António Costa aprovou projectos do Hospital da Luz antes de novo plano estar em vigor

As controversas alterações aprovadas em Julho ao plano de pormenor da zona do hospital, a pedido do Grupo Espírito Santo, viabilizaram obras já autorizadas. Nesta quarta-feira realizou-se a hasta pública do terreno dos bombeiros municipais, sem que tenha aparecido qualquer proposta.

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O novo parque, quase pronto, só passou a estar previsto no plano que vigora desde o mês passado Nuno Ferreira Santos

Essas alterações foram feitas a pedido da empresa do Grupo Espírito Santo (GES) proprietária daquele hospital, a Espírito Santo – Unidades de Saúde (ESUS), que as solicitou por escrito em 2009, quando a câmara já estava a preparar uma revisão do plano que não as contemplava.

A execução das obras previstas num dos projectos, que incluem uma pequena ampliação do hospital, ficou parcialmente condicionada à publicação no Diário da República das alterações ao Plano de Pormenor do Eixo Urbano Luz-Benfica (PPEULB), que ocorreu no dia 8 do mês passado.

O outro projecto, que preconiza a construção de um novo parque de estacionamento subterrâneo de apoio ao hospital, foi aprovado em Novembro, sem qualquer condição desse tipo. As obras começaram em Fevereiro, estando agora quase concluídas.

Questionada pelo PÚBLICO acerca dos motivos que a levaram a condicionar parte das obras interiores do hospital à entrada em vigor do novo plano, sem fazer o mesmo em relação à construção do parque, a câmara respondeu que isso se deveu ao facto de as primeiras, ao contrário da segunda, dependerem da alteração do plano.

Perante novas perguntas sobre o entendimento de que a possibilidade de construir o parque num lote criado para o efeito, o n.º 41, resulta das alterações ao plano agora publicadas  — as quais justificaram também o lançamento da hasta pública através da qual a ESUS adquiriu o direito de ali construir o parque —, a câmara respondeu assim: “A localização de um parque de estacionamento sob a via pública, não alterando o seu traçado e considerando que a sua área de construção não é contabilizada para efeito dos índices do plano, não constitui numa alteração do plano de pormenor. Nestes termos procedeu-se à aprovação do projecto de arquitectura do parque de estacionamento.”

Assim, segundo a autarquia, o parque foi aprovado, e em grande parte construído, antes da entrada em vigor do novo plano, porque a sua construção já era possível à luz do plano anterior.

Confrontado com esta tese, o anterior director-geral do Ordenamento do Território, Paulo Correia, não hesitou em a contrariar frontalmente. “Autorizar uma obra com essas características sem o plano de pormenor estar alterado constitui uma violação do plano que estava em vigor.”

Na opinião deste professor de Urbanismo do Instituto Superior Técnico, o parque só poderia ser licenciado se o plano em vigor definisse o local da sua implantação no subsolo, os acessos e a área de construção, coisa que não sucedia. Por isso mesmo, acrescentou, é que ele foi incluído na revisão do plano.

Leitura semelhante faz o ex-presidente da Comissão de Coordenação Regional de Lisboa e Vale do Tejo, Fonseca Ferreira, que foi um dos “pais” do Plano Director Municipal de Lisboa de 1994. Com base nos dados que lhe foram fornecidos pelo PÚBLICO, a sua primeira reacção foi esta: “Então, se o parque não tinha de estar no plano, por que é que o foram lá meter na revisão?” A questão “é muito clara”, sublinhou. “A construção do parque sob a via pública só seria possível se o regulamento do plano o dissesse.”

Do lado da câmara, a explicação para o novo plano ter integrado esta infra-estrutura é a seguinte: “No âmbito da revisão do plano, estando já constituído o direito de superfície e aprovado o projecto do parque de estacionamento, entendeu-se incluir esta realidade.”

Só que o direito de superfície que originou “esta realidade” foi constituído precisamente com o fundamento de que os documentos preparatórios da revisão do plano já a contemplavam.

A hasta pública e a revisão do plano
No início do ano passado, tendo em conta que estes documentos já preconizavam a construção de um parque de estacionamento atrás do Hospital da Luz, por baixo da Av. dos Condes de Carnide, a câmara aprovou o lançamento de uma hasta pública destinada a torná-lo possível. O objecto do leilão consistia na venda do direito de ali construir e explorar, em terrenos municipais, durante “99 anos improrrogáveis”, um parque com as características exactas daquele que os estudos para a alteração do PPEULB para ali previam: 596 lugares, quatro pisos subterrâneos e 15.480 m2 de área total de construção.

Embora a obra não estivesse prevista no plano então em vigor, a decisão foi tomada com base no facto de ela vir a ser consagrado na revisão em curso. A hasta pública, divulgada nos termos da lei, realizou-se em Março de 2013, sendo entregue apenas uma proposta subscrita pela ESUS. O valor oferecido ao município foi de 1.760.001 euros, um euro acima da base de licitação fixada.

Antes de entregar a proposta, que foi aceite, a ESUS pediu e obteve da câmara a garantia escrita, também ela divulgada publicamente, de que, em caso de aquisição, poderia construir “ligações viárias e pedonais de nível entre este parque e o parque actualmente existente no Hospital da Luz”. A condição posta pela autarquia foi a de que o novo parque teria de constituir uma “unidade funcional autónoma”, que “em qualquer altura” pudesse ser desligada do parque que já existia mesmo ao lado.

Feita a escritura de cedência do direito de superfície a 11 de Julho do mesmo ano, 2013, a ESUS submeteu, seis dias depois, dois projectos à câmara: Um, de “alteração interior e ampliação” do hospital, contemplava “a necessidade de adequar a circulação e os acessos pedonais entre os pisos de estacionamento e os pisos” da unidade de saúde, em função da construção do parque; o outro tinha a ver apenas com este último empreendimento.

O primeiro foi aprovado logo a 30 de Agosto por António Costa, com base num parecer de Jorge Catarino, director municipal de Gestão Urbanística, que propõe a separação das duas componentes do projecto — ligação entre o parque novo e o antigo, por um lado, e, por outro, obras interiores que implicam um acréscimo de 361 m2 na área construída do hospital, que “não se enquadra” no plano então em vigor.

O director municipal propunha essa separação, “caso se verifique que os prazos de entrada em vigor das alterações ao PPEULB não se ajustam aos prazos pretendidos para o presente processo”. Catarino não diz quais são os “prazos pretendidos”, nem quem os pretende, mas avança com a proposta de aprovação do projecto nos termos depois subscritos por António Costa: a primeira componente da obra é aprovada de imediato, enquanto a segunda fica condicionada à entrada em vigor do novo plano.

Logo no início da apreciação técnica do projecto, a Divisão de Projectos Estruturantes pedira já ao sector do planeamento que informasse sobre as alterações propostas para aquele local no âmbito da revisão do plano, “face à urgência da análise do processo”.

O segundo projecto, o do parque, teve um percurso mais complexo. Foi alvo de numerosas objecções nas informações dos serviços, mas foi aprovado por António Costa a 14 de Novembro, sem qualquer condição relacionada com a entrada em vigor do novo plano. As propostas de alteração do mesmo, no sentido de o parque passar a ser incluído nele, serviram, no entanto, de justificação para o lançamento da hasta pública.

O despacho de aprovação do presidente da câmara refere o facto de ter sido levantado “um conjunto de questões” pelos técnicos que apreciaram o projecto. A essas questões, escreve António Costa, foi, todavia, “dada integral resposta pelos dirigentes da direcção municipal em causa” [que rebateram as objecções suscitadas] e por um dos seus assessores jurídicos. “Assim”, conclui, “aprovo o projecto apresentado pela Espírito Santo – Unidades de Saúde e de Apoio à Terceira Idade SA [nos termos propostos pelo director municipal].”

A única ressalva colocada por Jorge Catarino, e aprovada por Costa, foi a de que “a emissão do alvará de construção ficará condicionada à adequação dos limites do direito de superfície” constantes da escritura efectuada aos limites que o projecto impõe e que implicam a cedência de uma área superior, devendo ser pago pela ESUS o respectivo acréscimo.

Passados três meses, em Fevereiro deste ano, a câmara deferiu um pedido de autorização para a realização de “obras antecipadas de escavação e contenção periférica” apresentado pela ESUS. Foi graças a essa autorização que as obras foram iniciadas e é graças a ela, segundo a câmara informou o PÚBLICO na passada quarta-feira, por escrito, que a estrutura do novo parque está neste momento concluída.

Para justificar o facto de todo miolo da obra ter sido feito com uma licença que previa apenas a escavação e a contenção periférica, sem ter sido emitido o alvará de construção, a câmara diz agora que “no âmbito do projecto autorizado está prevista a execução de partes da estrutura dos pisos por forma a conferir o necessário travamento estrutural das paredes periféricas”. Este procedimento, acrescenta, “é comum em praticamente todos os processo de licenciamento com execução de caves”.

Quanto à realização da escritura de acerto da área cedida, que condiciona a emissão do alvará definitivo, a autarquia responde que ela “será celebrada após a entrega dos desenhos definitivos”, que são feitos depois da conclusão da obra.

Projectos do Risco
Os projectos de ambas as intervenções aprovadas no ano passado são da responsabilidade do atelier Risco, propriedade da família de Manuel Salgado. Este arquitecto, que foi o autor do projecto do Hospital da Luz em 2001, desempenha as funções de vereador do Urbanismo na Câmara de Lisboa desde 2007 e assumiu, nessa altura, o compromisso público de que aquele atelier não submeteria qualquer projecto à apreciação da autarquia, enquanto ele ali exercesse funções.

Em resposta ao PÚBLICO, Salgado, que é primo direito do antigo patrão do BES, Ricardo Salgado, negou, contudo, haver qualquer contradição entre este compromisso e o facto de os dois projectos terem origem no Risco. Isto porque, afirmou, “o projecto do estacionamento, tal como o da alteração do hospital, constituem ampliações ao projecto inicial e não um novo projecto”.

Quatro anos antes de submeter à câmara estes dois projectos, a ESUS já lhe apresentara, em 2009, um pedido de informação prévia sobre a viabilidade de construir mais um piso no hospital, com um total de 4591 m2. Contrariamente aos dois projectos do ano passado, o estudo prévio de 2009 não é da autoria do Risco.

A avaliação dos técnicos camarários foi então taxativa: o acrescento de um piso contrariava o disposto no PPEULB, pelo que foi proposto o indeferimento do pedido. Reagindo a essa intenção, no exercício do seu direito de audiência prévia, a ESUS dirigiu uma exposição ao presidente da câmara, afirmando que, ao apresentar o pedido de ampliação, “estava plenamente consciente que, no presente contexto de regulamentação urbanística, o projecto só poderia ser aprovado com determinados pressupostos de verificação futura”.

Isto é, a empresa reconhecia a desconformidade da ampliação com as regras do plano, mas defendia a sua aprovação, condicionada à futura alteração daquelas regras. E na mesma exposição pediu que se desse “início ao procedimento de revisão do PPEUL (...) de modo a acautelar a superfície de pavimento necessária à aprovação do projecto preconizado [aumento de um piso]”.

Apesar disso, Costa indeferiu o pedido de informação prévia, em Dezembro de 2009, depois de Manuel Salgado se ter considerado impedido de se pronunciar sobre ele. Todavia, o autarca determinou, conforme proposto por Jorge Catarino, o encaminhamento da exposição da ESUS para o Departamento de Planeamento.

O pedido da empresa para que a revisão do plano fosse iniciada tem data de 17 de Outubro de 2009. O processo, porém, já estava a ser preparado há muito tempo. Para 25 de Novembro desse ano esteve, aliás, agendada a aprovação dos respectivos termos de referência — que são o enunciado dos objectivos visados pelo município com a revisão.

Nesse documento e na proposta, que acabou por não ser levada à reunião de câmara, referem-se com algum detalhe as mudanças a introduzir no plano. Mas não há lá qualquer alusão ao Hospital da Luz, nem ao novo parque de estacionamento que este já então pretendia construir.

Quatro meses depois, no fim de Março de 2010, a câmara aprova uma nova versão da proposta e dos termos de referência. No entanto, a ampliação do hospital e a criação do novo parque continuam a não figurar nesses documentos.

É então que tem início o procedimento formal da alteração do plano, que incluiu, já em Junho, a abertura de um período de três semanas, previsto na lei, “para formulação de sugestões por qualquer interessado”.

Conforme requerido pela ESUS em 2009, as suas pretensões de construir mais um piso — bem como as de erguer um novo parque de estacionamento subterrâneo num lote municipal e ainda a de ampliar o hospital para o espaço contíguo do quartel dos bombeiros municipais — acabam por ser integralmente transpostas para os documentos preparatórios da revisão do PPEULB.

A nova versão do plano acabou por só ser aprovada pela assembleia municipal no fim de Julho deste ano, no meio de uma enorme controvérsia. Por imposição da sua presidente, Helena Roseta, a câmara viu-se obrigada a suprimir do plano, antes da sua aprovação, as numerosas disposições que reservavam o terreno do quartel dos bombeiros para uma ampliação do Hospital da Luz.

Além de viabilizar as obras já aprovadas, o novo plano passou a contemplar expressamente a ampliação do hospital com mais um piso até 5000 m2, tal como a ESUS pedira em 2009.

O PÚBLICO perguntou à câmara se esta sucessão de factos, juntamente com outros ligados à própria construção do hospital, entre 2005 e 2007, significa que o planeamento daquela área da cidade tem sido feito pela câmara em função do grupo económico proprietário do hospital. “A CML não vai emitir posição perante as apreciações/opiniões descritas”, foi a resposta transmitida pelo gabinete de imprensa da autarquia.

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