“Tudo em marcha para o 9-N”, garante o governo da Catalunha
Depois de suspender o referendo marcado pela generalitat, a Justiça suspendeu a consulta simbólica marcada para o substituir. O governo de Artur Mas diz que não há marcha atrás, a oposição fala em acto sem qualquer legitimidade.
“Façamos um país novo”, está escrito antes do quadradrinho vermelho que marca 04 dias, seguido das horas, minutos e segundos. São estes que ocupam a parte maior do rectângulo. 06:26:26, lia-se, já passava das 17h00.
As urnas distribuídas por toda a Catalunha abrem às 9h de dia 9 e parece que nada nem ninguém pode travar essa realidade. A meio da praça de Sant Jaume, Generalitat à direita, sede da autarquia à esquerda, o relógio está no quarteirão que faz esquina com a rua Ferran mais perto da câmara. Na outra esquina com a rua que segue até às Ramblas, há uma grande bandeira da Catalunha desfraldada no primeiro andar e duas esteladas, a bandeira independentista, nas varandas do terceiro e do quarto.
O Governo nacional de Mariano Rajoy pedira ao Constitucional que impugnasse o referendo marcado por Artur Mas e assim aconteceu, a 29 de Setembro. Artur Mas decidiu então que se faria uma consulta simbólica, um “processo de partipação cidadã”, não vinculativo. O Governo decidiu enviar a nova consulta para o Constitucional e este voltou a suspendê-la.
A generalitat argumentava que não havia consulta para suspender porque nunca houve uma ordem executiva formal a marcá-la, mas os onze juízes, onde se inclui uma catalã, consideraram por unanimidade que elementos como cartas enviadas aos funcionários, o site activado onde se explica o que está em causa na votação ou a publicidade espalhada pelas ruas de Barcelona com a assinatura do governo regional a apelar à participação valem tanto como um decreto de convocatória.
Face a esta decisão, já esperada, a maioria dos comentadores e analistas antecipavam que Artur Mas passasse a responsabilidade da consulta às organizações privadas de cidadãos que têm promovido as grandes manifestações da Diada (11 de Setembro, dia nacional catalão) e defendido a independência. A maior destas organizações é a Assembleia Nacional Catalã (ANC), que já organizou referendos simbólicos em muitos municípios, mas a sua líder, Carme Forcadell, tem insistido que a generalitat não pode fugir às suas responsabilidades.
“Nós não temos eventos de organização da consulta porque a organização cabe à generalitat”, dizia segunda-feira ao PÚBLICO o assessor de imprensa da ANC, Joan Serra.
Poucas horas depois de ser conhecida a decisão do Tribunal Constitucional, Francesc Homs, ministro da presidência e porta-voz da generalitat, surgiu aos jornalistas para garantir que “o governo mantém o processo participativo” e que “tudo está pronto para o 9-N”. Mais: “A responsabilidade é nossa”, afirmou, e a intenção não é “transferir a responsabilidade” para o Pacto Nacional pelo Direito a Decidir, a coligação que junta umas 300 associações que defendem o voto “sim” – as maiores são a ANC e a Omnium Cultural, uma organização de defesa e promoção da língua catalã.
Liberdade de expressão
“Agora mais do que nunca é preciso que defendamos todos juntos e com determinação a liberdade de expressão”, respondeu Homs, quando questionado sobre que papel poderá ter o Pacto Nacional na consulta. Na segunda-feira soube-se que a generalitat enviou para o Constitucional uma queixa contra Madrid, que acusa de atentar contra a liberdade de expressão e a liberdade ideológica dos catalães ao atacar esta votação simbólica.
Depois, perguntaram a Homs se o governo vai manter os pontos de votação previstos, 1317 escolas com 6695 mesas. “O governo mantém o processo participativo. Tudo está em marcha”, repetiu Homs. “Com todos os efeitos e todas as consequências”, acrescentou. À partida, os funcionários que abram as escolas podem ser acusados de um crime de desobediência. “Aqui não há funcionários que estejam a trabalhar, são voluntários”, disse Homs. “Aqui ninguém tem de sofrer nada.”
José María Espejo-Saavedra Conesa, deputado no parlamento regional pelo partido Cidadãos, defensor da unidade de Espanha, descreve um Homs “ambíguo”, sinal de que a governo autonómico “realmente não sabe o que fazer”. “Sabem que já não podem levar a cabo a consulta como queriam a não ser que a ponham nas mãos da sociedade civil ou que queiram ignorar a lei e o Estado de direito”, diz ao PÚBLICO. “O mais grave são as implicações que isto pode significar para os funcionários das escolas.”
O político de uma formação com 9 deputados no parlamento de 135, descreve uma consulta “sem qualquer legitimidade e garantias democráticas”. “É como se eu convocasse os apoiantes do meu partido para uma consulta organizada por mim”, diz.
Uma pantomina
Juan Milian, deputado regional do PP, fala “numa pantomina” e acusa Artur Mas de ter mentido sucessivamente. “Mentiu quando disse que ia cumprir sempre a lei. Mentiu quando disse que ia organizar um referendo”, enumera. “Agora, só esperamos que cumpra a lei e exigimos que obedeça ao que foi decidido pelo Constitucional.”
Eloy, um jovem de 20 anos de Girona, cozinheiro num restaurante de uma das ruas mais estreitas que sai da praça San Jaume, discorda em absoluto. “Estou completamente de acordo com a consulta e penso que a democracia em Espanha é uma palhaçada”, diz o jovem, voluntário numa das 77 mesas que se espera venham a abrir na sua cidade a nordeste de Barcelona.
Eloy é obviamente pró-independência, a Enric, “muito jovem, 78 anos”, tanto lhe dá. Os dois estão à conversa enquanto Eloy espera por um táxi que trará mantimentos para o restaurante e aproveita para fumar um cigarro. Enric, reformado, mora no bairro de Sant Andreu, na periferia leste de Barcelona, mas aproveita as tardes para passear pela Cidade Velha. Não vai votar e tem medo do que possa acontecer. “Imagina, esta juventude sai à rua e sabe-se lá. Eu estive em manifestações quando veio a democracia, a defender as autonomias, e havia grupos com correntes e com paus…”
Enric não nasceu na Catalunha, mas vive cá há 59 anos. “Dou-me melhor com os catalães do que com as pessoas da minha aldeia, em Aragão, ali os ricos são arrogantes”, garante o espanhol com dois filhos e quatro netos. Um dos filhos também é voluntário, como Eloy, mas Enric preferia que não fosse. Parte da explicação está no dedo mindinho da sua mão direita, onde lhe falta um pedaço de carne, perdido na confusão quando os pais fugiram da guerra civil a caminho da França e ele caiu da cadeira em que o transportavam. “Foi em 1936, o meu pai era republicano.”
Um ataque à democracia
Mercè, “como a padroeira” de Barcelona, vê no recurso de Rajoy para o Constitucional um “ataque à democracia” e acredita que terá o efeito oposto ao pretendido. “Quanto mais se pronunciem eles, mais nós nos vamos a pronunciar, votando”, diz esta professora de catalão de 56 anos, “catalã de toda a vida, dois apelidos catalãos”, várias gerações de Barcelona.
Lembrando uma Catalunha que “sempre acolheu andaluzes, galegos, bascos”, Mercè descreve como “injusto” o “tratamento discriminatório” que considera que a região é alvo por parte do Governo do Partido Popular. Foi isso, diz, que fez crescer o sentimento independentista. “A minha mãe, de 88 anos, nunca se tinha imaginado nas ruas, nas manifestações, a aplaudir, e agora é o que quer”, conta.
José María Espejo-Saavedra Conesa e Juan Milian, pelo contrário, acusam Artus Mas de “irresponsabilidade” e de ter “aumentado as tensões”. O deputado dos Cidadãos diz que o único caminho para o presidente da generalitat é convocar eleições antecipadas: “O seu projecto político falhou e isso é o que acontece numa democracia quando se falha”. Juan Milian não acredita que isso aconteça em breve. Afinal, “sem o apoio da Esquerda Republicana, sabe que vai perder”. A ERC, partido nacionalista de esquerda, acredita que pode vencer as eleições e quer liderar um processo de declaração de independependência unilateral.
A única coisa em que Mercè e os dois deputados concordam é que não haverá violência no domingo. “Não da nossa parte, não é o nosso estilo”, diz Mercè. “A sociedade catalã é pacífica”, afirma Juan Milan, enquanto o deputado dos Cidadãos fala de uma “sociedade muito madura, que já passou por violência política e sabe que não quer voltar a isso”.