Batman, o nosso monstro há 75 anos
"Trabalhou" com Tim Burton, Neil Gaiman, Frank Miller, Christopher Nolan ou Alan Moore e é o super-herói mais filmado e mais analisado no divã. Esta quarta-feira é o Dia Batman.
Muitas encarnações, séries e linhas narrativas depois, Batman é celebrado nesta quarta-feira um pouco por todo o mundo, com várias bibliotecas, livrarias e lojas de comics a fazer a festa com uma reedição especial (e gratuita) do número 27 da Detective Comics de 30 de Março de 1939 – o livro em que aparece pela primeira vez o homem-morcego. Em Portugal, será a BD Mania, no Chiado lisboeta, a receber por estes dias um número limitado destes originais – entre 50 e cem, estima um dos proprietários, Pedro Silva, que explica que definirá um critério para a sua distribuição – além de exemplares das edições deste mês dos comics regulares da “família Batman” com capas alternativas, que serão ainda em menor número.
Num ano em que há uma exposição-Batman nos estúdios Warner em Los Angeles, em que a série de TV dos anos 1960 vai estrear-se no home video, que o Batman de Tim Burton será reeditado no Outono e em que há novo videojogo, o alter ego nocturno do milionário Bruce Wayne é constantemente “um dos mais procurados” e “neste momento é o best-seller da loja”, atesta Vasco Lopes, livreiro da BD Mania que cresceu com Batman à cabeceira. Há mais de 15 anos a comercializar e distribuir banda-desenhada e material associado, a BD Mania tem no seu perfil de Facebook um Santo António com máscara negra na cara e um menino vestido de Robin ao colo. Há o deputado-Batman, o manifestante vestido de Batman para lutar pelos direitos dos pais, toda uma cultura popular embebida em morcegos e ideias de justiça ou falta dela. “Batman é um modo de vida”, resume Jim Lee, ilustrador e editor na empresa DC Comics.
Relógio parado em 1986
Nas últimas semanas, duas figuras centrais do universo Marvel (o outro gigante da edição de comics mundial) mudaram. Thor vai ser uma mulher, o Capitão América vai ser um negro. Há cinco anos, era a Batwoman que vivia a sua homossexualidade, há dois a Marvel celebrou o seu primeiro casamento gay, o Super-Homem já morreu inúmeras vezes e Bruce Wayne também…“Estas inflexões narrativas são um golpe duplo: tira-se o fôlego aos fãs com a mudança drástica e reconquistam-se os seus corações um ano depois devolvendo tudo à ‘normalidade’”, contextualiza João Lemos, ilustrador e autor de BD português que já colaborou com a Marvel. Apesar de, lembra, Batman também já ter tido outras vidas nos chamados universos alternativos da DC (do Japão medieval a uma Gotham vitoriana, exemplifica), o ilustrador considera: “À noite, todas as silhuetas icónicas são pardas mas, a longo prazo, a história requer elementos como a duplicidade de um semidiurno Bruce Wayne para se sustentar”. Ou seja, a essência do homem-morcego será menos permeável a estes mecanismos de diversificação e mercado das editoras. Mas uma dessas séries de histórias independentes mudou o morcego para sempre.
Recuemos no tempo. Batman nasceu em 1939 pelas mãos do ilustrador Bob Kane e do argumentista Bill Finger como uma encomenda da DC para que se juntasse mais um super-herói ao rol encabeçado naquela casa pelo muito bem-sucedido Super-Homem. No ano seguinte saía a primeira revista Batman, já com outras duas personagens que ajudaram a definir, como imagens no espelho, o cavaleiro das trevas – Joker e Catwoman. A primeira era de Batman foi escura, tortuosa. Nos anos 1950 e 60 tornou-se sorridente, quase paternal, além de irreprimivelmente camp na série televisiva protagonizada por Adam West. Depois veio a loucura do vigilante em busca de vingança e do storytelling mais rico e inovador, as tensões dos anos 1970 plasmadas em quadradinhos. E o relógio pára em 1986.
The Dark Knight Returns foi Frank Miller (Sin City, 300) a reescrever e redesenhar com Klaus Janson a história de Batman numa minissérie em que o herói estava mais velho (55 anos), Gotham cheia de crime e o Estado e Super-Homem em modo de perseguição ao homem-morcego saído da reforma. A Guerra Fria e o fosso da luta de classes era, tal como para outra importante série que despontava nesse ano na DC – a novela gráfica Os Guardiões, de Alan Moore e Dave Gibbons – o pano de fundo perfeito dentro e fora dos quadradinhos para uma visão densa da sociedade. Muitas outras histórias e momentos ajudaram a definir o morcego, mas “o que o Frank Miller fez é agora inseparável do ADN da personagem, que se tornou assim o contraponto lunar do solar Super-Homem”, postula João Lemos. E Vasco Lopes, rodeado de comics, heróis e vilões, não hesita em definir esta visão em quatro livros como a sua preferida. Leu-a aos 13 anos – “foi talvez a história mais adulta que li na altura” – e prendeu-o o facto de ser “um Batman mais velho, muito Clint Eastwood, que muda a nossa percepção do que é hoje” a personagem. “Batman torna-se mais ‘fascista’ com essa história, mais cruel, mais sádico.”
Sendo teoricamente defensores do “bem”, de facto há traços conservadores e até reaccionários neste tipo de comics e narrativas – o Estado, as autoridades, estão corruptos, podres, perderam a bússola moral. Batman, como outros super-heróis, é um ícone que pode representar o que a sociedade lhe fez, nos fez, e resvalar para o que os filósofos norte-americanos John Shelton Lawrence e Robert Jewett consideram ser o défice democrático dos heróis americanos. Citam o bélico Rambo mas também o Super-Homem e Batman como exemplos. “As figuras super-heróicas nunca são eleitas para cargos públicos, nunca se submetem às restrições da lei ou da constituição e nunca contribuem para a discussão que é a matéria da democracia. O comportamento do herói-macho é tipicamente fascista, apesar de todas as alegações de resgate da democracia”, lê-se em The Myth of the American Superhero.
E tudo isto, da identificação à esperança num herói individualista, está na receita do sucesso de um herói criado antes do microchip e que agora convive com drones, nascido no início do domínio nazi e que passou a última década sob o espectro do terrorismo. O seu apelo “é o facto de não ser super, de ter falhas”, diz o livreiro, “podemos identificar-nos com ele quando somos miúdos. Por ser tão ‘normal’”. “O estatuto de playboy de Tony Stark [o milionário sob a armadura do Homem de Ferro] ou a tensão de uma vida dupla de Clark Kent ou Peter Parker [as identidades “civis” do Super-Homem e do Homem-Aranha] competem de igual para igual com Bruce Wayne”, opina por seu turno João Lemos, “contudo, o Batman tem o apelo de uma figura que é sombria e age pelo bem, um guilty pleasure que se vende como o melhor dos dois mundos. É como ser o Conde Drácula a noite toda e de manhã merecer receber a chave da cidade das mãos do mayor”.
Os quatro livros de The Dark Knight Returns – que com The Killing Joke, de Alan Moore, está entre as mais elogiadas séries de sempre dos comics – foram também uma das bases para o primeiro Batman (1989) de Tim Burton no cinema – um fenómeno em si porque, como escreveu o editor Peter Bart na Variety juntando-se a vários historiadores de cinema na opinião de que este filme marca o nascimento do conceito do franchise dos filmes de super-heróis que na última década dominou o mercado. E Batman é a personagem super-heróica mais bem sucedida em Hollywood, com sete filmes só seus que renderam 3,7 mil milhões de dólares – entre as sequelas menos felizes pós-Burton e a trilogia de Christopher Nolan que deu talvez ao mundo um agente do caos definitivo com Heath Ledger na pele de Joker. Na calha para o Verão de 2016 está, claro, mais um bat-filme. Zack Snyder (realizador de Os Guardiões, 300 e de Homem-de-Aço) foi buscar Ben Affleck para vestir o novo bat-suit em Batman v Superman: Dawn of Justice e a Internet e o Twitter quase se estragaram com a reacção dos fãs. Batman ainda mexe, ainda e sempre.
Sem heróis e com bullies
É que “o mundo não tem heróis”, “ninguém que inspire verdadeiramente a esperança”, considera Danny DeVito, que continua a ser o vilão Penguin cinematográfico desde Batman Returns (1992). Batman representa “a fé” no ser humano, disse o actor na apresentação da exposição em Los Angeles. A humanidade do morcego é a chave porque “Batman é o super-herói sem superpoderes, é a sua personalidade que o define”, ajuda Travis Langley, psicólogo norte-americano e autor de Batman and Psychology: A Dark and Stormy Knight. É ele que assinala na revista Psychology Today que os seus colegas se dedicam mais ao vigilante de Gotham do que a qualquer outro super-ser dos livros de BD – e é também o único a ver um hospital psiquiátrico, o Arkham Asylum, dedicar-se a albergar as suas némesis.
Bob Kane contou que decidiu com Bill Finger que a história de origem do homem-morcego só podia ser a do assalto que cria um órfão – “percebemos que nada há de mais traumático do que ter os pais assassinados perante os nossos olhos”, lê-se no livro da DC Batman: The complete history (1999). “A orfandade é um trunfo poderoso – tal como os fãs de Harry Potter podem experienciar, o órfão, por um lado, é incrivelmente livre na sua relação com o mundo (o que é valioso num mundo de fantasia) e, por outro, tem o espírito dos pais e da respectiva perda omnipresente no seu percurso (o que é terrivelmente romântico)”, lembra João Lemos.
Este é um herói romântico ou gótico que surge nas trevas de uma cidade podre e na esteira do sucesso do Hércules aos quadradinhos – o Super-Homem que ganha poder com o nosso sol em contraste com “lendas mortais como Robin Hood e heróis pulp como Zorro ou o Sombra, homens extraordinários mas, ainda assim, homens”, defende Langley. Mortais. “Por que é que as crianças não temem este herói vestido como um monstro?”, pergunta-se o psicólogo. “Porque é o monstro deles. O nosso.” É o rapazinho que cresce e se fortalece e que quer virar o feitiço contra o feiticeiro. “Ele é a parte de nós que quer assustar e fazer desaparecer os bullies da vida.”