Vinhos de Portugal no Rio: Quando uma casta se transforma no rosto de Portugal
No Vinhos de Portugal no Rio duas provas dirigidas por brasileiros mostraram o potencial de envelhecimento dos vinhos do Porto e a diversidade e originalidade dos vinhos nacionais. Para Dirceu Vianna Júnior, um Master of Wine, os aromas da Touriga Nacional servem até para revelar a autêntica “face de Portugal”
Na véspera, o Master of Wine brasileiro Dirceu Vianna Júnior, ocupara a mesma sala do consulado geral de Portugal no Rio de Janeiro, com o seu pé direito enorme, abóbada decorada com relevos de gesso e paredes enobrecidas com quadros e candeeiros de cristal. A sua tarefa era falar sobre “As Uvas (castas) de Portugal que me encantam”, e as três dezenas de pessoas que tiveram a sorte de conseguir um lugar na prova não escondiam o seu regozijo pela oportunidade. Do Vinho Verde ao Alentejo, da Arinto à Touriga Nacional, estava para acontecer a revelação da diversidade de um enorme potencial botânico. Ou, para os mais experientes, uma confirmação.
Entre as mais de 300 pessoas que tiveram a sorte de participar nas provas organizadas do Vinhos de Portugal no Rio (a procura excedeu imenso a oferta), os que conseguiram inscrever-se nas sessões de Dirceu Vianna Júnior e de Guilherme Rodrigues podiam julgar-se no pódio do privilégio. Dirceu optou por escolher vinhos que fossem acessíveis em termos de preços médios para os consumidores, deixando assim implícita a ideia que “um país pequeno, do tamanho do estado de Santa Catarina” é um alfobre de experiências diferentes quer nos vinhos brancos, quer nos tintos. Guilherme Rodrigues, um advogado famoso de Curitiba que é considerado como um dos grandes especialistas mundiais no vinho do Porto seguiu a linha do tempo dos sucessos do futebol brasileiro para mostrar as causas que lhe garantem “um lugar no pináculo do mundo de Baco”. No final, ambos foram aplaudidos.
Dirceu Vianna Júnior escolheu para as suas provas três vinhos brancos e três tintos. A sua selecção de brancos obedeceu ao critério de serem feitos com uma única casta, de forma a mostrar que em Portugal há brancos capazes de merecerem um reconhecimento pela individualidade e qualidade semelhante ao que se concede às mundialmente famosas Chardonnay ou Sauvignon Blanc. E, seguindo um critério hoje razoavelmente consensual, optou pelas castas Alvarinho, Arinto e Encruzado.
A opção por mostrar a qualidade da Alvarinho, através de um Muros de Melgaço do enólogo Anselmo Mendes, serviu para detectar subtilezas aromáticas que a transformam “numa casta fantástica”. Dirceu ajudou então o público a identifica-las. Copo no nariz, ia debitando: “toranja, frutos silvestres, maracujá. Por vezes pêssego, maçã…”. Nas suas mesas de três lugares, as pessoas seguiam as pistas, aquiesciam com a cabeça, indagavam sobre as sensações dos parceiros ou parceiras do lado. E reconheciam de palavras ou gestos que sim, que aquele vinho é de facto extraordinário.
A busca continuou com a Arinto, neste caso produzido na zona de transição dos vinhos Verdes para o Douro, na Quinta da Covella. Dirceu lembraria que essa é uma casta ancestral no saber português sobre as artes do vinho – “a sua referência mais antiga data de 1712”, disse. A sua excelência depende sem dúvida da sua densidade aromática, onde se pressentem “aromas minerais, abacaxi, mel, coco, frutas tropicais”, mas também da sua acidez que acrescenta nervo e frescura ao vinho.
Para acabar a viagem pelos brancos, o Master of Wine brasileiro escolheu a nova coqueluche das castas brancas nacionais: a Encruzado, que se cultiva no Dão e tem, entre outras particularidades, uma boa capacidade de “fermentar em barricas de madeira”. Por definição, esta casta produz vinhos brancos “com peso, com corpo e com estrutura”, mas os exemplares em prova ficaram um pouco longe de serem representativos do seu potencial. O Quinta da Garrida dado a provar cumpriu a sua missão, mas, no confronto com o Arinto ou o Alvarinho, este branco de Encruzado foi o último a cortar a meta.
Já no capítulo dos tintos, Dirceu optou por mostrar os seus “encantos” pela Touriga Franca, pela Touriga Nacional e pela Aragonês, que na viticultura das regiões do Norte e Centro se conhece por Tinta Roriz. Só que ao contrário da metodologia que seguiu nos brancos, aqui só uma destas castas teve direito a um concerto a solo: a Touriga Nacional. As outras subordinaram-se ao critério que melhor exponencia o carácter do vinho de Portugal: a procura de um lote onde entrem diferentes combinações entre castas.
O caso da Touriga Franca sustentou-se num Altano de 2011, produzido pelo grupo Symington no Douro. Dirceu explicou que “não é fácil de fazer um vinho com esta casta a 100%”, mas acrescentou que a Touriga Franca é “muito boa para fazer um lote”. O vinho em causa comprovava-o. A sua riqueza aromática, feita de “frutos negros, cereja, violeta, amora e especiarias” foi reconhecida. E o balanço final partilhado: “Um vinho bem feito, com carácter e personalidade”.
O mesmo julgamento se produziu na avaliação de um Touriga Nacional da Quinta do Vallado. Para Dirceu, a touriga é “a cara de Portugal, é o sabor de Portugal, é Portugal”. O aroma exuberante deste vinho (“amora, violeta, alecrim, mirtilo, frutos secos”) deixou a audiência agitada. E a sensação quente, forte e duradoura que deixou na boca transformaram-no com muita probabilidade na estrela da sessão. Se bem que o Aragonês da Esporão, que dominava um lote onde entrou ainda a Trincadeira, se tenha portado a grande nível. Dirceu elogiou-lhe a qualidade da fruta da Roriz e a estrutura, a acidez e o tanino provenientes da Trincadeira.
Um dia depois, Guilherme Rodrigues apresentava-se à sua audiência como “um amante do vinho do Porto há mais de 35 anos”. Para ele, só o Champanhe, o Bordéus, o Borgonha “e algum Madeira” podem ficar ao lado do Porto no pináculo do mundo de Baco. Na hora que se seguiu, baseou-se em cinco vinhos para provar as suas teses.
Como é habitual nestas provas, Rodrigues começou com o vinho mais jovem para fazer uma viagem no tempo. Em 2002 o Brasil ganhou o seu último Mundial, com uma equipa comandada por Luis Felipe Scolari, mas esse ano não foi ano de vintage clássico – como fora 2000 ou voltaria a ser 2003. Mas o Quinta de Ervamoira de 2002, da Ramos Pinto, em prova servia de exemplo para dissuadir os que acreditam que só as grandes declarações merecem atenção. Pelo contrário, disse, “os vinhos dos anos menos bons têm a vantagem de se poderem beber mais cedo e em geral custam menos dinheiro”. Nada mal.
Guilherme Rodrigues seguiu o seu percurso para se deter em 1994, ano de “uma safra monumental no vinho do Porto”. Tão monumental que, desde então, só encontrou um ano comparável a esta no consensual vintage de 2011, um vinho que, diz, “é só perfume”. O Sandeman em prova era ainda “um vinho fechado”, embora mostrasse “uma coisa que representa bem o ano: uma fruta sofisticada”.
A cada passo Guilherme Rodrigues preocupava-se por inserir os vinhos na tradição das casas que os produziram, mencionava enólogos, falava de vinhas, de viticultura e de enologia. Assim se chegou ao momento do dia: o vintage de 1970 da Graham’s, “um grande ano e este Graham’s é um dos melhores desse ano”. Ou seja, “um grande vintage para uma grande selecção”, na qual Pelé ainda se destacava. Rodrigues descreveu os seus aromas identificando “cogumelo, trufa, fruta que não é cansativa, que não é melosa” e concluiu que este Graham’s é “um vintage perfeito, que entrou agora no seu plateau (a fase da vida em que mostra todo o seu potencial) e ficará por aqui por mais uns 20 ou 30 anos”.
Já nos primórdios da hegemonia do futebol brasileiro nos mundiais, Guilherme Rodrigues desvendou depois as notas de um Crusted (um vinho engarrafado sem ser filtrado que conserva borra e pode evoluir na garrafa) da Noval de 1962 e num Quinta de Valriz de 1958. Nenhum destes anos entrou na glória das grandes declarações. O ano de 1958 foi até “um ano terrível”. A dificuldade em encontrar vinhos desses anos reflecte essas limitações. O Noval “está vivo”, considerou Guilherme Rodrigues, “mostra ainda um aroma floral interessante, densidade e delicadeza”. O Valriz, um Colheita, era a prova acabada dos diferentes caminhos por onde os Porto podem evoluir.
No final das provas, os participantes discutiam os melhores vinhos, faziam as sínteses para memória futura, perguntavam onde se podia comprar este ou aquele. E todos pareciam satisfeitos. Com os aromas ainda frescos na memória e com o impacte dos sabores ainda firmes no palato, estavam com os sentidos municiados para avaliarem a certeza de Dirceu sobre o facto de Portugal ser o lugar “de alguns dos melhores vinhos do Mundo”.