“A maneira como as pessoas mexem nos livros tem mudado nos últimos anos”

Para Lars Müller, o designer e fundador de uma das mais relevantes e influentes editoras internacionais de arquitectura e design, a Lars Müller Publishers, o livro ainda é um objecto precioso e ser editor é uma oportunidade para se “fazer o bem”

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Lars Müller fotografado no Porto Maria João Gala
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Honestidade, autenticidade e independência são palavras recorrentes no discurso de Lars Müller (n. Oslo, 1955), designer, editor, director e fundador da Lars Müller Publishers, uma das mais relevantes e influentes editoras internacionais de arquitectura e design, com base de operações em Zurique, Suíça. Esteve no Porto, na passada quarta-feira, para apresentar uma conferência no Cinema Passos Manuel, a convite da editora Dafne, sobre comunicar arquitectura num mundo analógico e digital. Assumiu-se como um bibliófilo fervoroso e defendeu a soberania do livro impresso sobre o digital, mas apelando a uma coexistência saudável, sem canibalizações mútuas. “O analógico e o digital são como um irmão e uma irmã, mas com talentos diferentes”, diria no dia seguinte em entrevista ao PÚBLICO.

Durante a conferência, o também professor e presidente da AGI - Alliance Graphique Internationale foi falando sobre a sua actividade de editor, feita, acima de tudo, “em nome do leitor” (falar em proveitos económicos fá-lo revirar os olhos; não é para ele, para o bem e para o mal). Desde 1983, Müller lançou cerca de 800 livros sobre tipografia (incluindo duas importantes publicações sobre Helvetica), design, arquitectura, arte, fotografia e sociedade, de autores como Peter Zumthor, Rem Koolhaas, Jasper Morrison ou Eduardo Souto de Moura, entre muitos outros.

Trata o livro como um objecto precioso (“é como construir uma casa”, diz), como uma cápsula do tempo e da memória, como um veículo para instigar perspectivas críticas e novos modos de ver e, consequentemente, para “melhor entender a sociedade”. Porque ser editor e designer é, para Lars Müller, uma oportunidade para se “fazer o bem”.

Diz que publicar livros implica deitar árvores abaixo. Diz também que se questiona vezes sem conta se se justifica mesmo fazer esta ou aquela obra. Quando é que vale a pena?
Às vezes sinto-me culpado, mas feitas as contas acho que a minha pegada ecológica é balançada por alguns livros sérios que fazem as pessoas pensar e que podem contribuir para um melhor entendimento da nossa sociedade e também da capacidade do designer e do arquitecto para mudar algo. Na conferência falava dos muitos livros não-lidos. Se eu fosse um vendedor dizia: “Eu quero vender-te um livro mas não quero saber o que fazes com ele”. Mas um autor ou um editor que investiu muito do seu tempo no livro espera que haja um duplo investimento do leitor: que gaste dinheiro e tempo a lê-lo. Agora há uma imensidão de propostas, mas muitas vezes fico com a sensação de que elas são boas para o autor mas não há público. Por pragmatismo, muitas editoras aceitam publicar um livro porque é financiado por x ou y; aceitam por razões económicas.

E não quer saber dessas razões.
Não, não. Até fico maldisposto só de pensar nisso. Claro que prejudica o meu balanço de contas, mas de outra forma sentir-me-ia culpado.

Prefere fazer livros cujo assunto, de outro modo, dificilmente chegaria aos leitores. Na conferência falou das reproduções de blocos de notas de arquitectos e designers, por exemplo.
Sim. Pode dizer-se que as reproduções de blocos de notas são uma perda de tempo e de papel, mas se se seguir a minha linha de pensamento é fascinante quando um artista pensa em algo e o transfere para uma imagem. Para mim isso é simbólico do processo analógico. É ir à essência do pensamento e da acção.

Qual é a estratégia para publicar livros sobre uma disciplina tão específica como a arquitectura? Sobretudo quando hoje há tanta informação online.
A estratégia é seleccionar, editar e estruturar cuidadosamente para tentar contextualizar e interpretar o que a informação nos dá. Não é coleccionar dados. Por exemplo, os apêndices de vinte e tal páginas e a listagem de exposições e obras do autor já não fazem sentido porque estão na Internet, e isso liberta o livro.

Então, no meio da torrente de informação da era digital, o livro enquanto material editado e seleccionado é ainda mais importante?
Exacto. Editar significa quebrar a massa de informação e estruturá-la de modo a torná-la acessível ao público de uma forma significativa. Costumo dizer aos meus alunos que o editor é o advogado do leitor. Pensa com carinho no seu autor, mas age pelo direito do leitor.

Há alguma forma de comunicar arquitectura e design (e não só) num mundo analógico e num mundo digital de forma complementar?
Diria que o analógico e o digital são como um irmão e uma irmã com uma constituição genética muito parecida. A base dos dois é comunicar, mas têm diferentes talentos. Como disse, tento que algum conteúdo vá para o online para libertar outro que deva ser mantido no papel. Mas acho que devem coexistir. Não tenho uma teoria sobre isso, até porque é um campo que não está bem desenvolvido em termos académicos e intelectuais. Não há experiências suficientes sobre o que um site consegue fazer bem, sobre o que um ebook consegue fazer bem... Sou mais empírico. Adoro observar pessoas a mexer nos livros. E por acaso a maneira como o fazem tem mudado nos últimos anos.

Tem mudado?
Sim. Talvez seja por causa da televisão, do zapping. Na minha infância só havia três canais. Agora vê-se as pessoas a folhear, aleatoriamente, a ver isto e aquilo em várias páginas, como se estivessem a fazer zapping ou a visitar vários sites. A velha forma de interagir com um livro era ler o que dizia na contracapa, ler a biografia do autor, ler o índice e depois ver as páginas. Mas uma coisa continua igual: quando começamos a ler um romance volumoso, por exemplo, o início pode ser difícil mas quando se está a terminar sente-se uma espécie de tristeza. Isto é analógico. Por que razão quereríamos deixar de ter isso? E isto não tem a ver com a minha geração, com a minha idade.

Um dos lançamentos mais influentes da Lars Müller Publishers foi a monografia sobre o arquitecto Peter Zumthor, nos anos 90. As monografias ainda fazem sentido num momento de grande partilha digital do trabalho dos arquitectos ou são um gesto de vaidade?
Sim e não. É perigoso um arquitecto pensar: “Quero pôr o meu trabalho num livro por causa de potenciais clientes, porque só um trabalho de qualidade se torna num livro”. Mas agora pode ter-se um currículo pequeno e já se publica um livro, porque é acessível. O que não quer dizer que se deva fazê-lo. Diria, em alternativa, para se criar um bom site e se guardar a monografia para casos muito especiais, quando uma carreira chega ao fim. Ou a meio de uma carreira particularmente significativa e impressionante, como a de Álvaro Siza.

Mas o livro, independentemente do modelo, ainda é um meio importante para os artistas mostrarem e fazerem circular o seu trabalho?
Sim, para o fazer circular e chegar a um público mais alargado. É uma função nobre do livro. Nós escolhemos o papel certo, o formato certo, sensações tácteis... Tentamos criar a atmosfera apropriada ao trabalho e ao autor. Como se fosse uma segunda exposição.

Nota-se nas suas publicações sobre arquitectura um especial cuidado com a fotografia – tem, inclusive, livros com o trabalho de Hélène Binet, uma das principais fotógrafas de arquitectura. Na conferência dizia que agora há muitas imagens digitalmente manipuladas que ameaçam a fiabilidade do conteúdo. A fotografia deve suportar os factos ou dar uma dimensão emocional?
Deve documentar a realidade. A fotografia deve ser o mais completa possível de forma a que o leitor não sinta necessidade de ir ver o edifício. Muitos arquitectos dizem “ah, esconde aqui este canto, não é tão bonito” ou “ignora os edifícios vizinhos, isto sou eu”. Mas porque é que a fotografia não deve discutir isso? É importante para perceber o contexto que rodeia a obra, os eventuais conflitos.

De outro modo a arquitectura vive só para a imagem.
Pois. E eu odeio isso. É muito difícil convencer-me a tirar alguma coisa. Se eu der instruções ao fotógrafo, digo: “Ok, não te esqueças de olhar à tua volta primeiro. Se estiver lá um caixote do lixo podes tirá-lo de lá, mas não exageres. Se limpares tudo é uma mentira, é enganares-te a ti próprio.”

Nos últimos anos tem lançado livros sobre questões sociais, direitos humanos e ecologia. É uma forma de incorporar as suas convicções políticas no seu trabalho?
A minha selecção de arquitectos, designers e artistas representam algo em que acredito, mas a certa altura pensei: “Que fragmento da sociedade está à minha volta? Quem são os meus amigos?” São todos designers, arquitectos, artistas, amantes de livros, galeristas... vivem num nicho e encontram-se todos nos mesmos sítios, na Bienal de Veneza, na Art Basel... [suspira]. Fiquei tão farto. Isso aconteceu-me há 15 anos. Pensei: “Isto não pode ser o meu futuro. No entanto, sou reconhecido nesta comunidade. Porquê desistir disso? Não devo” (risos). Então decidi deixar um pé no nicho e pôr outro no mundo. Mas sim, foi uma forma de incorporar as minhas convicções no meu trabalho. Tentar ter um papel que vá além de contribuir para a beleza.

Estes livros são feitos à base de imagens.
O conteúdo visual resulta muito bem. A minha filha, aos dez anos, começou a fazer aquelas perguntas difíceis e eu tentei responder-lhe com imagens. O que são os direitos humanos? Procurei fotos da normalidade, da tolerância, e mostrei-lhe depois o oposto: pessoas presas, castigadas por terem expressado a sua opinião… e ela percebeu. Isso está na base do livro “The Face of Human Rights”. Respeitar o direito à vida, sem excepções. Isso expressa muito do meu entendimento do que é ser autêntico.

Acredita que publicar livros pode ajudar a mudar o estado das coisas?
Sim. Acho que é um pequeno mas importante contributo para o desenvolvimento da sociedade, apesar de estarmos, na minha opinião, numa fase decadente. Sinto-me um pouco desiludido ao ver as coisas irem pelo caminho errado, mas vale a pena fazer o esforço. Publicar faz parte da nossa memória colectiva, seríamos cínicos se desistíssemos. É uma questão de humanismo: se posso fazer o bem, deixa-me fazer o bem.

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