“Se a contratação colectiva desaparece, a conflitualidade vai aumentar”

Luís Gonçalves da Silva, professor da Faculdade de Direito de Lisboa, critica as mudanças constantes na lei, sem reflexão e sem uma visão integrada.

Foto
Luís Gonçalves da Silva, professor da Faculdade de Direito de Lisboa Miguel Manso

Por que razão a contratação colectiva, um tema que parece tão opaco para a generalidade dos trabalhadores, tem sido alvo de várias intervenções do primeiro-ministro e foi motivo de uma manifestação da CGTP em Julho passado?
Antes de mais é o reconhecimento de um tema central na vida dos trabalhadores e das empresas. Está previsto na Constituição da República e em vários documentos da OIT, que a considera um direito humano básico. Há um segundo ponto interessante, a contratação colectiva, flagelada no Estado Novo, acabou por ser um instrumento muito importante de luta e de combate, acarinhado pela esquerda e pela CGTP no pós-25 de Abril. O facto de ser um tema transversal tem também um aspecto político, que é mostrar que se trata de um tema tanto da Direita como da Esquerda.

Sendo um direito humano básico, como é que se explica que os mais jovens e muitos trabalhadores o desconheçam e pareçam tão distantes dele?
Há vários factores que explicam esse distanciamento. Em primeiro lugar, verifica-se um declínio muito grande do associativismo. Num momento em que os trabalhadores vivem as suas maiores dificuldade vem à tona não a união, mas o individualismo. Além disso a emergência de novas actividades e de novas realidades laborais, como a contratação a termo, deixa os trabalhadores mais preocupados em sobreviver profissionalmente e menos disponíveis para intervir na vida sindical. Temos outro problema: a legislação tem sido cada vez complexa. Os trabalhadores têm dúvidas de como poderão exercer muitos dos seus direitos, tal é a complexidade e a forma errática como se legisla. E em relação à contratação colectiva tem-se legislado por empirismo. Se me perguntar se existe algum estudo no terreno sobre os problemas específicos ou os principais pontos de bloqueio, digo-lhe que não.

A forma errática de legislar é um problema deste Governo, que teve de cumprir um programa da troika, ou vem de trás?
Vem de trás, mas este Governo deu um contributo muito pouco positivo. Dou um exemplo: a troika obrigou-nos a mexer na legislação laboral, mas não nos obrigou a fazer alterações todos os anos. Faltou uma visão integrada. Mexemos nas regras da compensação e da contratação não sei quantas vezes. Temos um problema de estabilidade e complexidade gravíssimo. De que nos adianta ter um conjunto de direitos se depois não os podermos exercer? Temos uma legislação distante da realidade. Legislamos para empresas de grande dimensão, mas qual é o pequeno empresário com capacidade para cumprir tantas regras?

Quais são as vantagens dos instrumentos de regulamentação colectiva (IRCT) para as empresas e os trabalhadores?
Um autor francês fala na contratação colectiva como tendo as vantagens da roupa feita à medida. Há interesses do empregador e dos trabalhadores, eles sentam-se a uma mesa, dentro do espaço que o quadro legal lhes confere, e conseguem fazer um acordo, resolvendo os problemas da empresa e dos trabalhadores. É um instrumento que levou séculos a ser conquistado e é o único em que as partes estão, em regra, numa posição de igualdade, ao contrário do que acontece no contrato de trabalho. Isto é demonstrativo da sua importância.

Como é que no terreno se consegue que a roupa seja da medida dos patrões e sindicatos? Nomeadamente quando o ponto de partida das negociações são contratos colectivos com alguns anos e que têm garantias que muitas vezes as empresas não querem ou não podem manter?
Há uma falta de capacidade de as partes conhecerem os anseios uma da outra. O Código do Trabalho, por exemplo, permite a redução dos complementos salariais por IRCT. Imaginemos o caso de um empregador que demonstra que está em graves dificuldades financeiras, mas deixa a garantia de que quando a crise passar os trabalhadores também serão premiados e isso fica no acordo. Pede um sacrifício conjunto, mas garante que quando o problema for ultrapassado os trabalhadores vão crescer com a empresa. Este raciocínio raramente é feito. No momento do aperto, a empresa quer partilhar o sacrifício, no momento do crescimento já não. Falta também imaginação para resolver alguns bloqueios e problemas.

Se a contratação colectiva desaparecesse em Portugal, o que é que os trabalhadores e as empresas perderiam?
Perder-se-ia um instrumento que teve séculos de luta para ser conquistado, que permite a adopção de medidas concretas, passe a redundância, à medida do empregador e dos trabalhadores. O desaparecimento da contratação colectiva deixaria as empresas e os trabalhadores regulados em regra pela lei que não está pensada para as especificidades regionais e de cada sector de actividade. Era desbaratar um capital de séculos. A última vez que vi números estávamos a falar de 85 a 90 convenções novas por ano, não conheço nenhum país, daqueles com que normalmente nos comparamos, que tenha algo parecido. Não estamos na fase da agonia, já estamos na fase do funeral da contratação colectiva.

Em termos concretos há normas e práticas que a contratação colectiva induz e que se ela desaparecesse levaria a perdas importantes?
A contratação colectiva influenciou muito o legislador em matéria de férias ou de acidentes de trabalho. Hoje em dia com este frenesim legislativo, a lei acaba por ir absorvendo quase tudo da contratação colectiva. A contratação colectiva é o instrumento que permite a mediação entre a lei distante, geral e abstracta e os problemas concretos das empresas e dos trabalhadores. Por outro lado, a contratação colectiva é um importante contributo para a paz laboral é uma forma de prevenir problemas e de resolver os existentes. Se esse instrumento desaparece a conflitualidade vai aumentar.

Concorda com a suspensão das portarias de extensão que permitem alargar os efeitos dos contratos colectivos aos trabalhadores e empresas não filiados nas associações que os celebraram?
Durante décadas os governos emitiam portarias de extensão sem critérios e sem noção dos efeitos que isso tinha. No primeiro ano de mandato, este Governo entendeu suspender a publicação. Se eu concordo? Não. Não concordava com a prática anterior, mas também não se pode alterar de forma abrupta, sem fundamento e sem ter noção dos efeitos. A crítica que faço aos que publicavam sem terem noção dos efeitos é a mesma crítica que faço àqueles que pararam sem ter noção dos efeitos. Foi um erro. Posteriormente foi criado um mecanismo orientador [resolução do Conselho de Ministros de Outubro de 2012] com critérios.

Concorda com eles?
Que deve haver critérios objectivos, de representatividade, e uma reflexão profunda sobre os efeitos da emissão dessas portarias, concordo. Qual é o impacto de uma portaria de extensão em termos económicos? Quanto vai custar às empresas? O sector tem capacidade? As portarias de extensão devem ser excepcionais, não devem ser generalizadas, o que deve ser generalizado é a convenção colectiva.

O Governo aprovou em Julho novos prazos para acelerar a caducidade dos IRCT. Qual será a consequência das mudanças?
Mais uma vez optou-se por uma solução cujos efeitos não foram objecto de reflexão. A curto prazo vejo conflitualidade jurídica, dúvidas e problemas nas mesas das negociações. Perdemos mais uma oportunidade de mexer num regime de forma reflectida. Não se resolve um problema transversal mudando de 18 para seis meses a sobrevigência das convenções colectivas. A primeira pergunta a que devíamos responder é como vamos inverter a questões do associativismo. E falo em associações sindicais e patronais. O problema central é revitalizar um associativismo sindical pujante que, ao contrário do que se possa pensar, é muito importante para a democracia.

Qual deveria ser o papel das comissões de trabalhadores?
Não entendo que exista uma reserva constitucional de só as associações sindicais poderem celebrar convenções colectivas. Acho que pode haver convenções colectivas celebradas por comissões de trabalhadores, desde que seja assegurada a primazia das associações sindicais. São órgãos que deviam ter intervenções separadas e complementares e não de conflito.

A sua tese de doutoramento foi a propósito da eficácia da contratação colectiva. A que conclusão chegou?
Temos direitos consagrados em diversos instrumentos que são meramente formais. As alterações, a complexidade do regime, a tecnicidade e as soluções erráticas estão a matar a contratação colectiva. Hoje em dia só alguém que estuda quotidianamente este tema consegue deslindar aquilo que devia ser claríssimo para quem está na mesa das negociações. Da análise histórica que fiz, o legislador não teve, nem tem, uma visão macro. Isso vai ter um custo no médio e longo prazo que é a conflitualidade social. Neste momento estamos a falar da diminuição da contratação colectiva, que vai morrendo. Daqui a dois ou três anos, se a situação não se reverter, já estaremos a falar dos problemas concretos da sua ausência.

O que vai espoletar essa conflitualidade?
Passamos mais de um terço do nosso dia a trabalhar, onde deveríamos ter grande parte dos nossos problemas resolvidos. O facto de o poder político não os resolver e, em muitos casos os adensar, faz com que isso tenha custos económicos, de motivação, saúde. Por outro lado, arriscamos o bloqueio de funcionamento de muitas das empresas. A hotelaria, por exemplo, não consegue resolver muitos dos seus problemas se não tiver uma legislação pensada para o seu sector ou então resolve os problemas e não cumpre a lei. O incumprimento generalizado e o sentimento de injustiça são elementos com forte contributo para a conflitualidade social. Mas são silenciosos.

Sugerir correcção
Comentar