“Vai à merda”, diria ela no fim. Assim queria Saramago
Quatro anos depois da morte de José Saramago chegou esta terça-feira às livrarias portuguesas o romance que o Nobel deixou inacabado Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas.
No dia 16 de Setembro de 2009, nas notas que ia escrevendo no seu computador, o Prémio Nobel da Literatura 1998 anotava: “Creio que poderemos vir a ter livro. O primeiro capítulo, refundido, não reescrito, saiu bem, apontando já algumas vias para a tal história ‘humana’. Os caracteres de Felícia e do marido aparecem bastante definidos. O livro terminará com um sonoro ‘Vai à merda’, proferido por ela. Um remate exemplar."
A obra começou por se chamar Belona (nome da deusa romana da guerra), passou a ser Belona S.A., depois Produtos Belona, S.A. e, por fim, chegou esta terça-feira às livrarias portuguesas com o título Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas, que é retirado da tragicomédia Exortação da Guerra de Gil Vicente. A Porto Editora, que edita a obra, não revela a tiragem desta primeira edição.
A primeira vez que no caderno de José Saramago, que morreu em 2010, aparece a referência a este livro de que deixou escritos e terminados os três capítulos iniciais é no dia 15 de Agosto de 2009. Aí o autor explicava que eram velhas perguntas suas - “porquê nunca houve uma greve numa fábrica de armamento” ou o "que se passa para que a classe operária tão capaz de lutas não tenha conseguido entrar nos portões duma fábrica de armas?". Foi essa "preocupação" que “deu pé a uma ideia complementar" que, precisamente, permitiu "o tratamento ficcional do tema”.
Explicava também que “o gancho para arrancar com a história” era uma bomba que não chegou a explodir na Guerra Civil de Espanha, a que Saramago juntou a referência que André Malraux faz no seu L’Espoir a operários de Milão fuzilados por terem sabotado obuses.
Na sessão de lançamento do seu último romance Caim, em 2009, José Saramago anunciou publicamente que estava a escrever um novo livro e explicou mais. Contou que esse morteiro que não rebentou na Guerra Civil de Espanha tinha um papel escrito em português onde se lia: "Esta bomba não rebentará". Saramago disse que poderia até ter sido um operário da Fábrica de Braço de Prata, em Lisboa, a ousar fazê-lo.
A personagem principal de Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas é Artur Paz Semedo, que trabalha há quase vinte anos nos serviços de facturação de armamento ligeiro e munições de uma histórica fábrica de armamento em Lisboa. É um homem a quem a estreia de um filme de guerra provoca “um alvoroço quase infantil” e que, se não trabalhasse numa fábrica de armamento, “o mais certo é que ainda hoje estivesse a viver, sem outras aspirações, com a sua pacifista felícia”. (pág.16)
Pilar del Río, na edição de Setembro da revista Blimunda da Fundação José Saramago, que pode ser descarregada gratuitamente em PDF no site da fundação e traz um dossier sobre este livro, define Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas como um romance sobre as armas e a responsabilidade cívica.
"As personagens que povoam o livro têm discursos e contradições elaboradas a partir do convencimento de que não ver é mais rentável do que ver – ou de que a indiferença é mais cómoda que a acção – e da necessidade do conhecimento e da intervenção para não ser cúmplice com o despropósito da violência. José Saramago escreveu um romance de personagens e situações que se confrontam com a realidade, tantas vezes mais obstinada que as pessoas, por isso não ver faz-se tão dramático.”, defende a presidente da Fundação e viúva do escritor.
O livro onde são publicadas as trinta páginas daquele que seria o próximo romance de José Saramago e onde já estão desenhados os dois protagonistas do livro - Artur Paz Semedo e a sua ex-mulher Felícia - traz na edição portuguesa (que segue a espanhola) ilustrações do Prémio Nobel da Literatura 1999 Günter Grass, notas do caderno de Saramago - onde o escritor ia dando conta do romance que queria escrever - e ainda dois textos, um do biógrafo espanhol de José Saramago, Fernando Gómez Aguilera, e outro do escritor e jornalista italiano Roberto Saviano.
“Na capa da edição portuguesa só aparece parte do título - a palavra ‘Alabardas’ - por questões gráficas e também por questões que têm a ver com a edição espanhola”, explicou o director editorial da Porto Editora, Manuel Alberto Valente na sessão de apresentação das novidades da rentrée.
“Pensou-se que as duas edições, portuguesa e espanhola, deveriam ser idênticas e são diferentes das outras edições que estão agora a ser publicadas como a italiana ou a brasileira”, afirmou Manuel Alberto Valente, lembrando que José Saramago estava profundamente empenhado com as duas realidades ibéricas e por isso pareceu-lhes que faria sentido as duas edições serem iguais. À edição brasileira, da Companhia das Letras, por exemplo, foi acrescentado um texto de Luiz Eduardo Soares, antropólogo e especialista em segurança pública.
O texto de Fernando Gómez Aguilera é ensaístico e explicativo (situa este livro na obra completa de Saramago) e o texto de Roberto Saviano é emocionante. Vai lembrando vários heróis - como Tim Lopes, o jornalista brasileiro que foi assassinado -, que à sua maneira foram também como a personagem deste livro: escolheram arriscar para se protegerem da "idiotice" de se viver uma vida plana.
Ao longo do texto é repetido: "Também eu conheci Artur Paz Semedo. Não trabalhava nos serviços de facturação de armamento ligeiro e munições Belona S. A., e não teve uma ex-mulher pacifista. Não vivia em Itália. Provavelmente nunca pegou numa pistola, imagine-se se alguma vez terá pensado em dar um tiro. Mas também eu conheci Artur Paz Semedo e o seu nome era.... Tim Lopes. A sua arma era a paixão. Uma ardente paixão." (pág. 114)
Para o dia 2 de Outubro está marcada a sessão de lançamento do livro em Lisboa. Durante a manhã haverá uma conferência de imprensa na Fábrica de Braço de Prata (o antigo estabelecimento fabril militar do Estado Português, desactivado na década de 1990) e ao final da tarde, às 18h30, será a apresentação mundial de Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas na Sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II, com a participação do professor António Sampaio da Nóvoa, do juiz Baltasar Garzón e do escritor Roberto Saviano. A sessão será moderada pela jornalista Anabela Mota Ribeiro e serão projectadas as ilustrações de Günter Grass que integram o livro.