Um Nobel do presente para salvar o futuro

“Uma criança, um professor, um livro, uma caneta podem mudar o mundo”, disse Malala na ONU, no dia em que fez 16 anos. Agora, partilha o Nobel da Paz com um indiano de 60 que há décadas devolve crianças à escola.

Malala durante a sua visita a Nova Iorque, o ano passado, com várias idas à ONU
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Malala durante a sua visita a Nova Iorque, o ano passado, com várias idas à ONU Carlo Allegri/Reuters
Satyarthi quando soube do prémio, em Nova Deli
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Satyarthi quando soube do prémio, em Nova Deli Chandan Khanna/AFP
Uma escola de meninas em Mingora, a cidade de Malala no Vale de Swat
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Uma escola de meninas em Mingora, a cidade de Malala no Vale de Swat A Majeed/AFP
Malala, a receber o Prémio para a Consciencialização da Amnistia Internacional, em 2013
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Malala, a receber o Prémio para a Consciencialização da Amnistia Internacional, em 2013 Peter Muhly/AFP

“É uma grande mensagem do comité Nobel, olhando para o cenário actual na Índia e no Paquistão”, notou Satyarthi, que falou aos jornalistas no seu gabinete em Nova Deli. Os vizinhos que já travaram guerras vivem um novo momento de escalada, militar e retórica. Prometendo “trabalhar de mãos dadas” com Malala (como é conhecida em todo o mundo), o antigo engenheiro diz que esse terá de ser um trabalho global pela paz.

Malala, que soube do prémio nas aulas, dedicou-o “às crianças sem voz, que devem ser ouvidas”. Afirmou-se “orgulhosa por ser a primeira paquistanesa, a primeira jovem mulher e a primeira jovem” [aos 17 anos, é a mais nova de sempre] a receber o Nobel da Paz e convidou os chefes de Governo do Paquistão e da Índia a estarem presentes na cerimónia de entrega.

Este também é um prémio contra o radicalismo e o desentendimento entre fés. “O Comité considera importante que um hindu e uma muçulmana, um indiano e uma paquistanesa, se juntem na luta pela educação e contra o extremismo”, ouviu-se no anúncio, em Oslo. “Particularmente em áreas atormentadas por conflito, as violações contra as crianças levam à continuação da violência de geração em geração.” Um prémio a dizer que um mundo com menos guerras não é possível se a educação não for uma verdadeira prioridade.

Por isso é que este é um prémio para o futuro, muito atento ao presente: o extremismo religioso que quase matou Malala é o dos taliban, uma invenção das forças de segurança paquistanesas que chegou a liderar o Afeganistão e continua a ameaçar o país da adolescente e o vizinho a sudeste. Quando, em 2007, os “estudantes de teologia” chegaram a Mingora, capital do Vale de Swat, onde Malala vivia, já tinham passado anos a queimar escolas afegãs, muitas vezes deixando desfiguradas dezenas de alunas.

O extremismo religioso que baleou Malala é o mesmo da Al-Qaeda cuja presença no Afeganistão serviu de pretexto à missão internacional no país, a seguir aos atentados de 11 de Setembro de 2001. Era também para devolver às mulheres o direito a sair à rua e às meninas o direito a estudar que as tropas foram enviadas para o país, diziam então George W. Bush e Tony Blair. Quando era ainda secretária de Estado de Barack Obama, Hillary Clinton repetiu essa ideia, defendendo que a missão internacional – que a partir de 2015 será extremamente reduzida – não pode deixar essa tarefa por cumprir.

O direito à educação
No momento deste Nobel, o mesmo extremismo, desta vez sob o nome de Estado Islâmico, tenta impor a sua visão de sharia (lei islâmica) na Síria e no Iraque, com dezenas de milhares de mulheres e meninas limitadas nos seus direitos ou vendidas como escravas sexuais.

Há ainda a gigantesca crise de refugiados sírios – mais de nove milhões, um terço da população – e iraquianos, a fazer crescer o número de refugiados no mundo. Os ataques dos radicais islamistas do Boko Haram que têm visado muitas escolas na Nigéria (em Abril, raptaram 276 alunas de um liceu), também explicam este aumento. Ora, em média, metade dos refugiados são crianças, e muitos passam anos sem se sentarem numa sala de aula ou trocam a escola por tarefas que lhes permitam contribuir para o orçamento familiar.

No final do ano passado, havia pelo menos 60 milhões de crianças que não iam à escola, 6,5 milhões no Paquistão.

“O Nobel é uma vitória para o direito à educação. Um direito em grave risco na MENA [Médio Oriente e Norte de África] onde as escolas são frequentemente atacadas ou usadas como quartéis”, comentou no Twitter Nadim Houry, responsável da Human Rights Watch para esta região.

Este é, então, um Nobel para a educação e para a possibilidade de futuro. No caso de Malala, também para a coragem – já ameaçada de morte por falar em público contra as ordens dos taliban, continuou a fazê-lo e, naturalmente, a ir à escola. O ataque, a 9 de Outubro de 2012, que a deixou entre a vida e a morte, desfigurada e com a perna e o braço direito paralisados (várias cirurgias depois, resta uma paralisia parcial na face), aconteceu na carrinha de caixa aberta em que voltava da escola. Os dois atacantes feriram ainda duas crianças e deixaram a sua melhor amiga Moniba (que mantém uma cadeira vazia com o nome de Malala na escola), coberta de sangue.

Voltar a sorrir
Já depois de saber que a filha viveria, após a transferência para o Hospital Rainha Isabel, em Birmingham, o pai de Malala, Ziauddin Yousufzai, activista e fundador da escola onde Malala estudava, temeu que ela tivesse perdido a capacidade de sorrir. “Quando ela tentava sorrir eu olhava para a minha mulher e via uma sombra a cobrir-lhe a cara porque pensava, ‘Esta não é a mesma Malala a que dei à luz, esta não é a rapariga que trazia cor às nossas vidas’.”

Malala voltou a sorrir e a estudar. Mas fez da sua uma luta global e nunca mais parou de falar em nome das crianças, especialmente as raparigas, e do seu direito à educação. Ainda corre riscos no Paquistão, onde é considerada por muitos como um produto do ocidente e uma ameaça ao islão, e toda a família – tem dois irmãos mais novos – permanece no Reino Unido. Diz que quer voltar ao seu país e que um dia vai mesmo fazê-lo.

Entretanto, escreveu um livro (Eu Sou Malala, que dedica “a todas as meninas que enfrentaram injustiças e foram silenciadas”; “juntas, seremos ouvidas”, escreve), criou uma fundação (o Fundo Malala, para “defender o acesso das raparigas a uma educação de qualidade” e recolher fundos para investir em “soluções centradas nas comunidades que permitam fornecer melhor educação, dando poder aos líderes e aos educadores locais”), ganhou o Prémio Sakharov e deixou várias vezes o mundo de boca aberta, como quando falou na ONU, aparentando uma enorme segurança e uma maturidade improvável.

Ela explica que, “rodeada por terrorismo e extremismo”, não podia não se aperceber das suas consequências, por mais nova que fosse. Mesmo antes disso, a sua condição de rapariga fê-la tomar consciência precoce da importância da educação: “Para os meus irmãos era fácil pensar no futuro. Eles podiam ser o que quisessem. Para mim era mais difícil e, por isso, queria educar-me e fortalecer-me através do conhecimento”, disse à BBC o ano passado.

Por causa da Malala
“Ela estava a segurar na lâmpada da esperança e a dizer ao mundo – nós não somos terroristas, somos pacíficos, adoramos a educação”, diz o pai a propósito do discurso na ONU. A família Yousufzai é pashtun, muçulmana e paquistanesa, tal como os taliban. “Por causa da Malala, agora há um entendimento público de que algo está errado e algo tem de ser feito”, comentou, depois do discurso, o ex-primeiro-ministro britânico Gordon Brown, enviado especial da ONU para a Educação Global.

Antes do discurso de Malala, a 12 de Julho de 2013, a UNESCO e a ONG Save the Children publicaram um relatório onde se lia que 95% dos 28,5 milhões de crianças que não frequentam a escola primária vivem em países pobres ou de médio rendimento, 44% na África subsariana, 19% no Sul e Ocidente da Ásia e 14% em países árabes.

No seu Paquistão, houve críticas mas mais alegria por este Nobel. “Ela fez ouvir a sua voz contra a injustiça, numa sociedade onde as mulheres não podem expressar-se”, disse à AFP Ahmed Shah, antigo professor da premiada em Mingora. Para Marjan Bibi, onze anos, a Nobel é um exemplo: “Malala é um motivo de orgulho. Quando for mais crescida, quero escrever como ela e defender a educação das raparigas”.

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