Uma lança da arte africana no Porto
A Galeria Municipal Almeida Garrett vai acolher, a partir de 5 de Março, uma exposição com 80 obras de 50 artistas africanos contemporâneos da Colecção Sindika Dokolo, marido de Isabel dos Santos.
“O título não é inocente; ele expressa também a relação paradoxal que nós, portugueses, temos com o continente africano, e com Angola em particular”, diz Paulo Cunha e Silva, vereador da Cultura da Câmara do Porto, a apresentar a exposição da Fundação Sindika Dokolo, que traz agora ao Porto a mais extensiva mostra daquela que é considerada uma das mais relevantes colecções de arte africana contemporânea.
E não será irrelevante referir que o congolês Sindika Dokolo (n. Kinshasa, 1972), um dos maiores coleccionadores africanos de arte, é o marido de Isabel dos Santos, filha do Presidente angolano. You love me, you love me not é uma iniciativa política? O vereador portuense, que tomou contacto com esta colecção quando, há alguns anos, foi convidado a visitar a Trienal de Luanda, diz antes que se trata de uma exposição “de boa política”, lembrando que “não há actividade mais política do que a actividade cultural”.
A exposição teve, de resto, ramificações políticas laterais, como a polémica verificada no interior do executivo municipal, provocada pela decisão do presidente Rui Moreira de atribuir a Medalha de Mérito - Grau Ouro, da Câmara Municipal do Porto, a Sindika Dokolo.
You love me, you love me not, que tem como curadores a angolana Suzana Sousa e o português Bruno Leitão, traz ao Porto uma selecção de 80 obras de meia centena de artistas que estão representados nas mais de três mil peças que integram a Colecção Sindika Dokolo.
Foi uma escolha da exclusiva responsabilidade dos dois curadores, que durante vários meses puderam explorar não só a base de dados mas também os caixotes onde as obras estão ainda guardadas, entre Bruxelas e Luanda – e na capital angolana a Fundação Sindika Dokolo procura ainda um espaço multidisciplinar onde possa sedear e expor o seu acervo.
“Tivemos a preocupação de organizar uma mostra representativa da criação de artistas mais jovens ao lado de alguns consagrados. Esta é uma colecção africana da arte actual”, diz ao PÚBLICO Suzana Sousa, invocando a ideia de “colagem” para a reunião das peças, um pouco à imagem da obra de Wangechi Mutu, que, com o consagrado fotógrafo maliano Seydou Keita (1921-2001), balizou esteticamente a selecção que agora chega ao Porto.
Ao lado destes artistas, há outros nomes já com grande circulação internacional, para desmontar a ideia mais tradicional da arte africana como arte negra ou primitiva. Neste percurso pela criação africana das últimas duas, três décadas – mesmo se há obras que vêm mais de trás –, os dois curadores propõem uma viagem “desde os instantes únicos e irrepetíveis de Seydou Keita [o autor de que You love me, you love me not mostra obras mais antigas, dos anos 1960], que captaram um momento especial na história do Mali, aos auto-retratos de Samuel Fosso, passando ainda por nomes menos conhecidos e que se estabelecem em universos mais inesperados de questionamento de pré-concepções, como o fazem Marcia Kure, Yonamine, Edson Chagas e Cameron Platter”, escrevem Suzana Sousa e Bruno Leitão no texto de apresentação.
Paulo Cunha e Silva acrescenta a estes nomes outros artistas africanos também com grande relevo na cena mundial da arte, como Marlene Dumas (actualmente com uma exposição na Tate Modern, em Londres, The Image as Burden), William Kentridge, David Goldblatt, ou, noutro patamar, figuras como Nástio Mosquito ou Kiluanji Kia Henda, em permanente circulação entre Luanda, Lisboa, Paris, Londres, Bruxelas ou... a Bienal de Veneza, onde o Pavilhão de Angola conquistou o Leão de Ouro da edição do ano passado, depois de a arte deste país aí ter chegado pela primeira vez, em 2007, já então pela mão de Sindika Dokolo.
Mas a exposição na Galeria Almeida Garrett inclui também artistas não africanos – os norte-americanos Nick Cave e Kara Walker, por exemplo –, de quem “apresenta obras com ligações temáticas e estéticas à arte africana, nomeadamente em questões de ordem social e política, como o género ou a identidade”, justifica Suzana Sousa.
O nascimento de uma colecção
Nascido na capital da República Democrática do Congo (ex-Zaire), filho de um banqueiro, coleccionador de arte e um dos homens mais ricos do país, Sindika Dokolo, que teve formação em Paris, assumiu o gosto do pai pelas artes, a que associou, quando este faleceu em 2001, a gestão dos seus múltiplos negócios. Acabou por reunir uma notável colecção de arte africana, que entretanto, e respondendo a uma proposta de um dos mais conhecidos curadores angolanos, Fernando Alvim, foi reforçada com a aquisição, em Bruxelas, de meio milhar de peças do coleccionador alemão Hans Bogatzke.
Radicado em Luanda desde 1999 – onde, quatro anos depois, casou com Isabel dos Santos –, Sindika Dokolo e Fernando Alvim criaram uma fundação com o objectivo de tratar, expor e divulgar a colecção de arte. Um programa que tem vindo a ser concretizado com a promoção de sucessivas mostras de arte africana em lugares como o Instituto Valenciano de Arte Moderna (2006), a Bienal de Veneza (2007), o Centro Pompidou, em Paris, e também o Museu Berardo, em Lisboa (exposição No Fly Zone, 2013).
“O tempo africano é objectivamente o que me preocupa, pois permite também reflectir sobre outros tempos da arte e da estética africana. A colecção gravita num universo intemporal para que após incursões a tempos históricos específicos a arte africana se posicione como a colecção de todos os tempos”, escreve Sindika Dokolo no programa de You love me, you love me not.
A apresentação desta exposição no Porto, se não é meter uma lança em África, “é trazer uma lança de África para o Porto”, diz Paulo Cunha e Silva, admitindo que, no contexto da tensão política que tem marcado as relações entre Portugal e Angola, “se calhar, o Porto dispõe de uma liberdade relacional com Luanda que a ‘capital do Império’ não tem ainda”.
O vereador portuense não pretende escamotear “as muitas feridas abertas que ainda há nas relações entre os dois países”. “Esta exposição é também uma forma de ultrapassarmos essas feridas, de nos aproximarmos e nos conhecermos melhor”, porque “é preciso fazer também uma espécie de psicanálise do passado, construir uma relação mais intensa”, acrescenta.
Paulo Cunha e Silva admite, de resto, que You love me, you love me not pode ser o ponto de partida para algo mais vasto, ambicioso e duradouro. “Estamos a estudar várias modalidades, a abrir um processo relacional que pode vir a desembocar na criação no Porto de um pequeno polo da Colecção Sindika Dokolo”.
O vereador portuense contextualiza ainda esta exposição no programa que delineou para a cidade em 2015, sob o tema da Felicidade. “Não queremos propor à cidade pensar a felicidade através de uma viagem aos parêntesis do real, aos lugares férteis todavia isolados de que nos falava Rosseau. Esta jornada identifica-se com uma procura vinculada à complexidade da vida nas sociedades contemporâneas”, escreve Paulo Cunha e Silva na apresentação de You love me, you love me not. E, ao PÚBLICO, manifesta a convicção de que esta mostra nos traz um continente de arte que “tem uma frescura e uma virulência que não se vê na sociedade do cansaço que é o establishment ocidental”.