Obama à esquerda e sem filtros até ao fim do mandato

Presidente dos Estados Unidos apresenta um ambicioso programa legislativo, mas os republicanos já avisaram que vão vetar a maioria das propostas.

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O discurso do Presidente norte-americano refoçou o braço-de-ferro com o Partido Republicano Mandel Ngan/Reuters

Depois de ter arrumado o espartilho das eleições no baú das cautelas políticas, o Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, voltou a vestir o fato da esperança que o levou à Casa Branca em 2008, com um discurso perante o Congresso que já cheirava a História ainda antes de ter chegado ao fim.

"Esta noite, viramos a página", declarou Obama nos momentos iniciais do discurso sobre o Estado da União, na noite de terça para quarta-feira, num tom confiante que fez recordar os tempos do "Yes We Can".

Agora, tudo é possível outra vez, disse o Presidente norte-americano. "Neste momento – com uma economia em crescimento, um défice em queda, uma indústria vibrante e uma produção energética a florescer – saímos de uma recessão mais livres para escrever o nosso próprio futuro do que qualquer outra nação no mundo. Cabe-nos escolher quem queremos ser nos próximos 15 anos, e nas décadas seguintes."

Mais do que uma imagem de confiança, Barack Obama assumiu uma postura desafiadora perante um Congresso que vai ser dominado nos próximos dois anos pelo Partido Republicano – precisamente o tempo que lhe resta na Presidência.

Como nos Estados Unidos são os membros do Congresso (Senado e Câmara dos Representantes) que aprovam as leis, muitas das propostas que Obama defendeu no seu discurso sobre o Estado da União vão ser recebidas nas duas câmaras com uma certidão de óbito previamente passada, mas isso quase todos os eleitores norte-americanos sabem; o que o Presidente norte-americano fez foi vincar as diferenças fundamentais entre a sua ideia de desenvolvimento económico e social e aquilo que os seus adversários políticos defendem.

A vitória do Partido Republicano nas eleições para o Congresso em Novembro do ano passado, e o facto de Obama já não ter de se preocupar com mais nenhuma eleição até ao fim deste seu segundo e último mandato, criaram as condições perfeitas para um discurso sem filtros.

Foi a "marcação desafiadora de uma agenda ambiciosa", como escolheu para título o The New York Times; foi "o reforço do compromisso com o seu legado liberal", na versão do The Washington Post; foi o grito do "liberal libertado", nas palavras da revista online Slate, que resume o início de uma era em que Obama pouco tem a perder se disser tudo o que pensa em público.

Como parte de uma nova estratégia para evitar que o discurso sobre o Estado da União se torne quase irrelevante para o grande público, a Casa Branca decidiu este ano ir avançando muitas das suas propostas nas últimas duas semanas. A principal novidade não foi o conteúdo, mas a forma: "Confiante e, por vezes, até arrogante", notou o The New York Times.

A ideia principal é a de continuar a lutar contra a chamada economia "trickle-down" – que defende a redução de impostos e atribuição de outros benefícios aos mais ricos com o objectivo de gerar mais emprego para todos – por uma "economia da classe média". Ou, nas palavras de Obama, "a ideia de que o país é melhor quando toda a gente tem as mesmas oportunidades, quando toda a gente contribui da mesma forma, e quando toda a gente joga com as mesmas regras".

"Vamos aceitar uma economia em que apenas uns poucos têm sucesso? Ou vamos comprometer-nos com uma economia que gera mais rendimentos e oportunidades para quem se esforça?", questionou Obama, antes de lançar o desafio ao Partido Republicano na forma de outra pergunta: "Vamos permitir que sejamos classificados em facções e que nos viremos uns contra os outros, ou vamos retomar o sentido de finalidade comum que sempre impulsionou a América?"

"Economia de classe média"
Em termos simplificados, a proposta de Barack Obama assenta no aumento da carga fiscal para os mais ricos; no acesso gratuito às universidades locais (os chamados "community colleges", que oferecem cursos técnicos ou programas de aperfeiçoamento profissional) a pelo menos nove milhões de pessoas; e no alargamento de prestações sociais, como subsídios de maternidade e baixas médicas. O objectivo é transformar os bons indicadores económicos dos últimos meses em empregos melhores e mais bem pagos para os cidadãos da classe média.

"Sabemos que desde 2007 não havia tantas pequenas empresas com a intenção de aumentar os vencimentos dos seus empregados. Mas a questão é esta – todos nós que estamos aqui esta noite temos de definir objectivos mais ambiciosos do que apenas fazer com que o Governo não trave este progresso. Temos de fazer mais do que apenas não prejudicar. Esta noite, em conjunto, vamos fazer mais para restaurar a ligação entre trabalho árduo e oportunidades acrescidas", disse Obama, lançando mais um desafio à nova maioria do Partido Republicano no Congresso.

A questão agora é a de saber até que ponto as palavras de Obama vão chegar aos ouvidos dos seus adversários não como um apelo à união, mas como um convite a uma maior confrontação e até como um exercício de hipocrisia.

"Aparentemente, a Casa Branca acredita que os republicanos vão conseguir distinguir entre a retórica da marcação de uma agenda e um processo legislativo mais silencioso", escreve William Galston, analista da Brookings Institution. A resposta pode ser mais complicada do que parece: "Os líderes republicanos talvez consigam. Se os membros das suas bancadas vão conseguir perceber ou se vão estar dispostos a fazê-lo, é um assunto diferente."

Obama mostrou que está disposto a manter um braço-de-ferro com o Partido Republicano nos próximos dois anos, e o Partido Republicano precisa de responder com força, mas sem correr o risco de perder o alento conquistado nas eleições para o Congresso – ao contrário do que aconteceu em Novembro passado, o calendário eleitoral de 2016 favorece o Partido Democrata, dando-lhe uma boa hipótese de continuar na Casa Branca e de reconquistar a maioria em pelo menos uma das câmaras do Congresso.

O discurso mais liberal de Barack Obama poderá ter também consequências nas eleições primárias para a escolha do candidato do Partido Democrata à Casa Branca. Frases como "Precisamos de leis que fortaleçam e não que enfraqueçam os sindicatos, e que dêem uma voz aos trabalhadores americanos" podem dar mais margem de manobra a um possível avanço de Elizabeth Warren, vista por estes dias como a líder do sector mais à esquerda do Partido Democrata, e obrigar os analistas a refazerem os seus cálculos sobre o pré-anunciado sucesso de uma eventual candidatura de Hillary Clinton.

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