Portugal 1974-1976: o nascimento de uma democracia
No dia em que é inaugurada, na Assembleia da República, a exposição O nascimento de uma democracia, o PÚBLICO antecipa o texto que fundamenta a exposição, adaptado pelo seu autor, José Pacheco Pereira.
2. Nos 40 anos do 25 de Abril de 1974, muitas das comemorações vão centrar-se no que aconteceu nesse dia. As interpretações variam: golpe de Estado, revolução, golpe de Estado seguido de uma revolução, etc. Mas uma coisa é incontroversa: no dia 25 de Abril começou a nascer uma democracia e ela apenas foi possível pelo que aconteceu nesse dia. O que aconteceu em 25 de Abril com a ação do MFA foi de facto o “dia lustral”. O dia do começo. Mas, a partir desse dia, o nascimento de uma democracia fez-se na sociedade e com a sociedade, com os portugueses. Como se passa em todas as democracias, foi um processo essencialmente civil, e numa democracia que nasceu de uma ação militar, foram os civis que se revelaram fundamentais para a sua construção.
3. Como se retrata o nascimento de uma democracia? Em primeiro lugar, pela diferença em relação ao que havia. Pelo tempo de acabar, da PIDE, da Censura, da União Nacional, da ditadura. Depois, e esse é um dos objetivos desta exposição, começar, mostrar como se começa: o direito e o exercício de vir à rua manifestar-se, o direito e o exercício de organizar-se, a passagem à legalidade dos partidos clandestinos e a génese de novos partidos, o direito de falar e escrever livremente, o direito de votar em liberdade e escolher quem nos representa e quem nos governa. A democracia faz-se com política em liberdade, instituições e representação com génese eleitoral, partidos, participação cívica numa miríade de organizações, discurso público e propaganda política. No nascimento da nossa democracia, os sinais da sua pujança revelaram-se em todos estes símbolos, com uma nova iconografia, paisagem sonora e visual: cartazes, autocolantes, emblemas, faixas, panfletos, brochuras e livros, fotografias, imagens, filmes e sons. O objetivo desta exposição é mostrar o rastro que no nosso olhar ficou desses tempos. Privilegia o que nos envolve, imagens e sons, valoriza o retorno ao passado pela recriação da sua paisagem.
4. A democracia significou direitos. Nenhum destes direitos foi concedido, todos foram conquistados. Foi um processo difícil, caótico, com avanços e recuos, que durou muito mais do que alguns anos. Em bom rigor, é um processo que continua em curso. Todos os dias. Não foi um nascimento fácil, nem o poderia ser, devido à longa duração da ditadura, ímpar na história da Europa ocidental. Não o podia ser também no meio de uma guerra colonial ativa, com três frentes distintas em África. Mas foi nessa turbulência que tudo começou, marcada pelos eventos, quer em Portugal, quer nas colónias, pela vontade muitas vezes contraditória dos seus fundadores, pelo “ruído” inerente à democracia, dos conflitos culturais, sociais e políticos. Aliás, o primeiro sinal de que Portugal estava a mudar foi exatamente o facto de podermos, pela primeira vez, ouvir sem censura, nem polícia política, nem partido único, e acima de tudo sem medo, esse “ruído” sem o qual não há democracia.
5. Na elaboração desta exposição não se partiu do presente para o passado, nem se projetou sobre o passado qualquer interpretação programática sobre o que neste período foi “bom” ou “mau” para a génese da nossa democracia. Há interpretação que se revela na própria escolha de tratar o aniversário do 25 de Abril não a partir dos eventos nesse dia, mas da génese do regime democrático, cuja casa primordial é o local onde se realiza a exposição, o Parlamento. No entanto, tentou evitar-se uma seleção de eventos, rostos e sinais, que chegaram aos nossos dias como os “politicamente corretos”. A história foi o que aconteceu e não o que muitos dos seus atores queriam que acontecesse, e o que aconteceu foi que Portugal vive em democracia nos últimos 40 anos.
6. Quando olhamos para os atores desses anos de génese, em que há quem tivesse lutado pela democracia e quem desejasse outras formas de poder não democráticas, vemos bem, pelas biografias a posteriori de todos, o enorme poder de “normalização” que teve a democracia portuguesa. Não foi perfeito, nada é perfeito nos negócios humanos, mas foi muito eficaz. A democracia impôs-se em termos racionais, éticos e afetivos na vida de todos e tornou-os parte dela, deixando de haver “democratas imperfeitos” ou “não democratas”, e atirando para as trevas exteriores quem continua a combatê-la. Quarenta anos depois, mesmo para esses, a democracia venceu. Não sabemos como vai ser no futuro, mas sabemos que foi assim neste passado que nos é ainda íntimo, dos 40 anos depois do 25 de Abril.
7. A nossa democracia conheceu uma primeira fase de moldagem com os processos eleitorais de 1975 e 1976, que nos deram a Assembleia Constituinte, a primeira Assembleia legislativa, as eleições autárquicas e presidenciais. A essa moldagem soma-se a ação dos governos provisórios, ainda num período de transição política, que foi também fundamental para criar práticas de governação que depois se institucionalizaram nos governos constitucionais. De novo, convém lembrar que nenhum dos atores deste período, fossem políticos vindos da oposição, fossem políticos gerados pela democracia, fossem militares, fossem profissionais liberais, estudantes, padres, operários, trabalhadores rurais, empregados, funcionários, revolucionários e conservadores, agitadores e institucionalistas, nenhum tinha qualquer experiência de fazer política em liberdade, porque entre 1926 e o 25 de Abril de 1974 não houvera um dia de liberdade. Governar era uma experiência nova.
8. Usou-se o ano de 1976 como termo, sendo só excecionalmente utilizados materiais de data posterior, mas sem com isso significar que a consolidação da nossa democracia tivesse sido adquirida nessa data. Bem pelo contrário, o acolhimento pacífico dos “retornados”, o acesso ao governo por eleições de partidos representando posições políticas muito distintas, as sucessivas revisões constitucionais, o fim da tutela do MFA, a entrada na União Europeia, profundas mudanças no enquadramento legal da economia e da sociedade, a possibilidade de haver governos de coligação e de maioria absoluta, a consolidação do poder local, a construção de autonomias regionais, tudo foram passos na estabilização da democracia.
9. Nem tudo correu bem, nem tudo corre bem. A prevalência de fenómenos de corrupção deslegitima a imagem do poder político, o crescimento da partidocracia, a ineficácia no combate às desigualdades e à pobreza, as fragilidades da nossa independência financeira, um alarmante divórcio entre os portugueses e a sua representação política são sinais de que nenhuma democracia pode ser considerada adquirida sem um contínuo esforço com uma dimensão política, mas também cultural, económica e social. A democracia não é um regime “natural”, não existe inscrito na natureza das coisas, mas é uma escolha cultural, no sentido lato, que só sobrevive quando os homens e mulheres que fizeram essa escolha não duvidam dela e estão dispostos a defendê-la. Olhando os anos de génese da nossa democracia, é muito nítido que é assim, quer para estes anos de brasa, quer para os dias de hoje.
10. A democracia portuguesa é de génese revolucionária e não admira que a “rua” tenha tido um papel decisivo. Na exposição é nítido esse papel, como palco de manifestações, protestos, incidentes, golpes e contragolpes. Logo no próprio dia do 25 de Abril, milhares de portugueses desceram à rua e definiram o sentido de uma revolução, tornando a ação dos militares em algo mais do que um golpe de Estado corporativo. Tal seria sempre uma impossibilidade nos seus termos, como, aliás, os mais clarividentes dos “capitães de abril” sabiam e desejavam. Depois, indo à “rua” com liberdade, não mais de lá saíram, em múltiplas encarnações a favor de tudo e contra tudo, fazendo a democracia, ou mesmo tentando evitá-la. As imagens de manifestações que podem ser vistas na exposição incluem esse mundo contraditório, desde as grandes manifestações iniciais do 1.º de Maio, passando pelo “cerco” à Assembleia, pelas manifestações pela liberdade de informação ou pelas lutas laborais e camponesas.
11. Dessa “rua” saía uma nuvem de mensagens contraditórias, mas irmanadas pela liberdade de poderem ser ditas. Parte da cacofonia destes tempos encontra-se retratada em múltiplas palavras de ordem, frases e falsos slogans irónicos, que preenchem um painel da exposição e que também aparecem na “paisagem” sonora que a acompanha. Pretendeu-se dar deste tempo a mesma visão que revelam as fotografias e os cartazes, um emaranhado de vozes, sérias e menos sérias, puras asneiras e apelos dramáticos, falando ao mesmo tempo, dizendo coisas muito diferentes, com nexo e sem nexo, até porque tinham passado 48 anos sem poderem falar com liberdade. Pode considerar-se que o “abaixo a guerra colonial” é infinitamente mais sério do que a “promoção imediata do leitão a porco” ou o “nem mais um anticiclone para os Açores”, mas o que une estas frases é sublinharem a mesma vontade de liberdade e de fim da opressão e um antiautoritarismo que tinha força porque a canga tinha sido pesada.
12. Este aspeto de “explosão” icónica, sonora, verbal, na qual está presente uma nova força vital de Portugal e dos portugueses, é um dos que pode dar aos visitantes do presente, que não viveram este tempo, essa alegria da liberdade que, felizmente para eles, pela sua juventude, não podem contrastar com a vil tristeza claustrofóbica de um regime de violência institucionalizada.
13. Quando olhamos para trás, como se víssemos aquele “país estrangeiro” que é o passado, por estranho que tal possa parecer, percebemos como a nossa democracia nasceu nos anos a que chamamos, muitas vezes pejorativamente, de “processo revolucionário em curso”, o “prec”, um momento em que muitos não a desejavam, mas em que outros lutaram por ela com imenso risco. Não foi um processo linear, higiénico, “limpo”, deixando para trás o “dia lustral”, mas seria da ordem dos milagres se o fosse. Não foi um processo sem custos, enormes custos, a começar pelos custos em vidas humanas ocorrido nas antigas colónias portuguesas, onde deixamos como herança conflitos e guerras, com o pano de fundo de uma longa guerra colonial, de um colonialismo tardio e mergulhado na violência e de uma descolonização feita sem instrumentos de poder militar para ser controlada. Tudo isto pode “explicar”, mas não lhe tira a dimensão trágica. Uma ideia benévola do 25 de Abril esquece muitas vezes esta dimensão trágica dos eventos que desencadeou.
14. Tratando-se do nascimento de uma democracia, é normal que cada vez menos apareçam nas suas imagens militares, e cada vez haja mais civis. A dívida que todos temos aos homens que fizeram o 25 de Abril, que ninguém pretende nem minimizar, nem ignorar, nem esconder, é uma coisa de natureza diferente do processo de construção de uma democracia em que o retorno dos militares aos quartéis, o apagamento progressivo da sua dimensão como agentes da “revolução”, é fundamental. Também não foi um processo simples e isento de avanços e recuos.
15. Numa parte que será provavelmente a mais controversa da exposição, escolhemos 200 rostos daquilo que hoje chamaríamos, por influência crescente do marketing, os “protagonistas” desse nascimento de uma democracia. De novo, não fizemos qualquer julgamento a posteriori sobre o seu papel nestes anos, sobre os méritos ou deméritos da sua ação no futuro. Sabemos apenas que, nestes anos da génese, todos foram “parte” do processo, todos estiveram lá. Nem todos foram importantes no futuro, mas todos a seu modo foram importantes no presente que durou de 1974 a 1976. Estão lá, nas fotografias e na ação, criando partidos políticos, organizando e intervindo, manifestando-se, planeando resistências e reações, golpes e contragolpes, violências e tolerâncias.
16. Estão presentes entre esses rostos lutadores quase tolstoianos pela democracia e opositores violentos da democracia, gente que matou e que foi morta, gente que lutou nas ruas pela liberdade e gente que desejava que não houvesse democracia “parlamentar”, ou seja, que não houvesse democracia. Pode parecer estranho que todos apareçam no mesmo painel, mas o tempo juntá-los-á numa mesma história, mesmo que lhes dê papéis diferentes. No entanto, no início e no fim desses 200 rostos, há dois grupos de anónimos: alguns militares do 25 de Abril, sem patente nem protagonismo, e alguns civis nas manifestações de risco desse mesmo dia, também sem nome e sem fama. Sabemos que foi deles que veio a força vital que transformou uma ditadura numa democracia.