Estado paga quase 50 mil refeições por dia a famílias carenciadas
Investigadora fez contas e analisou gastos com a medida. “Importa avaliar o encargo” da mesma quando comparada com outras, defende. Não é a única a reclamar mais avaliação.
Os dados foram fornecidos ao PÚBLICO pelo Instituto de Segurança Social. A 31 de Dezembro de 2014, estavam em vigor 845 protocolos referentes a cantinas sociais, que significavam 49.024 refeições diárias. Os serviços centrais não conseguem dizer, todavia, quantas pessoas delas usufruíam.
A economista Cláudia Joaquim encheu-se de interrogações ao analisar esta medida, que faz parte do Programa de Emergência Social (PES) lançado em 2011 pelo Governo. Quais os critérios de selecção das instituições que assinaram protocolo com o Estado? Como se determinou a comparticipação pública? Como é monitorizada a medida, por exemplo, no que concerne ao número de beneficiários?
Os critérios de acesso parecem-lhe “relativamente genéricos”. Os protocolos que analisou mencionam pessoas desempregadas, com baixos salários ou doenças crónicas, mas não há uma tabela. Cada instituição apura o que é carência económica e decide se determinada família é ou não apoiada.
No entender da economista, a medida deve ser analisada numa “perspectiva de escolhas”. Sem negar o “mérito e a necessidade de uma resposta que vise fazer face a situações críticas e urgentes”, entende que “importa avaliar o encargo desta medida quando comparada com outras, que visam fim idêntico ou mais abrangente”.
Num artigo (O terceiro sector, acção social e equipamentos sociais, e a questão essencial para o futuro: que modelo queremos para Portugal?) escrito para o Observatório sobre Crises e Alternativas, criado pelo Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra, estabelece uma comparação com o Rendimento Social de Inserção (RSI), medida que sempre foi encarada “com desconfiança” pelo segundo partido da coligação governamental, o CDS-PP.
600 euros por família
O Estado paga, no máximo, 178,15 euros por titular de RSI; 89,07 por cada um dos outros adultos que existam no agregado; 53,44 por cada criança. Ora, um casal com duas crianças recebe no máximo 374,1 euros de RSI. “Para o Governo é este o montante mensal necessário e suficiente para uma família com esta composição satisfazer as suas necessidades básicas”, sublinha Cláudia Joaquim, lembrando que os critérios de acesso à prestação são apertados e a medida envolve assinatura de contrato de inserção social que implica todos os membros.
Já às instituições particulares de solidariedade social (IPSS), o Estado paga 2,5 euros por cada refeição fornecida pelas cantinas sociais. Conforme o protocolo, podem as refeições ser fornecidas até duas vezes por dia, sete dias por semana. Quer isto dizer, nas contas da economista, que uma IPSS pode receber até 600 euros por mês para fornecer almoço e jantar a um casal com dois filhos e ainda cobrar 1 euro por refeição.
A comparação parece tanto mais relevante a Cláudia Joaquim quando a Rede Solidária de Cantinas Sociais “é uma medida prioritária para o Governo” (“passámos de 60 para 850 cantinas”, dizia ainda na quinta-feira, num debate sobre pobreza no Parlamento, o ministro da Segurança Social) e o RSI “tem sido objecto de sucessivas alterações legislativas e procedimentais”, que resultaram numa redução de beneficiários”. A redução foi progressiva: 526 mil em 2010; 448 mil em 2011; 420 mil em 2012; 360 mil em 2013; 210.669 em Dezembro de 2014. O valor médio por pessoa ficava-se pelos 91,84 euros.
A estatística do Instituto de Segurança Social mostra queda noutras prestações sociais não contributivas. Por exemplo, em Dezembro, havia menos de um milhão e 200 mil crianças a receber abono de família — eram mais de 1 milhão e 800 mil em 2010. Nesse mesmo mês, havia 171.378 idosos com Complemento Solidário (246.664 em 2010).
Este recuo, na opinião da economista, não se afigura “justificável num contexto de austeridade, de elevadas taxas de desemprego e de forte diminuição do rendimento disponível de muitas famílias”. A tendência seria de crescimento de recurso a apoios sociais. Só que os governos, primeiro o liderado por José Sócrates, depois o liderado por Pedro Passos Coelho, optaram por apertar as regras.
Recorde-se que a taxa de desemprego bateu recordes: era 9,5% em 2009, alcançou os 16,3% no final de 2013, está nos 13,4% em Dezembro de 2014, de acordo com os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).
Reforço das parcerias
Enquanto corta o acesso às prestações sociais, o Estado reforça a parceria com o terceiro sector, comenta Cláudia Joaquim. Fá-lo via PES, Lei de Bases da Economia Social, Rede Local de Intervenção Social ou Fundo de Reestruturação do Sector Solidário. E isso, em seu entender, tem tanto a ver com desconfiança nos pobres como com confiança no terceiro sector.
“Até 1974, a intervenção social em Portugal restringia-se ao mero assistencialismo corporativista de base caritativa”, recorda. O Estado teve “sempre um papel supletivo”. Com o 25 de Abril, quis-se criar um Estado social, mas não se tinha capacidade para, de um momento para o outro, assumir “o desenvolvimento da rede de serviços e de equipamentos sociais”. Apostou-se então nas instituições privadas sem fins lucrativos para promover políticas de solidariedade social.
O sector cresceu muito nos últimos 30 anos, até pelos vários programas de investimento em equipamentos sociais, como o Programa de Alargamento da Rede de Serviços Sociais (PARES). Com a crise, muitas instituições afligiram-se com o aumento de pedidos de ajuda. E o Governo reforçou verba, flexibilizou regras para criar mais vagas em creches e lares, financiou a rede solidária de cantinas sociais.
“Deve o poder político continuar a cortar nas prestações de solidariedade, dirigidas a pessoas com menores recursos, reforçando em simultâneo as transferências para as IPSS?”, pergunta Cláudia Joaquim. “Qual o grau de eficácia das prestações sociais atribuídas directamente aos beneficiários? E dos apoios prestados indirectamente pelas IPSS aos cidadãos de menores recursos? Devem as prestações sociais e estes apoios ser complementares ou substitutivos, como parece estar a acontecer?”
E qual é a estratégia?
Os últimos dados do INE são do final do mês. Mostram que a pobreza aumentou (de 18,7% para 19,5% da população, o que significa que quase dois milhões de pessoas viviam em 2013 com rendimentos abaixo do limiar de pobreza, que corresponde a 411 euros mensais).
Na quinta-feira, o tema foi discutido no Parlamento, num debate pedido pelo PCP, com a presença de Mota Soares. Os partidos da oposição dizem que a estratégia contra a pobreza falhou. O ministro da Segurança Social diz que não e elogia o PES — nomeadamente medidas como a majoração do subsídio de desemprego para os casais sem trabalho, as cantinas, ou o banco de medicamentos... Já a Rede Europeia Anti-Pobreza diz que simplesmente não há estratégia. E está a preparar uma proposta “que ao longo deste ano irá ganhando corpo”, faz saber ao PÚBLICO o presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza — Europa Sérgio Aires.
“Por mais que este Governo queira insistir na ideia de que o PES se trata de uma estratégia, é falso. O PES assenta numa ideia de assistencialismo básico. Ao mesmo tempo que se corta na protecção social de Estado, põem-se em marcha este plano, em relação ao qual não se conhece avaliação, que apenas assiste”, explica Sérgio Aires. As cantinas, e o seu impacto, por exemplo, não tiveram até ao momento qualquer avaliação, exemplifica.
Não é que não seja preciso prestar assistência em tempos de emergência, diz o sociólogo. “O que não se pode é chamar a isto luta contra a pobreza e muito menos uma estratégia.”
Para a proposta de “estratégia nacional para a erradicação da pobreza” lançada pela Rede Europeia Anti-Pobreza — Portugal estão a ser promovidas reuniões com ONG e associações e estão a ser pedidas reuniões com os grupos parlamentares. “Queremos também alargar isto aos cidadãos.” O documento deverá estar concluído em Outubro, a tempo das eleições. Com Andreia Sanches