António Costa, um político para além da cor da pele
Será a eleição do novo líder do PS e candidato a primeiro-ministro uma vitória sobre uma barreira de racismo? Especialistas dizem que não. Trata-se de um descendente de goeses brâmanes católicos, os portugueses da Índia.
Corria o ano de 1976, Maria Antónia Palla foi buscar o filho António Costa à escola. Raramente o fazia, mas naquele dia chegou à porta da Escola Fernão Lopes, já instalada no Palácio dos Condes de Cabral, no Largo António de Sousa Macedo, em Lisboa, e perguntou pelo filho a um contínuo. Depois de alguma insistência, o homem lá percebeu quem era a criança cuja mãe ali se apresentava e soltou a frase: “Ah, é o preto!”
Maria Antónia fica pasmada. Mas também muitíssimo preocupada. À noite, já em casa com o filho, decide falar-lhe sobre o que via como um problema: a hipótese de o seu filho ser vítima de racismo. Com cuidado redobrado, pergunta ao rapaz como é que o tratam na escola. Ele responde pronto: “António!” Ela insiste: Ele acrescenta o apelido e diz que também o tratam por António Costa. Como a conversa não evoluía, Maria António Palla relata ao filho o sucedido à porta da escola e a reacção do contínuo. Tranquilo, António Costa pergunta-lhe: “Ó mãe, tu já olhaste para mim? Já viste a minha cor? Eu sou escuro mesmo.”
António Costa nasceu em Lisboa a 17 de Julho de 1961, filho da jornalista Maria Antónia Palla e do escritor Orlando da Costa. E se Maria Antónia era de uma família portuguesa, republicana e laica do Seixal, Orlando era filho de uma família goesa, brâmane e católica de Margão, território que foi integrado na Índia em 1961, com a anexação das possessões portuguesas Goa, Damão e Diu. Filho de uma portuguesa da metrópole, branca, e de um goês de Margão, indiano portanto, António Costa herdou características fenotípicas do pai, ou seja, a cor da sua pele é castanha, como é próprio das populações da Índia.
“Nunca me limitou”
Hoje, como na sua adolescência, António Costa vive bem com a cor da sua pele. Ao PÚBLICO afirma: “A cor da pele nunca me limitou, nunca.” Perante a pergunta sobre se alguma vez se sentiu discriminado, vítima de racismo, garante: “Eu, pessoalmente, nunca senti. Posso ter ouvido uma ou outra vez chamarem-me 'monhé', mas é episódico.” E explica que a cor da pele sempre foi vivida por si “com normalidade” e sem se sentir diferente ou especial por isso: “Também não era motivo de orgulho.”
O candidato a primeiro-ministro diz mesmo que só agora surgiu “um grande interesse dos jornalistas sobre isso”, o que atribui ao facto de a sua vitória nas primárias ter sido noticiada em jornais indianos como o Hindustan Times (29/09/2014) e o Economic Times (30/09/2014), que salientaram o facto de, pela primeira-vez, um candidato a primeiro-ministro no Ocidente ser de origem indiana.
“Na Índia o assunto é notícia porque há actualmente uma nova atitude em relação aos goeses”, explica António Costa. “Há uma coisa nova, os indianos têm uma relação mais descomplexada com os goeses e Goa já tem governos hindus.” E sublinha que há um novo interesse “sobretudo em relação aos goeses que tinham vindo para Portugal, que eram mal vistos, havia uma barreira contra os goeses em geral, porque consideravam que eles estavam feitos com os colonialistas”.
O secretário-geral do PS considera mesmo que a sua ascensão a este cargo e a sua escolha em eleições primárias como candidato a primeiro-ministro nada têm que ver com a quebra de uma barreira contra o racismo na política portuguesa. Esta posição de Costa é confirmada ao PÚBLICO pelo antropólogo goês e investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, Jason Keith Fernandes. “A vitória de António Costa não significa que não há racismo”, afirma este investigador. E lembra: “Os ingleses quase ‘inventaram’ o racismo, mas estavam na Índia com o seu império e tratavam os filhos dos rajás como brancos, estes estudavam em Oxford, como os filhos da elite inglesa, eram completamente ingleses. Em qualquer império as elites dos territórios são tratadas como as elites do centro.”
Jason Keith Fernandes afirma que “para perceber o racismo é preciso analisar como são tratados os goeses de classes baixas, onde as pessoas não têm poder, não são especiais”. O facto de um filho de um goês de elite ser candidato a primeiro-ministro não altera nada em relação ao racismo quer seja na política, quer seja na sociedade em geral. E avança com um exemplo: “A Índia teve uma mulher primeira-ministra, Indira Gandhi, e isso nada indica sobre o estatuto da mulher na Índia.”
Pelo contrário, este investigador defende que só a existência da dúvida sobre se há diferença em Costa já mostra que o racismo permanece. “Conta-se a história de uma senhora goesa que se ofendeu porque num restaurante de Lisboa ouviu comentar que ela comia como os portugueses e falava como os portugueses”, conta Janson Keith Fernandes. E conclui: “Ela ofendeu-se por terem duvidado. O espanto vem da dúvida de que possa ser verdade. O dilema é esse, a dúvida mostra que não estamos num espaço sem racismo. Estamos todos marcados pelo racismo. Basta o facto de dizermos que não somos racistas para já estarmos a levantar o problema. Há racismo e o que há a fazer é falarmos disso.”
Os goeses e os outros
Também Sandra Ataíde Lobo, investigadora do Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, adverte que “os goeses para os portugueses são só esta elite, os outros não são vistos como goeses, são vistos como indianos”. E frisa que, “aliás, os próprios goeses não se vêem como indianos”. Os outros indianos que chegam a Portugal após a descolonização de Moçambique é que são os vistos como os “monhés”. Quanto aos goeses, “sempre houve mais curiosidade cultural do que racismo de pele”, defende Sandra Ataíde Lobo, ela também goesa.
Assim, embora numa sociedade racista, o que distingue António Costa é o facto de ele ser um português com origem goesa. Logo, integra uma elite que está acima de classificações com base na cor da pele. Como confirma ao PÚBLICO a antropóloga professora no ISCTE e investigadora do Centro de Estudos Internacionais, em Lisboa, e no Indian Institute of Technology, na Índia, Rosa Maria Perez, “há uma componente fenotípica que não tem incidência social; em relação aos goeses em Portugal, quer cultural, quer socialmente, nunca houve uma dicotomia baseada na componente racial ou fenotípica”. E frisa: “Os goeses distinguem-se de todos os indianos. Os goeses eram portugueses, não eram indianos. O racismo é estranheza pela cor. Mas o goês não era visto com a condição estranha de diferença pela cor da pele.”
António Costa explicita o que distingue os goeses: “Há logo a distinção social entre os goeses vindos para Portugal continental antes de 1961e os outros indianos que vieram depois, tal como os africanos. A comunidade goesa e indiana cresceu cá, mas apenas com a descolonização a partir de Moçambique.” E acrescenta: “Na Índia, cruzam-se muitas coisas, e os goeses sempre usaram a religião católica e a língua portuguesa como diferença. Os goeses sentem-se tão diferentes que dizem, por exemplo, 'os indianos', quando falam dos outros naturais da Índia.”
Apesar de a elite goesa se ver como portuguesa, o próprio António Costa também se identifica com a sua ascendência goesa. “Percebi desde sempre, tanto que em miúdo era chamado babush [garoto]”, afirma o secretário-geral do PS. “Lembro-me da minha avó Amélia. Na altura os goeses eram poucos, eram só a elite, à qual o meu pai pertencia. Ele e alguns amigos como Bruto da Costa, Narana Coisoró e Kalidás Barreto”, conta António Costa.
Pela poesia e por Pessoa
Orlando da Costa (1929-2006) nasceu em Lourenço Marques quase por acaso. “A minha avó Amélia teve uma doença pulmonar e foi tratar-se na Suíça. No regresso pára em Lourenço Marques para visitar uma irmã. Engravida na viagem e acaba por ficar dois anos em Moçambique para ter o filho.” Cresce em Goa, na cidade de Margão, na casa da família, na “Rua Abade Faria, onde ainda hoje vive Anna Karina Pimpula”, sua prima, adianta António Costa. E Rosa Maria Perez frisa que “a família é da elite local, a casa de família é uma casa indo-portuguesa típica, há ascendentes de António Costa que se destacaram na Escola Médico-Cirúrgica de Goa”.
Quando jovem, “Orlando da Costa fez parte do movimento anticolonialista, sai de Goa por isso, chegou a estar preso”, conta Rosa Maria Perez. António Costa acrescenta: “Depois da anexação [1961], o meu pai era um dos únicos – se não o único – que eram considerados freedom fighters [lutadores pela liberdade]”. Assim, aos 18 anos, Orlando da Costa sai de Goa. “O pai queria que ele fosse estudar para Bombaim ou para Inglaterra, mas ele quis vir para Lisboa, pela literatura portuguesa e por Fernando Pessoa”, relata António Costa. E prossegue: "Veio em 1948 e só foi lá em 1975. Esteve muitos anos sem contacto. O irmão, meu tio, voltou a Goa em 1965. Já eu só fui em 1979, tinha 18 anos, e o meu irmão [o jornalista Ricardo Costa] 11 anos.”
Em Lisboa, Orlando da Costa adere em 1954 ao PCP, partido de que é militante até morrer. Um ano antes casara-se com Maria Antónia Palla, feminista e militante do PS depois do 25 de Abril. A relação entre ambos já existia antes, mas optam por se casar a seguir à primeira prisão de Orlando da Costa pela PIDE. Casados pelo civil, Maria Antónia poderia visitá-lo, se voltasse a ser preso. O facto de ambos os pais “terem história política em Portugal” é uma das razões pelas quais “não é estranho que António Costa seja secretário-geral do PS”, diz Sandra Ataíde Lobo.
Mas o que o distingue acima de tudo Orlando da Costa é ele “pertencer à elite goesa”, sublinha Rosa Maria Perez, insistindo em que “ele não é indo-português, ele é um brâmane católico goês”. E Janson Keith Fernandes precisa: “António Costa é eleito devido ao trabalho dos brâmanes que desde o século XVIII lutaram para que os seus direitos como cidadãos fossem efectivos.” O antropólogo goês explica que “os goeses foram cidadãos portugueses desde o início da soberania portuguesa em Goa” e desde o início há uma fusão da estratificação social europeia com a indiana, dando origem a uma nova elite. Essa elite específica que se formou em Goa “era composta pelos luso-descendentes que eram poucos, eram chamados 'reinóis' e tinham antepassados no reino, mas nessa elite tinham um peso central as elites nativas: os brâmanes e os chardós” – os primeiros são a casta dos sacerdotes, que transportam a palavra sagrada, os segundos os guerreiros, sendo ambas as castas terratenentes.
Sandra Ataíde Lobo lembra que “existe todo o tipo de goeses, os goeses não são só uma elite”, mas sublinha também que “as castas que formavam as elites nativas goesas eram os brâmanes e os chardós”. “Para Portugal, o fluxo maior era de brâmanes, que vinham estudar”, adianta.
Peso brâmane
Num território em que “os indo-portugueses eram poucos, os brâmanes dominaram sempre a sociedade goesa e dominavam o poder em Goa”. De resto, frisa a historiadora, “tinham o domínio da propriedade”. Com a soberania portuguesa sobre Goa, os brâmanes assimilaram o catolicismo e “eram maioritariamente católicos, só no século XVIII é que começa a haver brâmanes hindus em Goa”. Assim, explica historiadora, “é o núcleo de brâmanes católicos que domina sempre e se expande para a metrópole e para as outras colónias”.
Também Rosa Maria Perez defende que “uma singularidade do colonialismo português em relação a Goa é que sempre houve uma grande circulação de elites”. E prossegue: “Os goeses de elite estudavam em Lisboa ou Coimbra. Eram as elites administrativas, tanto as elites católicas como as hindus. Em Goa, a elite católica absorveu a casta superior, os católicos são os brâmanes. O colonialismo na Índia discriminou entre católicos e hindus, e brâmanes e outros. Os lugares da administração colonial eram ocupados por brâmanes católicos. A circulação de goeses é antiga, acentua-se com a República e continua no Estado Novo.”
Por outro lado, Sandra Ataíde Lobo lembra que os brâmanes “são muito educados": "A educação é para eles um programa de classe. Estudam e através do estudo combatem a discriminação e procuram ter oportunidades. Eram cidadãos do império, tinham direitos e para os usufruir tinham de estudar.” É isso que possibilita a situação excepcional de Goa e das elites goesas em relação aos restantes territórios do império, conclui a historiadora, acentuando o facto de que mesmo em Cabo Verde, onde se salientaram elites criolas, elas não adquirem nunca o estatuto dos goeses.
“Os goeses impunham-se como administração local, sempre disputaram com luso-descendentes o espaço político, e em Portugal sempre houve goeses, tiveram margem para conquistar espaço. Sempre houve integração e miscigenação. Em todo o lado há goeses em Portugal”, afirma Sandra Ataíde Lobo.
A singulariedade goesa no império era tal que após a revolução liberal de 1820, quando é eleito o primeiro Parlamento, é em Goa que são eleitos os primeiros e únicos, na época, deputados nativos: são eleitos dois brâmanes católicos. “Logo da primeira vez foram eleitos nativos como deputados de Goa. Nas outras colónias eram eleitos brancos. Em Goa, quando eram brancos da metrópole, era negociado com os goeses, com a elite brâmane católica de Goa”, destaca Sandra Ataíde Lobo.
Os dois primeiros deputados goeses são Constâncio Roque da Costa, ascendente de Alfredo Bruto da Costa, e Bernardo Peres da Silva. Este último, segundo Sandra Ataíde Lobo, “durante as lutas liberais exila-se no Brasil, acompanha a causa liberal”. E, “quando D. Pedro ascende ao poder, faz uma exposição ao rei sobre o estado da Índia. É nomeado governador. É o primeiro nativo a ser governador – é inédito até então –, embora o seja por pouco tempo, pois, quando chega a Goa, os luso-descendentes fazem uma revolta.”
Sandra Ataíde Lobo conclui assim que, “a partir do século XIX, há da parte das elites goesas mais investimento sistemático na educação e nas estruturas de representação liberais”: “Os brâmanes católicos de Goa são formados nas ideias liberais e com o objectivo de retirarem daí consequências.” Janson Keith Fernandes remata: “O facto de António Costa ser candidato a primeiro-ministro é a conclusão de um projecto de poder dos brâmanes desde o seculo XVIII.”