Mais menores com problemas de comportamento dentro das instituições
Relatório de Caracterização Anual da Situação de Acolhimento de Crianças e Jovens – CASA foi esta quarta-feira entregue ao Parlamento
O dado consta do relatório de Caracterização Anual da Situação de Acolhimento de Crianças e Jovens – CASA, que o ministro da Solidariedade, do Emprego e da Segurança Social, Pedro Mota Soares, esta quarta-feira à tarde entregou à Presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves.
O documento dá conta de um aumento de 10% de crianças e jovens com “características particulares” a viver nas instituições. A mais comum é “problemas de comportamento” – um total 2164, 1160 dos quais com idades compreendidas entre os 15 e os 17, o que representa um aumento de 146 face ao ano anterior.
Predominam os “problemas de comportamentos” considerados ligeiros, como o recurso à mentira para evitar obrigações, a fuga breve ou a intimidação – 73%. Os comportamentos mais graves, que envolvem roubos, uso de armas brancas e destruição de propriedade, representam 3%.
O número de vagas nos seis Lares de Infância e Juventude Especializados, isto é, vocacionados para estes menores que se colocam a si próprios em perigo, não dá para as encomendas, embora tenha vindo a aumentar de forma progressiva nos últimos anos. No ano passava, 94 acolhidos, 61 com mais de 15 anos. São dos casos mais complexos com que o sistema tem de lidar. Conforme o documento, 32 tinham, além de processo de promoção e protecção de crianças e jovens em risco, processo tutelar educativo. A 19 fora diagnosticada patologia mental.
Há 3922 crianças a receber acompanhamento psiquiátrico ou psicológico regular e 847 irregular. Está por fazer a rede de cuidados continuados de saúde mental, prevista há cinco anos, o que “constitui um sério constrangimento” às crianças e jovens com graves problemas de saúde mental que precisam de internamento: “são tratadas em regime de ambulatório, por falta de vagas para internamento (existem 20 vagas a nível nacional) e têm de regressar às instituições”.
De modo geral, continua a cair o número de crianças e jovens que passam por instituições: 10.903 em 2014, 10.951 em 2013, 11.147 em 2012, 11.572 em 2011, 12.025 em 2010. Mesmo assim, estavam 8470 internadas em Dezembro, mais 25 do que um ano antes. Mais de metade do sexo masculino (51,9%). Mais de metade (56,1%) com idades compreendidas entre os 12 e os 17 anos.
Contas feitas, houve menos crianças e jovens a entrar (2143) do que a sair (2433). Foram retiradas às respectivas famílias, sobretudo, por falta de supervisão e acompanhamento familiar (60%), exposição a “modelos parentais desviantes” (35%), negligência nos cuidados de saúde ou educação (32 e 30%).
O relatório alerta para o facto de ainda existir um número significativo de crianças e jovens sem projecto de vida. Entre os que o têm, destaca-se a autonomização (32%), a reintegração na família nuclear (30%) e a adopção (10,5%). Menos expressão têm o acolhimento permanente (8%), a reintegração na família alargada (5,5%) ou o apadrinhamento civil (0,4%).
Continuam a ter “fraca expressão” as medidas que prevêem a possibilidade de família alternativa. E persiste a conhecida “discrepância entre as características reais das crianças que reúnem condições para virem a ser adoptadas e as pretensões dos candidatos”.
Os autores chamam a atenção para os jovens que depois dos 18 anos não têm condições para viverem sozinhos, ou seja, para serem autónomos, porque continuam a estudar ou à procura de emprego. O escalão 15-17 anos (1342) sobressai, mas também pesa o de 18-20 (757) e o de 12/14 (494).
“Dos 148 jovens que saíram para a vida autónoma, 64 foram residir em casa alugada e os restantes em quartos alugados ou equivalente”, refere. A transferência para centros educativos, por terem cometido actos tipificados como crimes, representa 1,1%. E a transferência para lares residenciais, colégios do ensino especial ou comunidades terapêuticas outros 1,8%.
Transições dolorosas
A memória da primeira noite na instituição é sempre má. A memória da primeira noite fora da instituição tende a não ser muito melhor. Podem não ter quem os apoie na altura de arrendar uma casa, arranjar um emprego, aprender a tratar da casa, a gerir o dinheiro, a comandar o tempo.
João Pedro Gaspar trabalhava há anos com crianças e jovens internados em Centros de Acolhimento Temporário e Lares de Infância e Juventude. Quis perceber as transições – da família para a instituições e da instituição para o mundo. A tese de doutoramento em psicologia da educação que no ano passado defendeu na Universidade de Coimbra – “Os desafios da autonomização” – levanta o véu sobre essa realidade.
Recorrendo a uma base de dados com 100 jovens adultos que viveram mais de 10 anos em instituições, entrevistou 26. E foi chegando aos seus modos de ver.
O acolhimento, notou, está quase sempre associado ao corte com a família e ao pouco envolvimento de quem recebe. “Não gostei, passei muitos dias a chorar”, disse-lhe um. “Lembro-me como se fosse hoje, fiquei naquela casa grande com gente desconhecida que me metia medo e que não me transmitia a calma da minha mãe. Foi horrível! Ainda hoje sinto o cheiro e os sons que me atormentavam”, disse-lhe outro.
O momento da saída faz-se de “sentimentos contraditórios, que passam pela libertação das regras da instituição e pelo receio de solidão e de abandono”. “É muito difícil, é como ter de deixar toda uma vida que criamos num dia”, relatou-lhe um. “Peguei nas minhas coisas sozinha, apenas um pessoa que lá trabalhava se despediu de mim”, relatou-lhe outro.
Quase não houve preparação para a saída da instituição, nem acompanhamento posterior. “A partir desse ponto não recebi qualquer apoio da instituição”, disse um. “Sair da casa onde viveste grande parte da vida sem qualquer apoio financeiro é um suicídio”, disse ainda outro.
Os jovens podem pedir para prolongar a medida de protecção, mas só até aos 21. Um corte brusco tende a ser entendido como uma transição negativa e em grande parte responsável por uma "vida adulta sem rumo definido nem integração social adequada". No entender deste investigador, o Estado devia continuar a acompanhá-los, quiça criar um "suporte interventivo" que que facilitasse o acesso a habitação e a trabalho.