Se as consultas demorassem só 15 minutos, não havia falta de médicos de família

Tribunal de Contas recomenda ao Ministério da Saúde que liberte médicos dos centros de saúde de tarefas administrativas.E critica exclusão de utentes das listas de médicos de família “por razões administrativas”.

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Muitos dos cidadãos continuam sem ter médico assistente nos centros de saúde Rui Gaudêncio

Desta forma resolvia-se o problema dos utentes sem médico assistente nos centros de saúde em Portugal. Como? Mais 10,7 milhões de consultas representariam, calculam os auditores do Tribunal de Contas,  um aumento de 37% na actividade assistencial. Tendo em conta a média nacional de 4,2 consultas por utente em 2012, “caso tivesse sido cumprida essa meta de produtividade”,  teria “eventualmente  sido possível” garantir o acesso a cerca de 2,5 milhões de utentes utilizadores adicionais, número superior ao de utentes sem médicos de família, explicam.

A “hipótese de trabalho” está plasmada na auditoria ao desempenho das unidades funcionais dos cuidados de saúde primários que esta quarta-feira foi divulgada pelo Tribunal de Contas. Os auditores que assinam o documento  notam, porém, que para isto ser viável era  necessário que as horas referidas ficassem “efectivamente disponíveis” para o atendimento dos utentes. “Se, por um lado, a limitação do número de utentes atribuídos a cada médico de família pode, eventualmente, ter por objectivo a manutenção de uma qualidade mínima aceitável na relação dos utentes com o seu médico, por outro lado gera uma desigualdade acentuada entre cidadãos que deveriam ter os mesmos direitos no acesso aos cuidados de saúde”,argumentam.

Lembrando que os médicos de família estão sobrecarregados com trabalho administrativo (um estudo recente conclui que gastam 33,4% do seu tempo em actividades não relacionadas com o contacto directo com os utentes), os auditores do TC sublinham mesmo, nas recomendações que fazem ao Ministério da Saúde, que é preciso avançar com  “iniciativas para maximizar as horas consagradas à consulta por aligeiramento da carga administrativa e não assistencial dos médicos”.

Sugerem, ainda, que se reconsidere “o papel dos diferentes técnicos de saúde, permitindo a libertação de horas” para os médicos poderem realizar mais consultas. Por exemplo, pondo os enfermeiros a desempenhar algumas tarefas que hoje estão atribuídas aos clínicos.

Nesta auditoria, que visou avaliar a organização e desempenho das unidades funcionais prestadoras de cuidados primários, no âmbito da reforma que arrancou em 2006, o TC recomenda também que se pondere a criação de Unidades de Saúde Familiar (USF, profissionais que se trabalham em equipas constituídas voluntariamente) do modelo C. Este modelo não existe, mas está definido que serão unidades a constituir por privados, ou pelo sector social e cooperativo, para colmatar as insuficiências do sistema público.

O que actualmente existe em Portugal é uma espécie de manta de retalhos, com pessoas inscritas em USF modelo A (fase inicial das equipas, com regime retributivo normal) ou modelo B (nestas os profissionais têm um regime retributivo especial, que inclui suplementos e retribuição pelo desempenho), ou em Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (os centros de saúde tradicionais). E os médicos que trabalham nas USF modelo B, frisam, durante os anos de 2011 e 2012 ganhavam em média mais 80% (cerca de 2750 euros) por mês do que os seus colegas nas USF modelo A  e as outras unidades. Uma desigualdade que pode gerar “desmotivação”, avisam.

Mais 24% de utentes sem médico
Para sustentar as suas recomendações, os auditores do TC recordam que o objectivo de atribuir um médico de família a a cada utente inscrito “nunca foi atingido” e  frisam que, em 2012, havia mais de 1,6 milhões de utentes sem clínico assistente nos centros de saúde. A existência de utentes sem médico de traduz uma falta de “igualdade dos cidadãos no acesso aos cuidados de saúde”, alegam.

Os resultados alcançados com a criação de USF, apesar de terem permitido dar médico de família a quase 570 mil cidadãos (até 2012), “foram insuficientes para compensar" a diminuição global do número de clínicos verificada neste período. Resultado? Entre 2006, ano em que arrancou a reforma dos cuidados de saúde primários, e até 2011, o número de pessoas inscritas sem médico de família cresceu 24%, calculam.

Defendem também que não se deve excluir utentes das listas de médicos de família “por razões administrativas”, simplesmente por não haver contactos com os centros de saúde durante três anos, o que tem sido feito para fazer a “limpeza” de ficheiros a nível nacional. Recomenda assim que o despacho do secretário de Estado adjunto da Saúde que possibilitou esta "limpeza" seja revisto, para garantir que as pessoas não possam ser "eliminadas" das listas dos médicos de família.

Em Março deste ano, quando o relatório preliminar desta auditoria foi divulgado, algumas das conclusões foram de imediato muito criticadas, porque os auditores consideravam que havia falta de coerência e transparência na atribuição de compensações aos médicos das USF do modelo B e levantava dúvidas sobre 5,2 milhões de euros em prémios de desempenho a enfermeiros e assistentes administrativos.  A associação das USF considerou que o documento continha insuficiências de informação, de análise e, de interpretação e conclusões.  O TC apressou-se, então, a emitir um esclarecimento em que recordava que o documento ainda teria de ser sujeito a contraditório.

O Ministério da Saúde (MS) garante que "tem havido um esforço para resolver o problema dos utentes sem médico de família, não por uma solução matemática, até porque não há nenhuma bitola que estabaleça minutos por consulta". O MS tem "ido por outro caminho", nomeadamente "aumentando a lista de utentes de cada médico de família".

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