As televisões russas são a vanguarda da guerra
Perante a instabilidade na Ucrânia, os media russos têm feito passar a mensagem do Kremlin, para consumo interno e externo.
Uma das armas mais poderosas é o canal internacional de informação RT (Russia Today), uma espécie de “anti-CNN”, como descreveu a revista alemã Der Spiegel, num artigo de Agosto. A RT aposta numa imagem jovem e moderna – a maioria dos editores tem menos de 30 anos e é fluente em inglês – e já é um dos canais de informação mais vistos no Ocidente, com edições em inglês, espanhol e árabe. Em várias cidades norte-americanas tornou-se no canal de informação estrangeiro mais visto, segundo a Spiegel, e em Junho tornou-se na primeira estação a conseguir mais de mil milhões de visualizações no You Tube. Mas o grande golpe foi dado durante o Verão de 2013, quando o lendário apresentador norte-americano Larry King trocou a CNN pelo canal russo.
Por trás do sucesso da RT está a canalização quase ininterrupta de fundos do Kremlin. Desde 2005 que o orçamento do canal passou de 30 milhões de dólares (22,6 milhões de euros) para 300 milhões, que financiam uma folha salarial de 2500 trabalhadores.
A procura da RT de explicações alternativas, em contraponto à narrativa dominante dos media ocidentais, tem conseguido captar os telespectadores mais críticos dessa mesma abordagem. Contudo, a cobertura da crise ucraniana, e sobretudo da intervenção russa na Crimeia, tem suscitado críticas mesmo dentro do próprio canal.
Na semana passada, a pivô Liz Wahl apresentou em directo a sua demissão por discordar da linha que o canal tem seguido em relação à Ucrânia. Fixando-se na câmara, a pivô fez a crítica: “Sou uma americana orgulhosa, que acredita na divulgação da verdade, e é por isso que, após este telejornal, peço demissão.” Dias antes, já a jornalista Abby Martin havia denunciado a acção da Rússia na Crimeia enquanto estava no ar. O canal classificou a atitude de Wahl como “nada mais que uma manobra autopromocional”, mas o mal-estar deixa transparecer que a propaganda do Kremlin talvez tenha atingido um novo auge.
Tudo mudou após Sochi
Durante os Jogos Olímpicos de Sochi, entre 6 e 23 de Fevereiro, pouca atenção foi dada pela imprensa russa aos acontecimentos no país vizinho, como nota a investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Maria Raquel Freire, contactada pelo PÚBLICO. A mudança deu-se “a partir de 21 de Fevereiro em termos de cobertura alargada dos eventos na Ucrânia”, observa.
Foi por estes dias que Kiev conheceu os confrontos mais violentos entre os manifestantes e as forças policiais e em que morreram dezenas de pessoas. Num espaço de alguns dias, Ianukovich abandonou o país e o poder foi ocupado pelos opositores que lideraram os protestos.
Perante a perda do seu homem forte em Kiev, o Kremlin apressou-se a delinear uma narrativa, sublinhando a ilegitimidade do novo poder. A gota de água foi a revogação da lei que conferia ao russo o estatuto de língua oficial nas regiões com populações russófonas consideráveis, apesar de o Parlamento ucraniano já ter entretanto recuado .
O caminho estava aberto para a máquina propagandista do Kremlin entrar em acção. Numa primeira fase, foram levantadas dúvidas quanto à legitimidade dos novos dirigentes, apelidados de “extremistas” e neonazis, onde até estariam incluídos separatistas do Cáucaso do Norte, e a insistência de que Ianukovich continuava a ser o Presidente em funções.
O discurso foi mudando: da ênfase em relação à ingerência ocidental na revolução ucraniana, o foco passou para o “reconhecimento da presença russa em território da Crimeia”, explica Raquel Freire. Uma das questões mais sublinhadas é a afirmação recorrente de que os comandos militares pró-russos na Crimeia nada têm a ver com o exército russo. A jornalista especializada na Europa de Leste Anne Applebaum considera “ridícula” a descrição de “tropas russas que entraram na Crimeia com uniformes não identificados como ‘forças de autodefesa’”.
A “protecção” russa da Crimeia tem sido justificada pelos perigos que a comunidade russófona enfrenta após a queda de Viktor Ianukovich. Mas não foi identificado nenhum caso concreto de agressão. O papel dos órgãos de comunicação alinhados com Moscovo tem sido, portanto, o de “criar a percepção maciça de que isso pode acontecer e se deve evitar”, nota Carmen Claudín, investigadora do think-tank espanhol CIDOB, num artigo de opinião no El País.
Factor Kiselev
A 2 de Março, um dia depois de Putin ter obtido a autorização do Parlamento russo para intervir na Ucrânia, no programa Vesti Nedeli (Notícias da Semana), do canal público Rossiya 1, o pivô Dmitri Kiselev criticava os “excessos dos bandidos” que tomaram o poder em Kiev. À frente da imagem de uma multidão que empunhava bandeiras russas e onde se lia “Não desistimos dos nossos”, Kiselev afirmava ser “impossível não responder a este desafio”.
Kiselev tem estado na linha da frente da contra-informação russa sobre os protestos de Kiev. Descreveu, por exemplo, o acordo de associação entre a União Europeia e a Ucrânia como uma conspiração orquestrada pelos inimigos históricos da Rússia: a Polónia, a Suécia e a Lituânia, que diz quererem vingar-se pela derrota frente ao Império Russo na Batalha de Poltava, em 1709. O bom trabalho de Kiselev durante a cobertura dos protestos valeu-lhe a chefia do canal RT.
A coincidência entre a posição que tem sido defendida pelo Kremlin e a mensagem veiculada pelos media russos é evidente. Putin tem necessidade de ver uma possível intervenção na Ucrânia legitimada, dentro e fora de portas. Por um lado, Moscovo “tem de acautelar que uma situação de contestação social ao sistema não se concretize no seio da própria Rússia”, afirma a docente da UC. Por outro, o “exercício de legitimação internacional é fundamental para a Rússia neste momento”.