Banda Sonora para a Infelicidade

"Ninguém suporta muito tempo o seu próprio prodígio, nem muito tempo suportamos nós o prodígio alheio."
Herberto Helder, "Os Passos em Volta"

Um musical pode ser isto: um filme onde as personagens não dançam como Gene Kelly nem cantam como Julie Andrews; um filme onde as canções não servem de pórtico para o maravilhoso nem desencadeiam um súbito esplendor de cores.

Já há cores em abundância no seio da família Tenenbaum, o artifício está à vista no "décor" e na estilização, a música não vem acrescentar um novo degrau para a fantasia, ninguém se eleva no ar. Afinal de contas, é um filme musical?

Não um musical "tout court" - da mesma forma que não é um filme "literário" nem "encenado", apesar do seu intrincado caleidoscópio de referências e dispositivos. Acima de tudo, é o filme-homenagem a uma Nova Iorque que nunca existiu a não ser na cabeça de um puto texano, Wes Anderson, que sonhou com ela ao som dos Velvet e ao folhear a "New Yorker" ou J.D. Salinger.

Também (ressalve-se: também) é um filme musical. Não por acaso, uma das primeiras coisas que ocorreu a Anderson foi o tema "These days", de Nico (esse outro "wonderboy" Anderson, Paul Thomas, também afirmou ter estruturado "Magnólia" a partir das canções de Aimée Mann). "Penso sempre em músicas antes de começar a escrever um filme. No caso de 'Os Tenenbaums' , foi 'These days', de Nico. A música é inspiradora, ajuda-me a imaginar certos planos, e gosto de pô-la a tocar durante as filmagens porque dá uma ideia do ritmo e do ambiente da cena aos actores e ao cameraman."

Um musical pode ser isto: um filme que descola a partir de uma canção. O que se ouve em "These days", escrito por Jackson Browne para a estreia de Nico a solo, no álbum "Chelsea Girl" (1967)? A solidão ("I don't do too much talking/These days"), o irreparável ("These days I seem to think a lot/ About the things that I forgot to do"), a desilusão ("I've stopped my dreaming"), o fracasso ("Please don't confront me with my failures, / I had not forgotten them").

Ou como uma canção pode conter todo o programa de um filme: "Os Tenenbaums" é um retrato de conjunto sobre a perda. Como a criança escocesa que dá choques eléctricos num dos capítulos de "Os Passos em Volta", de Herberto Helder - prodígio, disseram, e vieram de todo o lado para se acercarem dele -, os génios Tenenbaums estão condenados a não viver à altura das expectativas, as deles e as dos outros. Ainda que escapassem a uma tendência prodigiosa para a fugacidade, teriam sempre reservado o mesmo destino: o isolamento e a tristeza. Sim, é sempre a mesma cantiga.

Em vez da luz, o negrume

Se Wes Anderson começou por imaginar o seu filme sobre Nova Iorque a preto e branco, com a canção de Nico a pairar, acabou por se render ao arco-íris - afinal, trata-se de uma comédia. Mas não se tratou só de uma mudança de cor. Se, para um filme a preto e branco, a música assentava que nem uma luva na melancolia das imagens, diante da celebração colorida de "Os Tenenbaums" ela só pode funcionar como contraponto sombrio - e se o humor do filme resulta bizarro é, em parte, devido à banda sonora. De resto, é também isso um musical: um filme onde as canções permitem aceder a um outro patamar, indizível, dos sentimentos das personagens. Só que, onde na tradição do musical americano as canções impunham um movimento ascendente, em direcção aos céus, em "Os Tenenbaums" elas puxam-nos para baixo. Como Ícaro em queda de tanto se aproximar do sol.

Em vez da luminosidade, o negrume. Claro que também por aqui perpassam pressentimentos de alegria, graças sobretudo à música de címbalos e orquestrações cristalinas de Mark Mothersbaugh, o ex-líder dos Devo tornado compositor de bandas sonoras (colaborou com Wes Anderson nos seus três filmes). Afinal, trata-se de uma comédia. Com o seu "som Disney", evocam as caixinhas de música que se voltam a abrir depois de um longo silêncio para desempoeirar a nostalgia.

Mas tentem lembrar-se delas depois de verem o filme, e não da versão instrumental de "Hey Jude" que acompanha a sequência inicial, onde se resume a ascensão e queda dos Tenenbaums. Nem do desvanecido "These days", que não por acaso emerge no reencontro das duas únicas personagens, Richie (Luke Wilson) e Margot (Gwyneth Paltrow), onde, porventura, o sombrio ameaça sobrepor-se ao caricatural. Tentem lembrar-se de outros sons que não esses que vão encerrando os falhados Tenenbaums no seu "mal d'être".

Nesta hipótese de banda sonora para a infelicidade, não é só a voz magoada de Nico que concorre para isso, embora o resto, também resgatado do baú de sonoridades dos "sixties" e "seventies", surja como prolongamento natural de "These days": "Fly", de Nick Drake, "Look at me", de John Lennon, "Lullabye", de Emitt Rhodes, ou "Needle in the hay", de Elliott Smith (o único "contemporâneo", por assim dizer, já que a música deste herdeiro confesso dos Beatles é alheia à contemporaneidade).

Diz Wes Anderson que são estes os temas fora de tempo que ele associa à sua Nova Iorque fora de tempo. Sim, é verdade que todos afinam pelo mesmo recorte acústico, dedilhando o seu lamento à guitarra. Mas há razões para supor que Anderson os juntou a todos na sua selecção musical porque encontrou nesses "singers-songwriters" um ar de família com os ex-prodígios dos Tenenbaums: o mesmo desamparo, a mesma infância perdida, a mesma excentricidade raiando a loucura, o mesmo existencialismo de mártir.

"Sou uma completa estranha para mim mesma", dizia Nico. "Fracassei em tudo o que tentei fazer", concluiu Nick Drake. E até Lennon canta em "Look at me": "Who am I supposed to be?/ Who am I?" (Brian Wilson, o grande génio falhado da pop também anda por aqui...)

Portanto, se tiverem a sensação de que a reunião dos Tenenbaums se assemelha mais a uma banda que se volta a juntar depois de as carreiras a solo dos seus membros fracassarem, isso pode ser apenas porque Wes Anderson pegou numa canção triste e tornou-a melhor. E agora, todos em coro: "na-na-na-na..."

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