Trabalhadores já não querem ser accionistas das empresas privatizadas

Funcionários da REN subscreveram apenas um terço das acções que lhes estavam reservadas, mesmo com direito a desconto. CTT tiveram fraca adesão e trabalhadores já saíram do capital da ANA e do BPN.

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Em 2007, os trabalhadores aderiram em força à compra de acções da REN Rui Gaudêncio

A falta de interesse fica marcada pelo facto de serem os únicos que podiam comprar acções com um desconto de 5%, uma medida que resistiu às alterações feitas por este Governo à Lei-quadro das Privatizações. Tendo como referência o preço base da OPV, de 2,68 euros por título, cada um dos mais de 600 trabalhadores teria de pagar 2,546 euros por acção. O investimento global acabou por ser de apenas 550,7 mil euros, contra os 1,5 milhões que poderiam ser aplicados. Esta terça-feira, já com as novas acções no mercado (menos as dos trabalhadores, que têm um período de indisponibilidade), as acções da REN fecharam nos 2,7 euros, com uma ligeira queda de 0,7%.

Não há muito tempo, quando se deu a primeira operação de dispersão em bolsa da REN, em Julho de 2007, os resultados foram bem diferentes. Nessa ocasião, os trabalhadores tinham direito a 1,7 milhões de acções (0,32%) e a procura chegou aos 3,06 milhões, superando assim em larga escala a quantidade disponível.

O desinteresse dos trabalhadores, no entanto, não é um caso específico da REN, tendo sido uma marca de outros processos de privatização lançados pelo actual Governo. Assim, também as operações dos CTT e da ANA (gestora dos aeroportos nacionais) mostraram que ser pequeno accionista da sua empresa é algo que, na conjuntura actual, pouco ou nada interessa aos colaboradores.

No caso dos CTT, dos 105 milhões de acções privatizadas a 5 de Dezembro, foram destinadas 5% (ou seja, 5,25 milhões de títulos) aos trabalhadores, mas só foram dadas ordens de compra para 2,1 milhões – cerca de 40% da oferta disponível – tendo o remanescente sido transferido para o lote reservado aos pequenos investidores.

Os trabalhadores beneficiavam, também aqui, de um desconto de 5% face ao valor fixado para a venda, 5,52 euros por cada título, o que significa que investiram um pouco mais de 11 milhões de euros para ficar com uma participação nos CTT (onde o Estado se mantêm como accionista maioritário com 31,5% do capital).

Os 5,25 milhões de acções dirigidas aos funcionários dos correios conferir-lhes-iam uma participação de 3,4% na empresa, que se ficou por 1,4% devido à adesão verificada na oferta pública inicial de venda de Dezembro. E não se sabe se a fasquia já baixou, visto que só eram obrigados a manter os títulos até 5 de Março, podendo tê-los alienado entretanto, até porque os CTT têm vindo a valorizar-se em bolsa, tendo fechado a valer 7,75 euros na sessão de terça-feira.

Trabalhadores vendem ANA
Quanto à ANA, a Vinci fez uma proposta avultada por 95% do capital da gestora aeroportuária (3080 milhões de euros, incluindo a assunção de dívida e a concessão dos aeroportos por 50 anos), mas a privatização da empresa não gerou o mesmo êxtase junto dos trabalhadores, apesar de ter sido feito um desconto de 5% face ao preço de venda ao grupo francês (26,76 euros por acção). Dos 5% que lhes tinham sido destinados, compraram apenas 0,024% (ou seja, 9770 títulos), gastando, no total, 261 mil euros.

As acções que os trabalhadores não compraram foram transferidas directamente para a Vinci, embora sem o desconto de 5%. Mas o grupo francês, que foi escolhido para ficar com a ANA em Dezembro de 2012 - mas só formalizou a aquisição em Setembro do ano passado -, mostrou, desde cedo, a intenção de garantir 100% do capital, pelo que teria de negociar com os funcionários a venda dos 0,024% que compraram. Uma intenção que, segundo fonte oficial da empresa, a Vinci já concretizou, deixando assim os trabalhadores de deter qualquer participação no capital.

O mesmo aconteceu com a reprivatização do BPN, que foi vendido ao Banco BIC. Este não só acabou desde logo com a marca, como fez questão de ficar com a totalidade do capital, assumindo as acções compradas pelos trabalhadores que se mostraram interessados no negócio (e que adquiriram cerca de 0,5%).

Estas quatro operações de reprivatização evidenciam, assim, a falta de interesse dos funcionários em tornarem-se accionistas das duas empresas, uma realidade bem diferente dos anos 90 e, até, da década passada. A excepção foi a entrada em bolsa da Espírito Santo Saúde, no início deste ano. A empresa, após um mau arranque, conseguiu recuperar na recta final da operação, e os trabalhadores pediram para ficar com 502.160 acções, exactamente o número a que tinham direito. Esta não foi, no entanto, uma privatização, ao contrário dos casos em análise.

O próximo teste será a Caixa Seguros, já que, embora o negócio com os chineses da Fosun esteja concluído (ficando com 80%), falta ainda fechar a parte destinada aos trabalhadores.

Falta de perfil, e de dinheiro
Octávio Viana, presidente da associação de investidores ATM, afirma que “a predisposição de um investidor para adquirir acções depende do seu perfil, nomeadamente quanto ao risco e objectivos de rentabilidade.” Desta forma, acrescenta, “é natural que numa empresa como a REN, os CTT e a ANA, onde há muita força de trabalho operária, não se encontre uma percentagem muito elevada de investidores com o perfil necessário para essa aquisição, nem mesmo perante o desconto para trabalhadores”.

Para este responsável, há ainda um outro aspecto a realçar: o facto de estas OPV não terem sido “fortemente promovidas pela banca -- sabendo que os gestores de conta tem forte influência nas decisões de investimento dos seus clientes --, que nesta altura se preocupa mais em alocar os recursos disponíveis dos seus clientes nos aumentos de capital e empréstimos obrigacionista que realizam”.

Abel Ferreira, director executivo da Associação de Empresas Emitentes (AEM), embora diga que não pode comentar aspectos específicos das operações realizadas pelos seus associados, não deixa de referir que “a apetência dos investidores privados pelas operações realizadas em bolsa varia em função de vários factores que não têm necessariamente que ver com as características dos títulos ou a reconhecida solidez das empresas em causa”. Como exemplos de factores que influenciam a adesão dá, entre outros, o maior ou menor grau de conhecimento directo das empresas pelos consumidores, a forma como a oferta pública é divulgada e publicitada, a duração do período de oferta, e as condições da oferta.

Depois, realça um outro aspecto, “fundamental no caso português”, que diz estar relacionado com o próprio perfil do investidor privado, e que tem “uma representação transversal abrangendo quadros superiores, profissionais liberais, técnicos intermédios, administrativos, operários e trabalhadores não qualificados e, numa outra perspectiva, trabalhadores activos e reformados”.

As decisões de investimento das famílias, sublinha, “são especialmente sensíveis à evolução do rendimento do agregado familiar” e, ao longo dos últimos sete anos, “esse rendimento e as disponibilidades das famílias diminuíram de forma drástica, pelo que se percebe que, para mais num contexto em que desapareceram os incentivos fiscais à presença dos pequenos investidores em bolsa, os portugueses, descapitalizados, têm muita dificuldade em acorrer às ofertas públicas”.  Isso, por sua vez, afecta as empresas, que encontram menos alternativas de financiamento.

Para Abel Ferreira, “com os portugueses descapitalizados e mais atentos à necessidade de reduzir ou evitar o endividamento, será difícil regressar, não à lendária euforia bolsista da década de 90 -- que não deverá ser o que está em causa--, mas a uma participação mais significativa de investidores privados no nosso mercado de capitais”.

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