Uma lei polémica mas que não evitaria o surto de Legionella
Autoridades ambientais dizem que fim das auditorias à qualidade do ar interior tornou lei mais eficaz; profissionais do sector contestam. A polémica já está no Parlamento.
Em causa está um decreto-lei aprovado em Agosto do ano passado que revogou um diploma de 2006, o qual instituíra auditorias periódicas a cada dois, três ou seis anos, conforme a função do edifício. A legislação – seja a que está em vigor ou a anterior – não se aplica às instalações industriais. Por isso, com ou sem auditorias, não teria evitado o actual surto, que, ao que tudo indica, teve origem na dispersão das bactérias a partir de torres de refrigeração de uma ou mais fábricas de Vila Franca de Xira.
Mas a Legionella está muitas vezes presente no ar interior dos edifícios, causando um conjunto de situações que passam despercebidas da opinião pública. Desde 2004, houve em média 96 infecções e nove mortes por ano, segundo dados da Direcção-Geral de Saúde.
Representantes do sector da climatização e técnicos da qualidade do ar interior têm manifestado preocupação quanto ao facto de se terem eliminado as auditorias periódicas. Mas o presidente da Agência Portuguesa do Ambiente, Nuno Lacasta, disse esta quarta-feira que a actual legislação dá mais garantias de protecção.
“A qualidade dos relatórios das auditorias que recebíamos muitas vezes ficava muito aquém das necessidades de protecção das pessoas”, disse Lacasta à rádio TSF, esta quarta-feira. “Por isso a legislação foi alterada em 2013. Para ser mais robusta, mais eficaz, mais preventiva”, completou.
Segundo Nuno Lacasta, os requisitos técnicos agora são mais exigentes, incluindo a norma que diz que não pode haver quaisquer vestígios de Legionella pneumophila – a mais nefasta da meia centena de espécies de Legionella – nos equipamentos dos sistemas de ar interior.
O presidente da Agência Portuguesa do Ambiente afirmou ainda que a qualidade do ar interior é garantida através da manutenção periódica dos equipamentos, mencionando a “averiguação dos planos de manutenção que é feita de seis em seis anos”.
Mas profissionais do sector continuam a defender que a alteração legislativa criou uma lacuna. O decreto-lei anterior obrigava à realização de auditorias, com periodicidade inferior, que incluíam especificamente a pesquisa de Legionella nos locais de maior risco – como tanques de torres de arrefecimento, depósitos de água quente e tabuleiros de condensação de ares condicionados.
A nova legislação eliminou as auditorias mas manteve as normas quanto à Legionella, agora reforçadas, assim como outros parâmetros da qualidade do ar. Mas é omissa quanto a quem cabe fazer este controlo. Diz que os edifícios de comércio e serviços estão sujeitos às normas e atribui à Inspecção Geral do Ambiente, Mar e Ordenamento do Território (IGAMAOT) a instauração de processos de contra-ordenação caso não sejam cumpridas.
O PÚBLICO solicitou ao Ministério do Ambiente dados sobre os processos de contra-ordenação abertos, bem como mais esclarecimentos sobre a nova legislação, mas não obteve resposta.
Segundo a lei, os edifícios de comércio e serviços devem ter um plano de manutenção dos equipamentos e devem também ser submetidos a uma avaliação de seis em seis anos. Mas, quanto a estas avaliações, o texto legal apenas aponta para a sua vertente energética, sem referir explicitamente a qualidade do ar interior.
“Não há peritos a fazer [a análise] à qualidade do ar interior”, afirma José Afonso, da direcção da Associação Nacional de Peritos Qualificados. “Efectivamente, haveria mais qualidade do ar interior e mais saúde se estivessem a exercer a actividade”, completa.
A questão já chegou à Assembleia da República. O Bloco de Esquerda apresentou um projecto de lei para repor a obrigatoriedade das auditorias e requereu uma audição parlamentar aos ministros da Economia e do Ambiente. “Exigimos do Governo que venha dar a cara pelas alterações legislativas que fez”, disse líder parlamentar do BE, Pedro Filipe Soares, citado pela agência Lusa. “A prevenção é o primeiro objectivo que devemos ter em cima da mesa e não, como acontece hoje, andar a correr atrás do prejuízo”.
Como a legislação sobre a qualidade do ar interior não se aplica ao surto de agora, o Partido Ecologista Os Verdes quer saber que inspecções têm sido feitas às indústrias da região. “Se as inspecções realizadas pelo Ministério do Ambiente a unidades fabris ocorressem com maior frequência, e se os meios humanos fossem em maior número, situações como esta teriam menor probabilidade de ocorrer”, referem Os Verdes, num comunicado.
Na terça-feira, a IGAMAOT fez uma inspecção extraordinária à fábrica de adubos ADP Fertilizantes, já apontada pelo ministro do Ambiente, Jorge Moreira da Silva, como um possível foco da contaminação. Em acções como esta, a IGAMAOT normalmente recolhe um conjunto alargado de informações, examinando registos, contratos de manutenção, entrada e saída de produtos, dados de segurança e muitos outros elementos que permitam avaliar se a empresa está ou não a cumprir com o que legalmente devia.
Não terão sido recolhidas amostras de água, acção que já tinha decorrido há três dias. Foi na madrugada de domingo para segunda-feira que os inspectores foram de surpresa às empresas da região, recolhendo amostras, que às seis da manhã estavam no Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, para análises. Foi detectada Legionella pelo menos na ADP Fertilizantes e na fábrica de produtos químicos Solvay.
A ADP Fertilizantes afirma ter cumprido “todas as obrigações impostas pela lei quanto à análise e tratamento de águas” nas suas torres de refrigeração e diz que tem sido “submetida a inspecções regulares pelas autoridades, observando com rigor todas as recomendações”, segundo um comunicado citado pela Lusa.
A empresa diz que “aguarda que a causa da contaminação seja descoberta com a celeridade possível”, de modo a poder regressar à laboração normal.
A IGAMAOT vai avaliar a conformidade da actuação da ADP Fertilizantes com os requisitos impostos na sua licença ambiental. Mas o ministro do Ambiente já falou na possibilidade de um processo por crime ambiental.