Cannabis ultrapassa heroína nos novos tratamentos por toxicodependência
Relatório anual de 2012 A Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependências, foi apresentado esta terça-feira na Assembleia da República pelo presidente do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), João Goulão.
Ao todo, 84% dos casos tratados no ano passado em ambulatório ainda se deviam ao consumo de heroína, porque incluem as recaídas e as pessoas que já estavam em tratamento. Mas se olharmos apenas para as novas pessoas que nesse ano recorreram aos serviços, esta droga foi referida em 34% dos casos, quando a cannabis foi apontada em 38%.
Os dados fazem parte do relatório anual de 2012 A Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependências, apresentado nesta terça-feira na Assembleia da República pelo presidente do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), João Goulão.
Em declarações ao PÚBLICO, o também coordenador nacional para os Problemas da Droga, das Toxicodependências e do Uso Nocivo do Álcool, reconheceu que “a cannabis tem cada vez mais peso no consumo em Portugal”, referindo que esta inversão pode ser vista de duas formas: “por um lado estamos a chegar cada vez mais precocemente às pessoas antes de partirem para o consumo de outras drogas e por outro nos serviços elas são levadas a reflectir que o papel da cannabis nas suas vidas não é tão inócuo assim”. Porém, há também mais utentes a referirem a cocaína como droga principal – o que é um sinal preocupante.
Em linhas gerais, o relatório indica que em 2012 no ambulatório da rede pública estiveram em tratamento mais de 29 mil utentes, 4000 dos quais readmitidos e 2000 novos. “Também as prevalências de consumo de drogas na população portuguesa residente em Portugal diminuíram entre 2007 e 2012, tanto na população total (15-64 anos) como na jovem adulta (15-34 anos). Apesar destes resultados encorajadores, surgem neste final de ciclo estratégico algumas tendências preocupantes, designadamente a nível das prevalências e padrões de consumo em segmentos populacionais específicos, como o grupo feminino e os jovens em geral, que colocam novos desafios para o futuro”, lê-se no documento.
A descida da prevalência do consumo ao longo da vida foi de 12% para 9,5%, a do consumo recente foi de 3,7% para 2,7% e a de continuidade de consumos passou de 31% para 28%.
João Goulão, que preside também ao conselho de administração do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, reconhece que “apesar de se ter conseguido reduzir o consumo ao longo da vida e nos últimos 12 meses” é preciso desenvolver programas específicos junto das mulheres e na população escolar, onde tem aumentado o consumo de cannabis. “Temos de inverter a baixa percepção de risco que há em relação a esta droga”, disse, mas negou que seja possível estabelecer um nexo de causalidade com a crise em termos destas alterações “embora o tenhamos de ponderar nas análises futuras”.
Mortes por overdose aumentam
Outro dado salientado no relatório diz respeito ao aumento da mortalidade relacionada com o consumo de drogas. Depois da subida entre 2006 e 2009 ter sido invertida em 2010 e 2011, no ano passado foram registadas 13 mortes de acordo com os critérios da Lista Sucinta Europeia e 16 de acordo com os critérios do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência.
Já os registos do Instituto Nacional de Medicina Legal indicam 187 autópsias em 2012 com a presença de substância ilícitas, sendo que em 16% dos casos (29) na informação sobre a causa da morte consta overdose – o que representa um aumento em relação a 2011 (com 19 mortes por overdose).
“Quanto às substâncias detectadas nestas overdoses, é de destacar a presença de cocaína em 52% dos casos, seguindo-se-lhe os opiáceos, (48%) e a metadona (31%). Na maioria (76%) destas overdoses foram detectadas mais do que uma substância, sendo de destacar em associação com as drogas ilícitas, a presença de álcool (38%) e de benzodiazepinas (28%). Em relação às outras causas das mortes com a presença de pelo menos uma substância ilícita ou seu metabolito, os 158 casos foram maioritariamente atribuídos a acidentes (45%), seguindo-se-lhes a morte natural (25%), suicídio (15%) e homicídio (11%)”, diz o relatório.
A este propósito, João Goulão salientou que “não é um aumento dramático”, explicando que como os números brutos são pequenos qualquer subida tem uma expressão grande percentualmente e adiantando que o próprio Instituto Nacional de Medicina Legal tem cada vez mais capacidade de pesquisa sobre as drogas presentes no organismo.
O presidente do SICAD destacou, ainda, que foram instauradas mais de 8500 contra-ordenações em 2012, o que representa um aumento de 24% em relação ao ano anterior. Das decisões já tomadas, em 67% dos casos suspenderam-se provisoriamente os casos a consumidores não toxicodependentes e 14% a toxicodependentes que aceitaram submeter-se a tratamento. “Mais uma vez a maioria dos processos estavam relacionados com a posse de cannabis”, diz João Goulão, o que coincide com o tipo de consumo que prevalece em tribunal.
Em Outubro, no âmbito da apresentação dos dados relativos ao Movimento Clínico IDT 2002-2012, João Goulão já tinha adiantado que a cannabis e heroína tinham sido as drogas mais utilizadas pelos novos consumidores no ano passado. Na altura disse também que as recaídas dos consumidores de heroína, a utilização do álcool como antidepressivo e o aparecimento de novas substâncias psicoactivas, como o crack, foram identificados como os principais problemas.
"O crack está a aparecer no nosso mercado, na nossa sociedade", disse Goulão. Esta droga, sucedâneo da cocaína, está relacionada com ambientes festivos. "Estes sucedâneos mais baratos, a pasta base e o crack, são altamente geradores de adição, altamente geradores de degradação e têm efeitos comparáveis à heroína, nos contextos de outros tempos, que todos nos lembramos de ver em Portugal", frisou. Não sendo ainda um fenómeno com grande peso na sociedade portuguesa, Goulão assinala que o SICAD está atento e a procurar "mecanismos eficazes para o contrariar".
O relatório surge um ano após a integração dos serviços do extinto Instituto da Droga e da Toxicodependência nas administrações regionais de saúde, passando a identificação precoce dos consumos abusivos passa a ser feita por médicos ou enfermeiros dos cuidados primários de saúde – uma transição que João Goulão anteviu como mais complicada mas que garante que no terreno está a correr bem.
Além disso, Goulão acredita que o novo Plano Nacional para a Redução dos Comportamentos Aditivos e das Dependências 2013-2020 permitirá alterar a abordagem a muitos destes fenómenos. Além de pretender reduzir a prevalência do consumo de drogas em Portugal até 2020 em 20%, o programa dirige-se a adições e tem em conta os vários ciclos de vida e não a substância consumida, além do contexto social. Os ciclos de vida compreendem, por exemplo, a gravidez, o período pré-natal, as crianças em várias idades, jovens, adultos e mesmo idosos.