A honestidade acabou com a sua carreira militar

Como adolescente, Landon Wilson sempre se viu como uma “mulher masculina”. E foi como mulher que se alistou na Marinha. Mas, perante uma confusão de registos pessoais, decidiu assumir-se.

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Yana Paskova/The Washington Post

Parecia ser o pico da sua carreira. Estava a trabalhar no turno da madrugada, dentro de um contraplacado sem janelas no Afeganistão, a monitorizar uma missão das Operações Especiais à medida que esta se desenrolava em tempo real num vídeo com imagens granuladas. Depois de gastar centenas de milhares de dólares a treinar Landon Wilson para interceptar comunicações, as forças militares norte-americanas estavam a capitalizar o seu investimento no jovem marinheiro, olhado como uma estrela em ascensão num campo altamente técnico e crítico. 

Mas pouco depois das duas da manhã do dia 7 de Dezembro, quando um superior lhe tocou nas costas e o chamou lá para fora, um dos segredos mais bem guardados de Wilson começou a revelar-se. “Este registo da Marinha diz feminino, mas este papel diz masculino”, notou a cara séria do sargento, mostrando dois registos pessoais. “Afinal, o que é que és?”
Depois de uma pausa estranha, Wilson, que se alistou na Marinha como mulher mas que há muito se sentia como homem, deu a resposta que desencadearia o fim da sua carreira militar: “Sou um homem.” 

Mais de dois anos depois de ter sido revogada a lei que impedia aos homossexuais e às lésbicas nas forças armadas americanas assumirem-se abertamente, os membros transgénero em serviço podem ser dispensados sem isso ser questionado, resultado de décadas de uma política antiga que remonta a uma era em que a inconformidade de género era vista como doença mental. 

A política, porém, está agora sob escrutínio à medida que membros como Wilson ganham visibilidade. 
Os membros transgénero no serviço militar estão a fazer cada vez mais intervenções cirúrgicas para aproximarem os seus corpos ao género com o qual se identificam. Os peritos médicos, entretanto, estão a insistir com o Departamento de Defesa para que rescindam uma política que eles vêem como discriminatória e ultrapassada, notando que alguns dos mais próximos aliados dos Estados Unidos, incluindo o Canadá, Grã-Bretanha e Austrália, fizeram-no de forma impecável. 

Apesar de a Associação Americana de Psiquiatria ter revisto o seu manual no último ano, especificando que a não conformidade de género “não é, em si própria, uma desordem mental”, o Departamento de Defesa baseia-se em guias que descrevem as pessoas transgénero como sexualmente desviantes. “É uma tragédia horrível aquela que o nosso povo enfrenta no nosso grande país por mais nenhuma razão do que o facto de quererem expressar o seu género”, diz Joycelyn Elders, uma antiga general cirurgiã que no ano passado co-dirigiu um estudo onde se recomendava a suspensão da proibição de ter pessoal militar transgénero. “Não conseguimos encontrar qualquer razão médica credível para que as pessoas transgénero sejam dispensadas ou não admitidas ao serviço.” 

 Um recomeço

Wilson, 24 anos, nasceu em Warner Robins, uma pequena cidade na Georgia Central que girou à volta da base da Força Aérea com o mesmo nome. Filho único educado por mãe solteira, ele lembra o sentimento de lhe ser atribuído o sexo errado muito cedo na infância. “Ei! Sou um rapaz”, lembra-se ele de exclamar à sua mãe aos quatro anos. “A reacção a isso foi tal que, mesmo sendo tão novo, me fez perceber que aquilo não era o que eu era suposto sentir. Por isso, suprimi-o tanto quanto possível.”

Como adolescente, Wilson via-se como uma “mulher masculina”, usando roupa de homem e mantendo o cabelo curto. A carreira militar atraiu-o pela honra que vem com o serviço militar. Mas havia outra força de atracção, uma que os investigadores dizem que explica a razão pela qual a percentagem de pessoas transgénero nas forças armadas americanas é duas vezes superior à percentagem na população civil. “Vai tudo dar à questão da masculinidade”, explica Wilson. Homens que lutam com a tentação de fazer a transição para mulheres disseram aos investigadores que viam a cultura militar como barreira para os afastar desse passo ousado. No cenário contrário, diz Wilson, é um ambiente fácil onde se encaixar. “Mas acho que muita gente olha para as forças armadas como um recomeço.”

Quando se alistou, foi aconselhado a tornar-se técnico de criptologia. Pela estimativa de Wilson, a Marinha gastou pelo menos meio milhão de dólares (cerca de 361 mil euros) para o colocar no patamar mais alto de segurança classificada do Governo e a treiná-lo para um posto nos serviços de inteligência que implicava interceptar e analisar comunicações de governos estrangeiros e extremistas. 

Ele construiu a reputação de ser talentoso, meticuloso, um marinheiro trabalhador, disse Shayne Allen, antigo colega que esteve com Wilson no Comando de Operações de Informação da Marinha no Havai. “Landon era alguém que não se vê habitualmente nas forças armadas por estes dias”, disse Allen. “Ele não preencheu apenas todos os requisitos, como foi para além e acima deles.” 

Durante o período no Havai, Wilson ganhou uma série de medalhas e tributos pelo seu trabalho. Numa unidade com cerca de 10 mil marinheiros, foi reconhecido como o melhor performer do trimestre em 2012 e o marinheiro alistado do trimestre em 2013. Uns meses depois de chegar do Havai, em Maio de 2012, tendo lido extensamente sobre o assunto e tendo-se ligado online a outros que fizeram a transição, Wilson decidiu agir. 

Obteve um diagnóstico formal de distúrbio de identidade de género de um psicólogo, um passo que muitas pessoas transgénero tomam antes de começar a fazer terapia hormonal. Em Novembro, pouco depois de se assumir perante a mãe, Wilson começou a tomar hormonas uma vez por semana — algo que descreve como tenebroso e emocionante.
“Eu conhecia tudo o que estava em cima da mesa, mas ao mesmo tempo valia completamente a pena”, disse. “Foi como respirar pela primeira vez.” Os efeitos foram quase imediatos. As injecções tornaram a sua voz mais grossa e modelaram o seu rosto e a forma do seu corpo. Os músculos e a força cresceram, assim como algum pêlo facial. Porque a terapia desencadeia um processo similar à puberdade, também trouxe acne severo. 

O desenrolar da sua transformação aconteceu quando os homossexuais e lésbicas militares começaram a colher os benefícios da revogação em 2011 da política “don’t ask, don’t tell”, a lei federal que proibia os militares homossexuais de se assumirem publicamente. 

A mudança — que não teve qualquer influência nos membros transgénero do serviço militar — trouxe um pequeno alívio a Wilson, que muitos tomaram por lésbica. Mas ele sentiu também um pouco de rancor. “Sabia que a comunidade gay e lésbica estava a ter todas estas liberdades e privilégios”, disse. “Continuava a existir o T silencioso que era completamente ignorado.”

Apesar de os membros do serviço militar transgénero serem ávidos apoiantes da revogação, os activistas que lideraram esse esforço tiveram o cuidado de não introduzir o pleito das pessoas transgénero no debate. “Houve alguma renitência em discuti-lo de forma oficial com as partes interessadas por medo de complicar a revogação da política ‘don’t ask, don’t tell’”, disse Allyson Robinson, um antigo oficial do exército e activista transgénero. “Havia uma consciência muito clara entre todas as organizações que trabalharam no ‘don’t ask, don’t tell’ que este tema iria continuar sem ser resolvido.” 

Os colegas notaram as mudanças físicas de Wilson mas ninguém parecia importar-se com isso. Ele confessou-o a algumas pessoas no exército no último ano, incluindo Allen. “Eu disse: se não faz mal, não há problema”, explicou o jovem de 20 anos numa entrevista telefónica, descrevendo a sua reacção. “Para mim, sempre foste Wilson, sejas homem ou mulher.”

Essa distinção começou a ficar cada vez mais esbatida no Verão passado, quando Wilson se voluntariou para um serviço de um ano no Afeganistão. Quando ele chegou a um centro de processamento médico da Marinha na Virgínia, foi levado para o quartel masculino e foi-lhe dado uniforme masculino no primeiro dia. Nessa tarde, o pessoal médico notou a papelada a indicar que era uma mulher e ordenou um teste de gravidez, mas inexplicavelmente manteve-o vestido e hospedado como homem. “Eu estava tipo: ‘Bom, isto vai ficar mesmo esquisito quando eles virem alguma coisa’”, lembra-se ele de pensar. 

Parte da irmandade

Mais tarde nesse Verão, quando Wilson chegou à base da Carolina do Sul para um treino de combate, foi novamente levado para o quartel masculino. A papelada de deslocação de Wilson começava a reflectir o género pelo qual todos, a partir daquela altura, assumiram que ele era. E porque o seu nome antigo, que ele mudou desde então legalmente, era andrógino, ninguém lhe perguntou nada. 

O homem que partilhava com ele o espaço onde estavam alojados assumiu que ele era homem. Wilson contou que todas as instalações para tomar banho que ele usou depois de um treino básico incluíram chuveiros privados. As três semanas que ele passou ali foram das mais felizes da sua vida, disse Wilson, enquanto deambulava pelos bosques usando artilharia pesada e transportando armas, sendo apenas mais um dos rapazes. “Senti-me parte da irmandade de que ouvimos falar tantas vezes quando se fala do exército”, disse. “Era uma coisa sem valor.”    

A 16 de Novembro, foi posto a trabalhar horas depois de chegar ao Afeganistão. Durante o turno de 12 horas nocturnas que começavam às 16h, era responsável por interceptar comunicações dos combatentes de forma a guiar as tropas de Operações Especiais em missão. Pela primeira vez, a informação que estava a reunir estava a ser usada imediatamente e a resultar em constantes expressões de gratidão. Sentindo-se indispensável num trabalho crítico, Wilson começou a preocupar-se menos em ser descoberto.  

“Nessa altura, não tinha qualquer preocupação com isso”, disse. “Senti-me confiante em relação à minha capacidade para fazer o meu trabalho e tive esperança de que bastaria que tudo ficasse feito, que isso seria suficiente para ficar.” O segredo foi exposto no final de Novembro quando os comandantes de Wilson no Afeganistão falaram aos seus superiores no Havai de modo a arranjar as coisas para uma promoção que lhe era devida. Os oficiais no Havai usaram pronomes femininos para se referirem a Wilson, enquanto as suas contrapartes em Bagram se referiam a um oficial masculino menor de terceira classe. 

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Mariens no Afeganistão. Landon serviu como técnico de criptologia antes de ser enviado para casa DAVID FURST/AFP

“Os meus superiores no Afeganistão estavam assim: ‘Não faço ideia de quem estão a falar’”, conta Wilson. “Não temos nenhuma mulher com esse sobrenome. Acho que têm a folha errada.” Depois de Wilson se ter confessado, os comandantes no Afeganistão decidiram mandá-lo para casa. Em seis horas, fizeram-lhe as malas e meteram-no no avião. Assim que o sol nasceu nessa manhã, a sua preocupação principal era sobre quem iria ocupar o seu lugar dentro da periclitante célula de informações. “A minha maior preocupação não era ‘eu posso perder a minha carreira’, mas ‘então os tipos no terreno?’”, disse, notando que não havia mais ninguém na base treinado para fazer aquele trabalho. 

No avião em direcção a casa, ele estava rodeado de tropas estafadas da guerra, extasiadas com a ideia de ver os seus entes amados de regresso a casa e de se regalarem com o conforto da vida na América. Wilson não queria mais nada a não ser voltar para a guerra. “Nem tive hipótese de dizer adeus a quem quer que fosse”, disse. “Não faço a mínima ideia do que disseram às pessoas.” 

Quando chegou ao Havai uns dias mais tarde, os seus comandantes promoveram-no. Semanas depois, recebeu uma carta de louvor do vice-almirante Jan Tighe, que supervisionou a sua unidade. Os superiores eram respeitosos e por vezes pareciam pedir desculpa, disse Wilson, que se lembra do major-tenente lhe dizer: “Sabe, estamos a exagerar porque não sabemos o que fazer consigo.”

Depois de semanas de deliberações, um advogado militar ofereceu uma escolha a Wilson: “Ou fazes a transição ou serves”, relata o marinheiro sobre o que lhe disseram. Isso não era uma escolha para Wilson, que logo assinou os seus papéis de dispensa honrada e deixou o Havai. Um porta-voz da Marinha disse que os oficiais no comando de Wilson não queriam ser entrevistados. “O suboficial  Wilson serviu de forma honrosa”, disse o tenente-comandante Chris Servello por email.

Uma porta-voz do Pentágono, a tenente-coronel Cathy Wilkinson, disse que o Departamento de Defesa desconhece quantos membros do serviço militar foram dispensados por serem transgénero. Ela disse que o Pentágono não tem planos para mudar as normas de qualificação médica com base nas mudanças da associação psiquiátrica sobre distúrbios de género, mas sublinhou que as políticas médicas estavam a ser constantemente revistas. 

“Ao fazer estas críticas, o departamento considera que os membros do serviço militar devem servir em ambientes austeros, muitos fazem tratamentos necessários e prolongados relacionados com mudanças de sexo e muitas outras condições indefensáveis”, disse num depoimento por email.

Desde que foi dispensado há um mês, Wilson tem dormido num colchão insuflável no chão do apartamento de um amigo em Manhattan. Tendo o seu certificado de segurança, ele poderia facilmente voltar à mesma linha de trabalho para uma agência de serviços de informação ou até para o Pentágono, como civil. Mas ele anseia por usar de novo o uniforme. “O Exército deu-me a estrutura para a transição, para eu ser quem sou, porque eles dão tanta importância à honra e à coragem e todas essas coisas que temos de ter para sermos autênticos”, disse. “Acho que não teria chegado onde cheguei sem isso.”   

Exclusivo PÚBLICO/ The Washington Post

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