Os que aprenderam a transformar a necessidade em virtude
Qualquer classificação geracional uniformiza o diverso, mas ajuda a perceber o que é comum. Os que nasceram entre 1980 e 1994 já encontram precariedade conforme vão chegando ao mercado de trabalho. Este é o terceiro de cinco textos publicados ao domingo sobre as diferentes gerações
Entre 2001 e 2011, Portugal perdeu quase meio milhão de jovens. Efeito da redução da natalidade e da emigração, que tantos angaria na chamada geração Y, também conhecida por geração millenium, geração internet, geração ioiô, a dos nascidos entre 1980 e 1994 – ou 99, conforme os estudiosos.
Para muitos, o espaço natural não se esgota no rectângulo ibérico. Não existiam ou eram demasiado pequenos quando Portugal assinou o tratado de adesão à então Comunidade Económica Europeia, a 12 de Junho de 1985. E quantos terão memória da assinatura do Acordo Relativo à Supressão Gradual dos Controlos nas Fronteiras Comuns, sim, Schengen, a 25 de Junho de 1991?
Cresceram num dos melhores momentos económicos da história de Portugal. Na Expo 98, João Queirós tinha 16 anos, olhava em volta e pensava que “as pessoas eram felizes”. Ébrio de fundos comunitários, o país gastava à grande. De repente, numa noite chuvosa, despertou da euforia do crédito e da retórica do bom aluno europeu. Era 4 de Março de 2001. A correnteza barrenta do Douro matou 59 pessoas e deixou a nu a debilidade dos alicerces da prosperidade nacional.
João lembra-se tão bem da ponte de Entre-os-Rios cair, de António Guterres renunciar, do novo primeiro-ministro, Durão Barroso, usar a expressão "Portugal de tanga". Para ele, a existência tem um antes e um depois da queda da ponte. “A partir daí sucedem-se crises cada vez de maior magnitude, achamos cada vez menos que nos vamos safar, vamos perdendo esperança, ganhando cinismo, ficando mais individualistas.” A sequência parece-lhe definidora: “Toda a minha vida adulta é de crise.”
O conceito de geração tem fortes limitações. Pessoas da mesma idade têm percepções diferentes consoante são do género masculino ou feminino, heterossexuais ou homossexuais, da cidade ou do campo, ricos ou pobres, pouco ou muito escolarizados, de esquerda ou de direita. E a juventude nunca foi tão diversa. Os sociólogos nunca tiveram tanta dificuldade em agregar modos de vida. Mantém-se o mainstream, mas multiplicaram-se as combinações possíveis.
Que terá então João Queirós, prestes a defender doutoramento na Universidade do Porto, em comum com Tiago Pinto, residente num dos bairros que ele estuda, com o 6ª ano de escolaridade, e a estacionar carros num restaurante de luxo?
Quando a ponte caiu, o sociólogo José Machado Pais já falava em “encruzilhadas labirínticas”, “trajectórias ioiô”, jovens presos a transitoriedades feitas de estágios, cursos, subempregos, aprendizagens, desempregos, retornos à escola. Especialista em juventude, foi vendo isso agravar-se, sobretudo a partir de 2011, ano em que em Portugal aterraram os representantes da troika – a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional.
A precariedade entranhou-se. Não é só a taxa de desemprego entre menores de 30 anos que ultrapassa os 26%, quase o dobro da global. É o salário que está 23% abaixo do praticado entre trabalhadores por contra de outrem. Presos às transitoriedades, os jovens e os jovens adultos ficam em casa dos pais cada vez até mais tarde, casam-se cada vez mais tarde, têm filhos cada vez mais tarde.
João conta 32 anos e é professor convidado na Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto. Trabalha há 12 anos na sua área sem nunca ter tido um vínculo sólido. Começou como assistente de investigação. Desde então, passou recibos verdes, recebeu bolsas, assinou contratos a termo. Tinha 28 anos quando deixou a casa da mãe e foi morar com a namorada numa casa arrendada. Planeia o que quer investigar ou onde quer morar, mas não vai muito mais longe. “Não sei o que vou fazer profissionalmente para lá de Janeiro de 2015. Posso arriscar até Junho, depois não sei.”
Tiago tem 19 anos e começou a trabalhar há quatro. Já esteve muitas vezes parado. Já foi ajudante de electricista, empregado de café, telefonista, carregador, trolha, rufia. Agora é vigilante. “Estou a fazer o Verão, depois logo se vê, não desconto nem nada.” Vive com a namorada em casa da família dela e dentro de dias há-de celebrar o primeiro ano de vida da primeira filha de ambos.
Não pensou que não tinha condições para ser pai. Também os pais dele, um estafeta e uma empregada doméstica, nunca tiveram grandes condições. Engravidou a namorada por descuido? Sim, mas escolheram ter a criança. “Acontece a muita gente”, diz Tiago. “Dos meus colegas, à vontade uma dúzia já é pai ou mãe. Eu até já disse: ‘Olha, parece que está na altura de toda a gente ter filhos!’” Ter filhos, para ele, faz parte da vida. “Fiquei com mais vontade de trabalhar.”
Ainda é elevado o abandono escolar precoce. No ano passado, era de 14,1 a percentagem de jovens entre os 15 e os 24 anos que não estudavam nem trabalhavam. Esta é, porém, a geração mais escolarizada de sempre – 29,2% dos que têm entre 26 e 29 anos e 28,6% dos que têm entre 30 e 34 possui curso superior.
Muitos pais esforçaram-se para dar aos filhos o que nunca tiveram. Tentavam prever as suas necessidades, protegê-los de todos os males, elogiar as suas proezas, recompensar os seus esforços, fazê-los acreditar que podiam ser tudo o que quisessem. Agora, esperam encontrar o mesmo reconhecimento e recompensa no mercado de trabalho. E sentem, diz José Machado Pais, “uma frustração relativa”. Há, salienta, um saldo negativo entre o que têm e que pensam que deveriam ter. E a comparação com os outros não ajuda. Nas redes sociais, tendência é para cada um projectar felicidade, partilhando fotografias de paixão tórrida, férias extraordinárias, refeições deliciosas.
A frustração pode gerar revolta. Raquel Caldevilla já a sentiu. Licenciada em Psicologia e pós-graduada em Terapias Expressivas, só conseguiu um vínculo estável na clínica da família. O pai, dentista, queria ajudá-la a abrir caminho, mas a clientela não justificava. Quando Raquel se casou saiu da clínica e entrou no fadário do envio de currículos. “Desmoralizei imenso. Não havia espaço para mim. Fartei-me de ouvir não. A pessoa até se põe em causa. Não podia ser boa, se toda a gente me dizia não. Fazia o meu trabalho em regime de voluntariado e as pessoas adoravam. Pensei: se não há gente que me pague, tenho de desistir.”
Naquela altura, descobriu que sofria de artrite psoriática, uma doença crónica inflamatória das articulações. Tem dias maus. Tão maus que não consegue sair de casa. “Aguento. Odeio a palavra aguentar!” Não mostra isso. “Sou a pessoa mais alegre numa festa, a que dá as gargalhadas mais altas.” A doença sacudiu-a. “Fez-me pensar nas coisas de forma mais directa; em viver todos os dias não como se fossem os últimos mas como se fossem os primeiros, no sentido de saborear cada instante.” Já criara um blogue, começou a escrever contos. Recorreu ao crowdfunding para lançar o primeiro livro, o Doze. Está a trabalhar no segundo. “Acreditar que vou ter um emprego estável? Acreditar que vou ter reforma? Reforma de quê? Tudo isso é muito difícil…”
Se a geração que fez Abril chegou a acreditar que tinha o futuro nas mãos e a que se lhe seguiu encara o futuro com apreensão, esta questiona-se sobre a própria existência do futuro: tudo aparenta ser transitório, incerto, imprevisível. “O solo vital, onde os sonhos de realização são plantados, ameaça tornar-se estéril”, volta Machado Pais. Alguns vão conseguindo contornar as adversidades – com iniciativa e talento; com cunhas; à custa de mesadas; com actividades mais ou menos ilícitas. Uns jogam no euromilhões; outros não saem da cepa torta. Outros fazem as malas.
São as mais recentes contas do Instituto Nacional de Estatística: em 1960, os jovens entre os 15 e os 29 anos representavam 23,9% da população residente; esse valor manteve-se mais ou menos estável até 2001; desde então foi caindo até alcançar 17,1% de 2011. Já estará pior – só em 2012 emigraram 53 mil –, mas não é tão dramático como parece, assegura o sociólogo João Peixoto. Não é uma perda de população “definitiva”. Muitos partem para situações precárias e reemigram ou regressam ao ponto de partida. Pouco ou nada, nesta geração, é para sempre.
Foi precisamente em 2011 que Ana Magalhães acabou o curso de Serviço Social na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. O pai perguntou-lhe se queria mudar-se para a Suíça, onde trabalha como lixeiro. Ela não quis. “Ia sentir-me um bocadinho mal por a minha mãe e mesmo o Estado terem apostado em mim tantos anos e eu ir embora agora que já posso contribuir...”
A irmã, pouco mais nova, emigrou. Faz limpezas e toma conta de crianças em Zurique. Ana, a única licenciada da família materna, uma de duas na família paterna, trabalha numa loja de Vila Real. “Não me recusei a trabalhar fora da minha área, como algumas colegas. Trabalho com orgulho.” Não é que se imagine a fazer aquilo a vida toda. É que não quer partir. Não quer virar as costas à mãe, analfabeta, a laborar à jorna na agricultura. “Tendo trabalho, prefiro ficar, mesmo que ganhe menos.” O namorado é engenheiro electrotécnico e trabalha na sua área. “Vamos resistindo.”
João Queirós rejeita o discurso de resistência de quem fica, mas também o de “glamourização” de quem parte e que se propaga pelas redes sociais. Parece-lhe que há “muita necessidade feita virtude”. “Todos nós nos sentimos melhor com os nossos, em ‘casa’, no nosso espaço de reconhecimento e de expressividade. Claro que podemos criar esse espaço fora, mas é um investimento duro.”
A “glamourização” da emigração é alimentada pela livre circulação, mas também pela ideia de que os portugueses têm gosto pela aventura, pela descoberta. O historiador Victor Pereira vê aí um resquício de luso-tropicalismo; João Queirós uma certa “expressão da “naturalização da ‘imprevisibilidade’, da ‘precariedade’, do ‘risco’”.
Ao estudar a emigração qualificada, o sociólogo Teixeira Lopes reparou que para alguns jovens da classe média – familiarizados com a internet, com as companhias aéreas de baixo custo, com os intercâmbios – “viajar é respirar, emigrar é só alongar a viagem”. Parece-lhe que essa postura, que alivia a taxa de desemprego e as tensões sociais, se conjuga com o discurso político do “mexe-te, agarra as oportunidades”, “és um totó se não emigras”, a “Europa é cosmopolita”.
Muitos nem se vêem como emigrantes, mas como “elites circulantes”. Há quem só use a palavra “mobilidade” para falar nos que trabalham noutro país da União Europeia. Há quem aplique a expressão “expatriados” aos que acompanham a internacionalização das empresas. E quem chame “exilados” aos que se viram forçados a partir. “A condição de emigrante era para os outros (para os pobres, para os provincianos), não para esta geração de classe média que pensava nunca ter de emigrar”, comenta Victor Pereira. Se saem, não querem ser confundidos com o emigrante tradicional, que tendem a imaginar a carregar no acelerador e a ouvir música pimba.
Pôr os holofotes nos emigrantes qualificados pode servir para alimentar a narrativa do Portugal moderno, com que a geração Y cresceu. O risco disso será a ocultação dos não qualificados que partem, a maioria, e a desvalorização dos que ficam, como aconteceu noutras épocas, previne o historiador.
À economia dá agora jeito ter identidades mais flexíveis, individualistas, feitas à medida, sublinha Teixeira Lopes. Embebidos em precariedade, muitos julgam-se mais livres do que os pais e acreditam que são felizes se fizerem o que gostam, mesmo que ganhem pouco. João Queirós já foi mais lírico, mas admite que o “desenrascanço está sempre presente”: “Somos empreendedores, biscateiros, desenrascados. Lá está. A minha geração aprendeu a transformar a necessidade em virtude.” Sobra criatividade.