“Não podemos ficar reféns do tráfico de droga sem pensarmos na nossa juventude em Cabo Verde”

A ministra da Administração Interna cabo-verdiana, Marisa Morais, está na frente do combate ao tráfico de cocaína que aumentou muito na última década e levou a hábitos de consumo antes inexistentes em Cabo Verde e noutros PALOP.

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"Cabo Verde é um país recente, em desenvolvimento, confrontado com uma criminalidade que é reflexo do tráfico", diz Marisa Morais Rui Gaudêncio

A missão é combater os vários tráficos e a lavagem de capitais neste pequeno país de 490 mil habitantes posicionado na “rota por excelência” do Atlântico. De passagem por Lisboa, falou ao PÚBLICO desse combate e de uma droga – a cocaína – que está a transformar a vida – e as leis – do arquipélago.

Quando soou o primeiro alarme do tráfico de droga em Cabo Verde?
O país é afectado pelas vulnerabilidades da zona da África do Oeste onde está inserido e a primeira grande apreensão em Cabo Verde foi em 1989. Mas foi a partir de 2005, que a ONUDC [Gabinete das Nações Unidas para a Droga e o Crime] começou a dizer que a África estava ‘a saque’. Tem a ver com essa ideia de que a África está sob fogo, não só do tráfico de droga no sentido Sul para Norte, da América Latina para a Europa, mas do tráfico de armas, de pessoas, de imigrantes.

Essa continua a ser a realidade?
Necessariamente. O consumo de cocaína – nos países de consumo na Europa – continua a ter uma expressão relevante e não há sinais de estar a diminuir. Por isso, esta é também uma luta em forte cooperação com os Estados europeus. A própria África do Oeste já tem um plano para reduzir essa incidência, com consequências nos países.

Quais as consequências em Cabo Verde?
Cabo Verde é um país recente, em desenvolvimento, confrontado com uma criminalidade que é reflexo do tráfico. Para além do grande tráfico em si, ficam quantidades [de droga] em Cabo Verde. Não há um mercado de consumo por excelência mas naturalmente onde há tráfico, fica droga e isso gerou um novo tipo de criminalidade a que não estávamos habituados, directamente relacionada com o consumo de drogas, como os pequenos furtos.

E há a criminalidade relacionada com o tráfico interno.
Sim. Tivemos situações de homicídios relacionados com o grande tráfico de droga. É preocupante para Cabo Verde. O esforço que tem sido feito de combate ao tráfico de droga e à lavagem de capitais está directamente relacionado com as consequências no próprio país, que é extremamente jovem.

A cocaína chega por via aérea ou via marítima e depois sai, em pequenas quantidades, para a Europa, em voos comerciais?
Não só. Muitas vezes, nem sequer há uma paragem em Cabo Verde. Há uma rota marítima, não só por iates mas também por barcos relacionados com a marinha mercante. A saída aérea é muito mais complicada, mais perigosa e muito mais lenta. A cocaína vem da América Latina, entra na Europa, principalmente através de Inglaterra e Espanha. É a rota por excelência, a melhor do Atlântico. E isso comporta vantagens para Cabo Verde – que nos permitem desenvolver o turismo de cruzeiro – mas tem também a outra face da moeda.

Qual a rota e a origem das armas?
Cabo Verde não é um local de passagem do grande tráfico de armas mas a nossa posição torna-nos vulneráveis à circulação das armas. Os nossos emigrantes nos Estados Unidos, por exemplo, trazem-nas em bidons. São armas ligeiras e chegam em pequena quantidade. Estimamos em 6000 o número de armas ligeiras ilegais, que antes quase não existiam no país.

Os traficantes podem contornar os meios de controlo instalados e entrar em ilhas sem vigilância como fazem em zonas da Guiné-Bissau ou em ilhas do arquipélago guineense dos Bijagós?
Seria difícil, porque em Cabo Verde já temos condições de vigilância aérea. Do ponto de vista marítimo, há uma maior fragilidade: por vezes, são interceptados iates com quantidades significativas de cocaína.

O facto de ter sido Cabo Verde a acolher recentemente a 1ª Conferência Internacional sobre Políticas de Droga nos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) é revelador dessa atenção dada ao assunto?
A organização dessa conferência [pelo Ministério da Justiça] mostra o engajamento do país e a consciência de que não é apenas através do combate ao narcotráfico que o problema será resolvido. Há que reflectir sobre as políticas relacionadas com o consumo. Não só em Cabo Verde. Temos de ter uma perspectiva global.

Mas o grande problema destas rotas não é o consumo na Europa?
Sim, mas os PALOP também têm de se preocupar com o consumo. Não podemos ficar reféns do tráfico sem nos preocuparmos com as medidas que visam proteger a nossa própria juventude. Tem aumentado o consumo nos PALOP em geral. E em Cabo Verde, a população é extremamente jovem. Mais de metade da população tem menos de 24 anos. Temos de definir medidas preventivas que evitem o consumo precoce por parte da nossa juventude. Não nos podemos focar apenas no tráfico.

Quando começaram os jovens de Cabo Verde a consumir cocaína?
Nesta última década. Mais ainda nos últimos anos, porque as coisas vão em crescendo. A nossa primeira comunidade de tratamento de toxicodependentes data de 2004. Neste momento, continua a existir apenas essa, que serve todas as ilhas. No entanto, existem núcleos em todos os concelhos. Os casos de internamento são os mais dramáticos, mas há também tratamento ambulatório, com capacidade em todos os concelhos. É um fenómeno recente. Não terá números dramáticos nem preocupantes, mas se não tomarmos as medidas neste momento poderemos ter um problema grave daqui a 10 anos.

O consumo foi largamente tratado nesta conferência. A Guiné-Bissau estava representada?
A Guiné-Bissau não fez parte da conferência em si, mas havia representantes da sociedade civil.

É um sinal de desinteresse?
Guiné-Bissau e Cabo Verde são dois países com semelhanças, mas que terão também neste momento algumas diferenças, e diferenças nas prioridades.

O aumento do tráfico na Guiné-Bissau, nos últimos anos, teve repercussões em Cabo Verde?
Não há que estigmatizar a Guiné-Bissau ou Cabo Verde. Esta é uma luta regional. Temos toda uma faixa e existem rotas também terrestres. É toda uma região que trava uma batalha contra o tráfico de droga. Nalguns países, temos vulnerabilidades decorrentes da grande extensão de fronteiras terrestres, pouco vigiadas. Noutros, temos fragilidades resultantes dos conflitos internos no país. As redes de narcotráfico procuram explorar as fragilidades de cada país. Cabo Verde tem as suas fragilidades, a Guiné-Bissau terá outras, o Mali outras ainda. Cada país terá a sua forma de intervenção. Esta é uma luta que Cabo Verde tem levado muito a sério. Tem empenhado recursos próprios. Não se trata apenas de cooperação internacional mas de recursos próprios do país que são colocados. Quando se fazem julgamentos de grande envergadura, falamos de vários milhões de contos [cabo-verdianos] apreendidos a favor do Estado. Temos uma legislação em que se procura, com esses recursos, reforçar a capacidade das forças policiais, dos tribunais e as questões relacionadas com as vítimas da violência relacionada com o narcotráfico, a criminalidade ou da violência baseada no género.

Como vê o risco de estas rotas serem utilizadas para financiar o terrorismo?
As rotas são de facto utilizadas para diversos tipos de ilícitos. Existe esta preocupação.

Cabo Verde está na rota de ilícitos que financiam o terrorismo?
Eventualmente. Não podemos afirmá-lo com certeza a não ser quando se detectam essas ligações financeiras.

Já aconteceu?
Das investigações [ao tráfico de droga] que realizámos até agora, e dos grandes julgamentos que foram feitos em Cabo Verde, não há condições para se fazerem relacionamentos directos. Mas é uma preocupação. Podemos ver o que aconteceu no Mali e, a partir daí, tirar algumas ilações. Sabe-se, e isso diz a ONUDC, que o narcotráfico alimentará o próprio financiamento do terrorismo. Daí todo o esforço que tem sido feito para dar segurança a todo o sistema financeiro e luta efectiva a essa lavagem de capitais. Há cuidados, não só por parte de Cabo Verde, não só por países da nossa zona. É algo global, que exige medidas de controlo, não só regionais, mas a nível mundial.
 

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