar mais a história da evolução humana
Muito perto do sítio onde se tinha descoberto, em 1974, o esqueleto de Lucy, o australopiteco mais famoso, encontraram-se agora alguns ossos da cara de um pré-humano. Têm cerca de 3,5 milhões de anos e a equipa que os descobriu diz que são de uma nova espécie de australopiteco. Mas há cientistas que já discordam.
Actualmente, já se sabe que entre há três e quatro milhões de anos, na época do Plioceno Médio, o planeta era povoado por mais do que uma espécie de hominíneos — a subfamília de todos os nossos antepassados a seguir à separação do ramo dos chimpanzés, o que ocorreu há cerca de oito milhões de anos. Hoje, somos o único membro dessa subfamília. Mas nem sempre a ideia de existência de vários hominíneos no Plioceno Médio, e na mesma área geográfica, foi facilmente aceite. Essa altura é particularmente importante na história da evolução humana por ser pouco tempo antes do aparecimento dos humanos.
Durante muito tempo, parecia que uma espécie de hominíneos tinha dado lugar a outra e depois esta a outra, até que apareceram os primeiros Homo, há 2,8 milhões de anos. Era pelo menos o que se pensava que indicavam os fósseis que se iam descobrindo. Só que a árvore da evolução humana tem muitos ramos, alguns simultâneos, que secaram pelo caminho — no fundo, experiências evolutivas que não desembocaram em nada.
A ideia da coexistência de vários hominíneos ganhou peso com a descoberta dos fósseis do Australopithecus bahrelghazali (embora hoje haja dúvidas de que se trate de um novo australopiteco e muitos cientistas consideram-no, afinal, um Australopithecus afarensis), em 1995 no Chade, e do Kenyanthropus platyops, em 1998 no Quénia. Tanto o Australopithecus bahrelghazali como o Kenyanthropus platyops (ou “homem do Quénia com face plana”) viveram justamente há cerca de 3,5 milhões de anos no Leste de África — ou seja, na mesma altura e na mesma área geográfica de Lucy, cuja descoberta representou um marco na paleoantropologia e ainda hoje é uma super-estrela entre os fósseis pré-humanos.
Classificada logo em 1978 como Australopithecus afarensis, a Lucy viveu há 3,2 milhões de anos, media cerca de um metro de altura e — o mais surpreendente — já era bípede. Até à descoberta do seu esqueleto, não existiam provas concretas desse modo de locomoção numa espécie de hominíneos com mais de dois milhões de anos. Os ossos da bacia, das pernas e dos pés de Lucy foram provas essenciais. Além de caminharem em duas pernas, sabemos agora que os indivíduos da mesma espécie de Lucy — que existiu num período de tempo entre há 3,8 e 2,9 milhões de anos — também se sentiam confortáveis em trepar às árvores.
Agora, a equipa coordenada por Yohannes Haile-Selassie encontrou o maxilar, ainda com os dentes, e as duas mandíbulas (de indivíduos diferentes, portanto) de um hominíneo na área de Woranso-Mille, na região de Afar. Em Março de 2011, os cientistas estavam à procura de fósseis naquela área porque já tinham encontrado aí a impressão parcial de uma pegada de hominíneo, datada com 3,4 milhões de anos e que consideraram, num artigo na revista Nature em 2012, revelar uma nova maneira de andar e confirmar a diversidade nos hominíneos do Plioceno Médio. “O espécime era contemporâneo do Australopithecus afarensis, mas demonstrava a existência de um modo distinto de locomoção bípede”, lembra agora a equipa de Yohannes Haile-Selassie no artigo desta quinta-feira. Mas sem ossos do crânio, incluindo mandíbulas, maxilares e dentes, era difícil identificar o autor da pegada parcial.
Encontraram realmente ossos, mas como nenhum estava associado à pegada parcial, continua a não ser possível atribuir-lhe um autor. Mas a equipa considerou que lhe saiu na mesma a sorte grande, uma vez que classificou os ossos como sendo de uma nova espécie de australopiteco. Os cientistas consideraram que, apesar de os ossos da cara e os dentes terem mais características de australopiteco do que de outros hominíneos, tinham diferenças suficientes para serem atribuídos a uma espécie nova de australopiteco. Eis assim o Australopithecus deyiremeda, em que a designação específica é composta por duas palavras da língua da região de Afar: deyi, que significa “próximo”, e remeda, que quer dizer “parente”, porque, argumentam os cientistas, “esta espécie é um parente próximo de todos os hominíneos posteriores”.
A zona onde se encontraram os fósseis fica apenas a cerca de 35 quilómetros a norte do sítio onde estava o esqueleto de Lucy (e a 520 quilómetros da capital da Etiópia). “Esta nova espécie (...) mostra que havia pelo menos duas espécies de hominíneos contemporâneas na região etíope de Afar a viver entre há 3,3 e 3,5 milhões de anos e é uma confirmação adicional da diversidade taxonómica dos primeiros hominíneos no Leste de África durante a época do Plioceno Médio”, escrevem os cientistas no artigo na Nature. “A diversidade de espécies do Plioceno Médio tem sido alvo de debate nas últimas duas décadas, particularmente depois da classificação do Australopithecus bahrelghazali e do Kenyanthropus platyops, que se juntaram à bem conhecida espécie Australopithecus afarensis. Análises posteriores fundamentam a proposta de que diversas espécies de hominíneos co-existiram durante esse período”, justificam ainda no artigo.
Como não muito longe da Etiópia, no Quénia, vivia ainda o Kenyanthropus platyops, a equipa defende agora que pelo menos três espécies de hominíneos viveram há cerca de 3,5 milhões de anos em grande proximidade geográfica.
Mas a própria equipa reconhece que a proposta de uma nova espécie pode acabar por complicar ainda mais a já complicada árvore da evolução humana, como se lê também no artigo na Nature: “As relações taxonómicas e filogenéticas dos primeiros hominíneos estão a tornar-se cada vez mais complicadas à medida que se acrescentam novos taxa [unidades de classificação, como os géneros e espécies] ao registo fóssil do Plioceno Médio e se reconsidera a distribuição temporal (...) dos primeiros Homo.”
Splitters versus lumpers
Antecipando críticas da comunidade científica, até porque a evolução humana costuma suscitar debates científicos acalorados, Yohannes Haile-Selassie já lhes está a responder num comunicado do Museu de História Natural de Cleveland: “Esta nova espécie da Etiópia leva para outro nível o debate em curso sobre a diversidade dos primeiros hominíneos. Alguns dos nossos colegas vão ficar cépticos em relação a esta nova espécie, o que não é invulgar. Mas penso que é altura de olharmos para as fases iniciais da nossa evolução com a mente aberta e examinarmos os fósseis disponíveis, em vez de rejeitarmos imediatamente aqueles que não encaixam em hipóteses antigas.”
Eugénia Cunha, especialista em evolução humana e antropóloga forense da Universidade de Coimbra, está entre os cientistas que têm dúvidas quanto à robustez das provas apresentadas na Nature. Quando se lhe pergunta qual a importância da descoberta, a investigadora comenta: “É uma descoberta importante, porque é mais um fóssil a provar a diversidade de hominíneos há 3,3-3,5 milhões de anos. No entanto, diversidade não tem de equacionar obrigatoriamente novas espécies.” E acrescenta: “Os autores da descoberta acham que as características dentognáticas [dos dentes e mandíbulas] são suficientes para a criação de uma nova espécie, mas pode não ser assim. O futuro o dirá. Não tenho nada contra a existência de uma nova espécie, mas os argumentos que excluem a possibilidade de ser a mesma espécie do Kenyanthropus platyops não são completamente convincentes.”
A investigadora diz ainda mais sobre as características morfológicas usadas para classificar os fósseis como sendo de novo australopiteco: “Essas características morfológicas tiram força para a manutenção do Kenyanthropus platyops como um novo género e uma nova espécie, porque as características distintivas do Kenyanthropus estão presentes nesta nova espécie.”
Portanto, ou os novos fósseis são de um Kenyanthropus platyops ou os fósseis do Kenyanthropus platyops acabam por vir a ser considerados como o novo Australopithecus deyiremeda? “Tanto pode ser uma coisa como outra. Creio que poderá ser esta nova espécie a vingar, porque o Kenyanthropus quase caiu no esquecimento. Mas se a face distintiva do Kenyanthropus não estiver preservada nesta nova espécie, não se pode comprar o que não é comparável”, responde Eugénia Cunha. “É uma hipótese que para mim fica em aberto: poderá o Kenyanthropus vir a ser englobado nesta espécie, não obstante os autores desta descoberta apontarem para umas particularidades, quase subtilezas, de distinção? Fico com a dúvida.”
Subjacente a todo a este debate está, no fundo, o confronto entre duas correntes de classificação dos seres vivos: aquela que considera que as diferenças encontradas num exemplar justificam logo a criação de uma nova espécie e aquela que agrupa mais esse exemplar numa mesma espécie. “É a velha questão do confronto de perspectivas dos splitters [divisores] versus lumpers [agrupadores]”, resume Eugénia Cunha a propósito do novo australopiteco. “Haverá sempre a tendência em dar nomes novos a novas descobertas, até que, uns anos depois, se chega à conclusão de que era quase tudo o mesmo. A diversidade pode ser acomodada dentro de uma mesma espécie. No fundo, esta questão de dar nomes é artificial. O que importante é saber que éramos muito diversos.”
Quanto a Eugénia Cunha, é mais uma lumper: “Veja o que tem acontecido com os primeiros Homo. Agora dizem que, apesar da grande diversidade, o Homo rudolfensis, habilis, ergaster, erectus e georgicus são todos a mesma espécie.”
Sejam de um novo australopiteco ou não, o certo é que os novos fósseis revelam a diversidade entre os pré-humanos. Mas ainda não respondem a uma das grandes questões sobre o nosso passado: qual é o antepassado directo do género Homo? Nem o Australopithecus deyiremeda nem Australopithecus afarensis fizeram a transição directa para os primeiros humanos, explica Eugénia Cunha. “Sem dúvida que neste período entre 3,3 e 3,5 milhões de anos coexistiam várias espécies e até géneros, o que contrasta fortemente com a situação actual. Terá havido várias tentativas para o bipedismo, umas bem-sucedidas e outras não, e nem todas com as mesmas adaptações morfológicas. Tudo fortemente dependente do ambiente e da dieta. Quem é que seguiu em frente é, todavia, uma questão que não tem resposta.”