“Queremos criar Steve Jobs coreanos”

A caminho de Díli, o Presidente Cavaco Silva visita este domingo a Coreia do Sul. Vai recebê-lo a nova Presidente Park, uma mulher que acredita que é a economia criativa que vai dar a felicidade ao seu povo.

Foto
A Presidente da Coreia do Sul, Park Geun-hye REUTERS/Kim Hong-J

Por fora, nada no edifício faz antecipar as mudanças que se operam no interior. Recém-criado, o ministério teve um parto difícil. Formalmente chama-se Ministério da Ciência, Informação, Comunicação e Tecnologia, e Planeamento Futuro, assim mesmo, sem medo de ser comprido. Criticaram-lhe o nome (longo e retórico), a ambição (“super-ministério”) e o facto de a tradução de coreano para inglês resultar numa imagem anti-darwinista: Ministério da Ciência e Criação Futura.

Aqui, "criação" significa criatividade e esse é o plano da nova Presidente Park Geun-hye: inventar uma nova Coreia do Sul e, pelo caminho, fazer o "Segundo Milagre do Rio Han".

A receita foi anunciada na tomada de posse, em Fevereiro de 2013. Num típico discurso político, a nova Presidente prometeu uma “nova era de felicidade”, um “novo futuro”, uma “nova era de esperança”, um “novo capítulo do Milagre do Rio Han” e até um “novo modelo de capitalismo”. Tudo clássicos coreanos, em particular a atenção à felicidade, palavra que Park repetiu exactamente 20 vezes e que ocupou um quarto da sua intervenção.

Sabemos da teoria que a felicidade e a economia andam de mãos dadas. Na Coreia do Sul os números confirmam os manuais. Em 1961, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita era de 80 dólares anuais, em 1980 era ainda de 2300 dólares e hoje é de 32 mil. Do mesmo modo, o país subiu 40 posições nos últimos seis anos no índice de felicidade criado por um think-tank britânico como alternativa ao Índice de Desenvolvimento Humano e ao PIB, moedas-francas para medir a qualidade de vida dos povos.

É deste milagre que os coreanos falam. A diferença do discurso de Park esteve na proposta que lançou. A sua "nova Coreia" vai nascer a partir de uma coisa que só existe dentro das nossas cabeças: a criatividade.

Um "pensamento diferente"
“A economia coreana deu um enorme salto a seguir à Guerra da Coreia [1950-53], quando o país ficou em cinzas. Mas hoje está estagnada. Por isso temos de mudar o paradigma”, explica num inglês pausado Park Jinyoung, directora-adjunta da Economia Criativa, o pilar central do novo Ministério do Futuro.

Park – toda a Coreia parece ter apenas dois apelidos, Kim e Park – vai folheando a brochura que a Presidente distribuiu nas viagens oficiais aos Estados Unidos, à Suíça e à Índia. “Antes, tínhamos a economia industrial: trabalho, dinheiro, produtos. A seguir, mudámos para a economia do conhecimento: tecnologia, hi-tech e pessoas inteligentes. Agora, temos de mudar para a economia criativa. O que é isso? É ter ideias.”

A tradutora não pára de tirar notas e entra na conversa sempre que Park, a directora, não encontra uma palavra para explicar o pensamento de Park, a Presidente. “Às vezes, as ideias novas vêm das pessoas particularmente inteligentes, de um investigador, de um professor, de um académico. Mas uma ideia nova pode vir de qualquer pessoa. De uma criança ou de um velho... Qualquer pessoa pode ter uma ideia criativa. Esse é o pensamento diferente que estamos a ter.”

“Economia criativa” já é um lugar-comum nos discursos e programas oficiais, da ONU às mais pequenas cidades de província, dos museus, empresas e universidades até à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Se nasceu com John Howkins, teórico da economia criativa, com Richard Florida, autor do best-seller tornado clássico The Rise of the Creative Class [A Ascenção da Classe Criativa], ou se tudo vai parar a Joseph Nye, que em 1990 cunhou a expressão “soft power” no seu livro Bound to Lead [Obrigados a liderar, sobre os Estados Unidos], é difícil dizer. Os coreanos agarraram nela e decidiram pô-la no centro da acção governativa. "É provavelmente o primeiro país do mundo a ter uma estratégia para a economia criativa tão deliberada, tão centralizada e com uma formulação tão explícita", diz o professor de Teoria das Organizações na Universidade Nova de Lisboa Miguel Pina e Cunha, estudioso da Ásia e acabado de regressar do Japão.

Ser "great" não chega
E como se aplica este "pensamento diferente" na prática? Park Jinyoung passa a palavra à colega Han Sohee, também directora-adjunta da Economia Criativa, mas que não fala inglês: “A Coreia tem sido um grande seguidor da criatividade. Nós não criamos novas tecnologias: nós seguimos os outros países desenvolvidos. Empresas como a Samsung ou a LG limitam-se a seguir outras empresas, em vez de criarem a sua própria tecnologia. Agora, o Governo da Coreia acredita que é importante termos as nossas próprias ideias, ideias originais.”

Com um sorriso cúmplice, as duas sabem que um estrangeiro não está à espera que a mensagem oficial do Governo inclua uma crítica aberta ao império Samsung, o maior fabricante de smartphones do mundo, a oitava maior empresa do planeta e a grande impulsionadora do “Milagre do Rio Han”.

“A Samsung é the greatest, the best”, diz Park, como se estivesse a citar um anúncio publicitário. “Mas isso não chega. A Samsung tem os telemóveis, o Galaxy, os portáteis, a tecnologia de semi-condutores. Isso é óptimo! Mas nós queremos mais, queremos produtos mais inovadores.” Park faz uma pausa e remata: “Pelo menos isso é o que nós gostávamos que acontecesse – no futuro. É essa a nossa esperança.”

E segue-se a lista que, no Ministério do Futuro, inspira os 30 funcionários do Departamento de Economia Criativa: o iPhone, o Facebook, o Twitter, as mensagens telefónicas. “Antes de estes produtos aparecerem perante os nossos olhos, a maioria das pessoas não conseguia sequer imaginar que essas coisas fossem possíveis. É esse tipo de coisas que queremos. A Samsung é uma boa empresa, boa mesmo. A LG também. Mas nós pedimos-lhes: sejam mais desafiadores. Por favor: sejam mais desafiadores.”

Como reagiu a Samsung? “Concordaram. E estão muito activos.” Se aos olhos ocidentais, tudo isto parece abstracto, para os coreanos é quase igual. Uma sondagem de Abril revelou que 53% dos 190 membros da Academia Nacional de Engenheiros Coreanos ainda não viu resultados tangíveis desta nova política, embora quase 70% acredite que eles vão acontecer. O governo não tem pressa. “Queremos preparar o futuro da Coreia. Esta estratégia tem menos de um ano. Criámos a infra-estrutura fundamental para a economia criativa e talvez daqui a 10 anos haja algum resultado. Mas não vamos forçar nada. Vamos apenas encorajar. Essa é talvez a maior diferença em relação às políticas do passado, ao velho korean way. Queremos criar um novo korean way. Antes era rápido, rápido. Em coreano, dizemos: pal-li, pal-li. Na Coreia, tudo é muito eficaz. Mas agora precisamos de outra forma de fazer as coisas. Não apenas rápido, rápido. Fizemos o melhor que conseguimos para nos aproximarmos dos países desenvolvidos. Agora precisamos de uma coisa nova para sermos o líder. Essa chave é a criatividade.”

Investimento de 2880 milhões
Nos próximos três anos, o governo vai investir 2880 milhões de euros na economia criativa. Este ano já disponibilizou um fundo de 72 milhões para apoiar star-ups. No fim quer coisas concretas, como 90 mil novos empregos, e outras que, vistas de fora, parecem difíceis de acontecer nesta espécie de gigantesco laboratório: “E o futuro, quem sabe o que vai o futuro trazer-nos? Temos de preparar o nosso futuro. E assim o governo teve esta ideia: queremos Steve Jobs [o visionário fundador da Apple, 1955-2011] coreanos.”

Para já, o que há de concreto é uma plataforma online para receber ideias. Chama-se Cidade da Economia Criativa e nos seus seis meses de vida acolheu 20 mil ideias. São todas lidas por um painel de "mentores", especialistas em diferentes áreas, da informática às patentes, da gestão à saúde ou à Segurança Social, que as avaliam, recomendam, reencaminham. "Algumas donas de casa criaram pequenas empresas a partir da nossa Cidade", diz Han Sohee. "Se conseguirmos lançar novas ideias no mercado global e que outras empresas de outros países nos sigam, teremos vantagens no mercado."

"A Coreia não quer copiar, quer ser original, mas, paradoxalmente, o que está a fazer é copiar o modelo americano", diz o professor Pina e Cunha. "Quando a grande vantagem dos americanos é que a noção de arriscar, falhar e recomeçar faz parte da cultura." Mesmo assim, e sabendo que a criatividade é um processo que escapa ao controlo, o professor acredita que "é possível criar um contexto que faça a criatividade florescer".

No seu discurso inaugural, a Presidente coreana recuperou um velho ditado que diz que "alguém que nós conhecemos não é tão bom quanto alguém de quem nós gostamos, e que alguém de quem nós gostamos não é tão bom quanto alguém com quem gostamos de estar". E a seguir traduziu: "Não há futuro quando os talentos das pessoas estão asfixiados e quando a única regra do jogo é a competição que sufoca a criatividade."

A Ásia está muito sensível à criatividade e ao soft power, sublinha Pina e Cunha. "As sociedades asiáticas estão a tentar inverter a sua imagem de países muito pesados e industriais para países mais atraentes, mais cool. Já não basta serem muito bons executantes. Sendo uma sociedade com um quadro mental muito rígido e hierarquizado, provavelmente, como o chefe manda ter ideias, as pessoas vão ter ideias. Mas pode ser-se criativo por decreto? Tenho dúvidas de que a criatividade possa ser gerida de cima para baixo." 

A jornalista viajou a convite da Fundação da Coreia

Sugerir correcção
Comentar