Cerca de 12 mil eleitores não puderam votar por causa dos boicotes
No concelho de Murça, ninguém está a votar. É o protesto, inédito, contra o encerramento dos serviços públicos e o correspondente agravamento da desertificação do interior. Boicotes também na Trofa, Covilhã, Lousã e Sintra
“É uma situação inédita”, adiantou ao PÚBLICO Raúl António Luís, o vice-presidente da Câmara de Murça, dizendo ter recebido na sexta-feira ao final do dia, por correio, a indicação de que em nenhuma das sete freguesias do concelho haveria pessoas disponíveis, entre os que tinham sido previamente nomeados, para integrar as mesas de voto. Fugindo à palavra “boicote”, o autarca explicou que esta recusa traduza o descontentamento dos habitantes do concelho face ao encerramento “do tribunal, das extensões de saúde e ainda face ao hipotético fecho das Finanças”.
“São razões plausíveis para as pessoas se revoltarem. A população está muito descontente e cansada. Estamos em democracia e as pessoas são livres de se revoltarem com dignidade e civismo”, solidarizou-se o autarca, para quem este protesto "não é de estranhar porque o interior do país está a ser sistematicamente prejudicado".
O protesto inviabiliza assim o exercício do voto aos cerca de sete mil eleitores do concelho.
Ter todo um concelho sem uma única mesa de voto a funcionar é algo de que o porta-voz da Comissão Nacional de Eleições (CNE), João Almeida, diz não ter memória. “Tivemos grandes boicotes, em sítios como a Trofa e Vizela, mas que nunca afectaram todo o concelho. Ter um concelho inteiro parado em dia de eleições é algo de que não me lembro”, disse.
Em casos como este, “e se os votos forem importantes para a definição dos resultados”, explicou o porta-voz da CNE, as eleições repetem-se “no mesmo dia da semana seguinte”. Porém, como se trata de umas eleições europeias, “o apuramento só será feito depois de domingo”, sendo que, na dúvida, “o mais certo é que as eleições sejam de novo convocadas para daqui a uma semana”.
Embora com uma dimensão menor, os boicotes afectaram um total de 12 freguesias, de cinco diferentes concelhos. Na Covilhã, na freguesia de Orjais, a escola básica foi fechada a cadeado, num protesto contra o anunciado encerramento daquele estabelecimento de ensino.
Na escola onde votam 768 eleitores, o portão foi "guardado" por cerca de três dezenas de populares, que contestam a possibilidade de as 15 crianças que frequentam aquele estabelecimento de ensino, e com idades entre os seis e os nove anos, serem transferidas para uma outra escola em Teixoso, a sete quilómetros daquele local. Cantando o "Grândola Vila Morena", a população conta com o apoio do presidente da junta de freguesia. "Já estava à espera desta situação, porque as pessoas, desde que souberam da possibilidade de encerramento, estão preocupadas e revoltadas. Obviamente que estou solidário com este protesto porque não concordo com o encerramento da escola", disse à agência Lusa o presidente da Junta de Freguesia de Orjais, José Pinto.
Ainda no concelho da Covilhã, em Vales do Rio, houve outro protesto, igualmente contra o encerramento da escola local. A população fechou a porta com cadeado e cola, impedindo a abertura das urnas à hora prevista e a constituição da mesa de voto.
Em Orondo, no mesmo concelho, um protesto contra a agregação da freguesia tentou impedir que a votação se realizasse, mas a escola abriu e a mesa de voto foi constituída por apenas três elementos, o que já levou o porta-voz do movimento de protesto a anunciar que vai apresentar queixa.
Falta de metro na Lousã e na Trofa
Na Lousã, na freguesia de Serpins, o acesso às duas mesas de voto também foi bloqueado. O cadeado na porta da autarquia, onde se previa votar, serviu de protesto contra a suspensão do projecto de construção do metro de superfície.
Na freguesia de Muro, concelho da Trofa, também houve boicote e também por causa da falta de transportes. À espera de combóio e de metro desde há 12 anos, a população diz-se enganada pelos sucessivos governos que vêm prometendo a linha verde do metro ISMAI-Trofa e as duas mesas de voto da freguesia não chegaram a abrir.
Numa nota enviada no final da semana, a comissão “Metro para a Trofa Já” recordava já que a população se sente defraudada, mais ainda porque o prometido prolongamento da linha verde do Metro do Porto não se encontra sequer na lista de projectos apresentados como prioritários no quadro das candidaturas aos fundos comunitários. “A população de Muro sempre disse que enquanto não viesse o metro, nunca mais votaria”, declarou Carlos Martins, da comissão “Metro para a Trofa Já”, aos microfones da TSF.
Já em 2011, 8206 subscritores tinham feito chegar à Presidência da República uma petição reivindicando a construção “com a máxima urgência” daquela linha. Desde então, nem um voto tem caído nas urnas daquela freguesia com perto de dois mil habitantes.
Urnas abrem mais tarde
Em Paços de Ferreira, a população de duas antigas freguesias colocou cadeados junto às secções de voto, atrasando o início da votação, mas a GNR normalizou entretanto a situação. De acordo com fonte da autarquia local, os cadeados foram cortados pela GNR pouco antes das 9h, nas antigas sedes das juntas de Lamoso e Codessos, apesar de algumas centenas de populares terem continuado no local.
A população daquelas antigas freguesias protesta contra a recente agregação com Sanfins de Ferreira, no âmbito da reforma do poder local. Em Sanfins de Ferreira, sede da nova freguesia, a votação decorre com normalidade.
No concelho de Sintra, as urnas abriram mais tarde em pelo menos duas freguesias. Na aldeia do Penedo (Colares) os protestos eram contra o encerramento de uma estrada, que liga Penedo a Almoçageme, por causa de um muro que ameaça ruir e que é parte integrante de uma quinta. Pouco depois das 7h, dezena e meia de pessoas tentaram bloquear a abertura da assembleia de voto com uma corrente. Entretanto, os elementos da GNR retiraram a corrente. Os moradores mantêm o apelo para que a população não vote, mas as mesas de voto começaram entretanto a funcionar normalmente. "Foi um gesto mais simbólico para chamar a atenção para a necessidade de obras que permitam abrir a estrada", explicou Anabela Almeida, à agência Lusa. A moradora notou que "as crianças da escola da Sarrazola têm de fazer a estrada a pé, apesar do muro ameaçar ruir". "Não temos outro acesso pedonal", lamentou também José Pereira, morador no Penedo, apontando as dezenas de quilómetros que a população é obrigada a fazer para contornar os cerca de 150 metros vedados à circulação.
A directora municipal Ana Queiroz do Vale, que se deslocou ao Penedo já depois da abertura das urnas, garantiu aos moradores que "a câmara vai tomar posse administrativa" da quinta para avançar com as obras, que devem iniciar-se "em Junho".
Também na aldeia de Dona Maria (Almargem do Bispo), no mesmo concelho, a abertura das assembleias de voto atrasou cerca de uma hora. Aqui os protestos eram contra a falta de médicos e o anunciado encerramento da unidade de saúde local, segundo Rui Maximiano, presidente da junta da União de Freguesias de Almargem do Bispo, Pêro Pinheiro e Montelavar. As mesas de voto abriram, mas o autarca notou que "a afluência estava muito fraca".
Em Ponte de Lima, uma urna de voto manteve-se fechada: a de Gemieira, com 561 eleitores.