Um fotógrafo com "olhar de puto" viu Portugal mudar
O fotógrafo Alfredo Cunha escolheu, do seu numero espólio, imagens do início da década de 1970 e outras actuais, a formar pares que revelam muito do que mudou e do que permanece
As chamas eram visíveis nas traseiras da casa mas foi a imagem de um automóvel e duas crianças que ficou desse dia de reportagem de Alfredo Cunha para O Século. E ali está muito do que era então a vida num bairro periférico da Lisboa.
Vemos dois miúdos sozinhos na rua, um solitário automóvel com tejadilho preparado para as viagens “à terra”, a manta em crochet a prolongar o conforto doméstico no Opel Kadett familiar. Estava lá tudo, ele viu mas quando recorda diz apenas: “Tinha ido fotografar um incêndio num bairro de barracas e subi a uma casa. Enquanto esperava que limpassem a varanda de trás – havia garrafas de gás e outras coisas – vi este carro e pareceu-me graficamente interessante.”
A imagem actual contrasta, desde logo, em termos gráficos, na sobrecarga que fala de fartura descartável. Ter um carro perdeu o aconchego dos napperons para se banalizar numa utilidade que ocupa espaço vital: “O que vi foi um cemitério de automóveis, organizados como os jazigos, e foi da rua que fiz esta foto, a única porque não me deixaram fazer mais”.
Os dois miúdos são um sinal dos tempos de brincar na rua mas também uma marca do trabalho de Alfredo Cunha. Na maioria das imagens que colhe há crianças, quase sempre em primeiro plano. No outro extremo do ciclo da vida, os mais velhos são presenças insistentes na obra do fotógrafo nascido em 1953 em Celorico da Beira, lisboeta por vocação, minhoto por escolha, neto e filho de fotógrafos.
Crianças e velhos, sim, mas em todos os casos ele mostra-nos gente. Não tem uma imagem sem alguém dentro, uma história que somos convidados a reconstituir. “Não concebo fotos sem pessoas, não sou dado a abstracções. Gosto de formas, de geometria, mas as pessoas é que dão a dimensão a tudo. Para dar uma resposta pomposa, sou um fotógrafo humanista.”
“O meu pai dizia que eu fotografava como um puto e, em alguns aspectos, talvez seja uma abordagem quase infantil. Nunca fotografo crianças como um adulto, de cima para baixo, ponho-me ao nível delas. Os miúdos-ninjas são um bom exemplo.” Aí estão eles, desafiadores, de jeans e ténis, habituados a ver televisão. Quarenta anos antes, a menina a lavar a roupa num tanque, uma barraca em madeira sem água canalizada nem electricidade nem esgotos, os rapazes numa atitude de desinteresse quase adulto, um poster de motos a decorar a entrada.
Como é que ele faz para conseguir que olhem com transparência e sem a aflição que uma câmara costuma impor? “Quando olho para as pessoas e elas olham para mim é que percebo se posso fotografar. É um mistério. Na fotografia tenho a clareza que não tenho na minha vida – eu não sei dizer não e isso complica tudo. Mas na fotografia sei o que posso e o que não posso, e sei que vai correr bem.”
Correr bem, aí está uma expressão impossível quando observamos a miséria da Falagueira em 1973. E lá está uma menina minúscula na construção precária sobre o esgoto a céu aberto. “Estava a fazer uma reportagem e vi de longe a miúda, foi por causa dela que tirei esta fotografia”.
E a fazer par com este perigo impensável escolheu a imagem das jovens na praia da Figueira da Foz, felizes ao sol. O gigante em betão à beira-mar é outra forma desordenada e destrutiva de construir cidades. “A loucura urbanística vai tomando novas formas”, diz ele.
Será preciso explicar a dupla das manifestações e o critério que levou a seleccioná-la? É óbvio o peso da presença dos sobreviventes do campo de concentração do Tarrafal, o da “Morte Lenta”, em comparação com a leveza da frase simples e directa do munícipe de Guimarães a protestar contra o aumento da taxa de saneamento em frente à câmara.
Das manifestações políticas passamos para a juventude a festejar a música. Um músico de longos cabelos soltos a actuar num pavilhão, a assistência rigorosamente deixada à distância, nas bancadas. É um festival de rock no pavilhão da Académica da Amadora, colectividade de grandes tradições fundada em 1942. “Juntavam-se ali a actuar grupos da Cova da Piedade, da Amadora, do Cacém, dos Olivais, malta da pesada, freaks da Grande Lisboa”, recorda Alfredo Cunha.
Já em Paredes de Coura, neste caso em 2013, jovens vindos de todo o país misturam-se com os estudantes da Universidade do Minho, fundada pelo Ministério de Veiga Simão em 1973 mas que só começou a funcionar dois anos mais tarde.
São corpos felizes, estes do Minho.
Descemos na idade escolar e aqui está um quadro típico, de uma reportagem feita com a jornalista Maria Antónia Palla no Bairro Alto, em Lisboa, bem perto da redacção d’ O Século – jornal que encerrou em Fevereiro de 1977, a três anos de cumprir o centenário. A imagem foi feita poucos dias antes do 25 de Abril, e pode imaginar-se que a foto de Américo Tomás não se manteve naquela parede por muito tempo. O miúdo tem na mão a pasta de pôr às costas, antepassada das mochilas. Ao lado, os meninos de hoje com skates, latas de bebidas, uma explosão de graffitti.
“Se a classe operária tudo produz, a ela tudo pertence”, escreveu na parede de uma tipografia da Graça, em Lisboa, o rapaz das calças boca-de-sino e tacões altos, uma declaração tão definitiva como os traços no chão. Sem palavras, um homem de bengala passa pelo cartaz publicitário de lingerie. Simples, dirá Alfredo Cunha: “Eu ia a passar e vi, fotografei”. É mesmo assim, esta doença dos fotógrafos que têm sempre a máquina à mão e os olhos abertos à próxima imagem – óbvia, irrecusável mas invisível para os outros.
Quase ficamos sem palavras diante do desconsolo de ver esta criança descalça de sorriso triste, ao abandono no Hospital do Rego (hoje Curry Cabral), sem a companhia de adultos. Esta reportagem, de 1973, foi cortada pela censura. Quando olhamos as crianças com deficiência no reconforto da piscina de Vila Verde, percebemos que quarenta anos são um mundo de diferenças.
Mas o que terá mudado para os pastores da serra da Estrela? Ambos do concelho de Celorico da Beira, nas andanças de conduzir rebanhos por montes e vales, revelam o muito que permanece, na vida destes dois homens e também no olhar do fotógrafo.
O que mudou na indústria, isso sim: a grande metalúrgica Cometna da Amadora com o seu aguerrido operariado, ambos meticulosamente desmantelados, e agora a Cutipol, em Guimarães, “onde são feitos os melhores talheres do mundo e a aprendizagem pode demorar doze anos”, diz o novo minhoto com orgulho.
“Esta fotografia dentro de um comboio parado no Rossio sintetiza aquilo que é, quase sempre, a estrutura dos meus livros, ”, explica Alfredo Cunha. “O princípio e o fim: a criança toda desperta, a olhar pela janela, e ao lado a mulher que parece olhar para dentro. Ia a passar e foi isso que vi, o ciclo da vida.”
A imagem ao lado é feita de linhas modernas, uma escolha gráfica de linhas de fuga com um aerodinâmico Alfa-Pendular e uma sombra comprida paralela ao cais.
As fardas dão a diferença, nestas fotos em que vemos primeiro a GNR com capotes e botas com polainitos, vigiando o movimento da Feira do Queijo de Celorico da Beira, e depois o Corpo de Intervenção a policiar uma acção de despejo no Bairro de S. João de Deus, no Porto.
Chegamos ao talho de Benfica, Lisboa, e ao trabalho infantil que ao longo de tanto tempo substituiu – impediu – a escolarização. “Se és amigo, não me peças fiado”, diz o cartaz por cima da bancada em madeira ondulada pelo uso. É uma criança, sim, e era nisto que passava os dias, em recados e carregos, a aprender o ofício e com pouco tempo para brincadeiras. Ao lado, de costas, um jovem do Centro Juvenil de Campanhã, a última linha institucional onde os jovens que não conseguiram chegar à adopção esperam a maioridade.
E aqui estão dois retratos de jovens, uma linha de trabalho que Alfredo Cunha tem intensificado nos últimos anos. O primeiro é “o meu amigo Bartolomeu, o Bart”, companheiro dos tempos da juventude em Benfica, cabelos compridos e gola alta, amigo de sempre. E um jovem de gorro e piercing no festival de Paredes de Coura de 2012.
A terminar, duas pinturas de significado político. A do MRPP é simples, e é sabido que este partido assinou dos melhores e mais exuberantes murais dos anos da revolução. As crianças não ligam ao lixo acumulado na rua de passeio estreito nem ao símbolo que começa a perder a cor.
Mas a história do segundo tem mais que se lhe diga. Alfredo Cunha viu reportagens cortadas pela censura antes de Abril de 1974, como a do Hospital do Rego. Mas em 2014 a “censura” reaparece no facebook: a acusação é de “violência gráfica” e a origem é difusa. Qualquer utilizador pode levantar a questão e tentar a proibição. O mural com Passos Coelho incomodou alguém que tentou apagá-lo, e o mesmo aconteceu com o cartaz divertido da manifestação de Guimarães. Em ambos os casos sem eficácia.
“Não sou panfletário nem revelo falta de respeito, e sei que hoje tenho menos lata, sou mais cuidadoso”, diz o fotógrafo que não perdeu o prazer de fotografar. “Quando era miúdo, andava sempre com uma Rolleiflex do meu pai. Mas para mim nessa altura a fotografia significava trabalho, não tinha fins-de-semana nem férias, e eu queria andar na vadiagem. Não gostava de andar com ele nas reportagens de casamentos e depois fechado no laboratório, mas aprendi a base técnica que tornou natural o momento de fotografar.”