"O graffiti é uma performance sem público"

André Saraiva :dos graffiti para as discotecas, dos hotéis para as artes plásticas, do desenho para a sociedade do espectáculo. "Não diferencio um desenho de um momento social." Primeira grande exposição do autor de Mr. A está agora no Museu do Design e da Moda.

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André Saraiva fotografado no Mude Sandra Ribeiro
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Mr A

Estamos no chão de um edifício descarnado e André Saraiva, dono dos estrelados clubes Le Baron (Paris, Tóquio, Londres, Nova Iorque), director criativo da L’Officiel Hommes, apresenta-se com a mão na tinta. Ajoelhado sobre um grande plástico, pincel fino na mão e telinha quadrada na outra, vai pintando enquanto fala com o PÚBLICO. Nome grande do empreendedorismo lifestyle, ilustrador de publicidade de luxo (Vuitton, Möet, Chanel, Cartier), está em busca do tempo perdido. Há peças ainda por desenhar e há entrevistas, muitas, para dar, não fosse o artista e empresário personagem frequente nas histórias e capas das publicações mais lustrosas do mundo e sendo esta a sua primeira grande exposição de trabalhos nas suas diversas vertentes.

Nascido em 1972 em Uppsala, na Suécia, com pais portugueses e uma vida em França, é figura de hífenes. Quando lhe perguntam o que faz, responde: “Escrevo o meu nome em paredes”. E o que faz num museu de design num país em que, diz, “ninguém me conhece”? Não será bem assim, visto que durante largos anos quem passava pelas Amoreiras via o seu mural colorido dedicado à associação Abraço - e a Internet nunca esqueceu Mr. A.

Quando perguntamos à directora do Museu e co-comissária da exposição com Saraiva, o que fazem os Mickeys erectos, os cartazes para Dream Concerts que nunca aconteceram ou a Andrépolis (uma cidade de bares e neónes evocativa do trabalho do Memphis Group) no Mude, Bárbara Coutinho contextualiza: “É desenho e o André é alguém que  conhece como poucos a sociedade em que vivemos, do consumo imediato da imagem, de espectáculo, o diálogo entre a palavra, o grafismo e a expressão.”

Cultura popular de traços largos, publicidade, arquitectura, produtos, letras e graffiti numa semana em que não só o mais conhecido artista português que fez a transição da rua para a galeria, Alexandre Farto, aliás Vhils, inaugura também a sua primeira grande mostra em Portugal no Museu da Electricidade, mas também aquela em que André Saraiva oferece a Lisboa um mural em azulejos a completar até ao Verão de 2015.

Como é que a exposição se organiza com tantos ingredientes diferentes da sua actividade?

Volto a Portugal, com uma monográfica enorme, num museu e a ideia era tentar contar uma história. Fui viajando pelo mundo, fiz muitas coisas diferentes e trouxe uma colecção das minhas coisas. Filmes que tenho feito, alguma fotografia pessoal, fotografia de algum graffiti que faço nas ruas, uma instalação de uma cidade imaginária de prédios e discotecas, é escultura, pintura, desenhos íntimos, o projecto para o mural de azulejos [que está, a preto e branco, plasmado nas paredes da mostra]. Não quis que fosse pretensiosa, as pessoas não me conhecem aqui…

E que história é? A história de Mr. A?

É mais uma aventura feliz, como descobri o mundo. O graffiti sempre me deu a liberdade de não ficar preso num domínio. Não era suposto fazer a maior parte das coisas que fiz. Foi o que me disseram na escola. Queriam pôr-me num curso de mecânica. “Não vou seguir o que acham que é bom para mim.”

De que forma é que este sorriso de Mr. A funciona como uma forma de expressão sua?

Ele sempre foi um alter-ego, um amigo, tornou-se uma assinatura, uma sombra que me segue. Existe por si só e aquilo de que sempre gostei e que também é a base do graffiti é que ele pertence à parede e pertencerá a quem lhe der atenção e o adopte. Ele pertence a toda a gente. Tornou-se uma personagem popular. Gosto de pintar coisas muito diferentes em suportes diferentes e gosto do estatuto de ser popular e de acesso fácil.

No seu percurso, a ideia de contaminação é incontornável – como é que processa estas diferentes áreas ao mesmo tempo que goza essa ideia de não estar a fazer o que é suposto?

Acho que sou um pouco esquizofrénico (riso). Tudo vem do mesmo desejo de ser criativo e não diferencio entre fazer um espaço comercial ou uma discoteca, ou pintar este pequeno pedaço de tela negra. A maioria dos artistas que admiro e as suas peças mais importantes… Keith Haring fez a [loja] Pop Shop, que é a minha coisa preferida de sempre e que juntou todo o seu talento; Gordon Matta-Clark fez o Food, que era um restaurante, e talvez uma das suas obras mais importantes. Não diferencio um desenho de um momento social. Gosto de comunicar com as pessoas.

Diria que a fantasia é a sua área de trabalho, entre o sonho da noite e o do consumo?

Só estou a tentar fazer um prolongamento da minha infância, ainda estou a brincar. Vamos brincar aos clubes, aos médicos, aos hotéis, ao graffiti.

E como foi essa infância que tenta prolongar?

Cresci na Suécia com pais portugueses que eram refugiados políticos, numa pequena cidade chamada Uppsala, de onde é Ingmar Bergman, onde filmou Fanny e Alexander. Foi muito feliz, a Suécia é o melhor para crianças, muito livre, muito criativa. Acho que a minha paixão por pintar nas paredes vem desse tempo, éramos encorajados a desenhar e a ser criativos.

Acabou por ser um dos pioneiros em acções hoje muito comuns como a relação entre os artistas de rua e a publicidade, mas também na transição desse trabalho de rua para a galeria. A publicidade ocupa um espaço público que alguns writers reclamam para si, por exemplo. Também começou assim?

Sempre gostei de publicidade, de poluição visual, de graffiti. Gosto de cobrir a publicidade ou de ser suficientemente esperto para fazer parte dela. O graffiti tem a ver com adaptação e esgueirarmo-nos para sítios onde não é suposto estarmos. Mas quanto aos museus, o graffiti tem lugar na cidade, ilegalmente e à noite. Qualquer outra coisa não é graffiti. Fala sobre graffiti, pode referir-se a graffiti, mas não estou a fazer uma exposição de graffiti. Graffiti é uma acção, nem sequer é um resultado, assim que saio e encontro um espaço, o graffiti já praticamente acabou. O graffiti é uma performance sem público e 80% dele é acção, o resultado é apenas uma parte ínfima. E de qualquer maneira a ideia é que desapareça.

Esta evolução da street art para a musealização ou coleccionismo diz-lhe o quê então?

Acho que street art é um termo criado para abarcar tudo, com ou sem qualidade. Graffiti para mim são anos de prática, anos de perigo, de luta. Levou-me cerca de 25 anos para estar um pouco próximo desse sentido do graffiti.

E ainda pinta nas ruas, à noite? Que papel é que isso tem na sua pulsão criativa?

Sim. É puro prazer egoísta. É como masturbação e orgasmo durante horas.

Quando enveredou pelo mundo da noite e da hotelaria, de que forma é que isso contaminou a sua criação artística?

É muito simples: costumava sair à noite para pintar. O que se passava à noite? Nada de especial, os únicos sítios abertos eram bares e discotecas e era onde eu ia refugiar-me. Tinha 13 ou 14 anos e as pessoas foram muito acolhedoras e a noite tornou-se um lugar onde era eu mesmo – já não era o pequeno imigrante, estrangeiro, era quem eu queria ser. E conheci pessoas que admiro, artistas, outsiders, doidos, descobri a música e a arte…

Se alguém taggar ou graffitar o exterior de um dos seus clubes ou hotéis, o que acontece?

O mundo do graffiti é duro. Quando se cobre alguém, isso significa algo. Há um grande risco de levar uma sova. Mas é o mundo do graffiti… depende de quem o faz. É preciso saber com quem se está a lidar e aceitar o risco. O graffiti não existiria se as pessoas o aceitassem e fosse legal. Não o teria feito. O graffiti não é vandalismo, é um belo crime.

 


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