Elina Fraga: “Não teria votado no PSD se soubesse das reformas na justiça”
O Ministério da Justiça “é muito um ministério da propaganda”, diz a recém-eleita bastonária dos advogados, que não gosta de aplicar aos seus colegas o termo proletarização, mas admite que alguns deles chegam a trabalhar 14 horas diárias por um salário de 500 euros.
Começou a sua carreira política no CDS. Como?
Venho de uma família muito conservadora em que a minha mãe, o meu pai, os meus tios eram todos simpatizantes e militantes do CDS. Depois evoluí e ingressei no PSD, que encarna – em teoria, sublinho – muitos dos valores que defendo. Só que os Governos praticam muitas vezes políticas que não constam dos seus programas eleitorais. É o caso deste, manifestamente. Desafio a ministra da Justiça a mostrar onde é que o programa do PSD refere o encerramento e a desqualificação dos tribunais. Só assim esta reforma teria legitimidade democrática.. Eu não teria votado no PSD se soubesse de muitas das reformas hoje em curso na justiça.
Quando Passos Coelho chegou a líder do PSD, escreveu no Twitter que ele era ideologicamente vazio, cheio de cosmética e muita areia. Ainda se revê nestas afirmações?
O tempo encarregou-se de demonstrar que este primeiro-ministro, ao consentir as reformas em curso na justiça, veio dar razão às minhas premonições. Nessa altura apoiei Paulo Rangel.
Tem defendido que não devem ser só os indigentes a ter acesso aos advogados oficiosos.
Temos uma classe média empobrecida que não tem direito ao apoio judiciário, que apenas abrange quem ganha o ordenado mínimo ou menos que isso. Ora, aceitar a justiça como um bem transaccionável é a negação do Estado de direito – e é um pouco isso que está a acontecer, apesar de os direitos de cidadania, como a saúde, a justiça e a educação serem um património inalienável.
Nem parece o discurso de uma social-democrata...
A dignidade da pessoa não é património de esquerda nem de direita. Há em mim uma humanista preocupada com quem tem menos capacidade económica. Aquilo que se está a fazer hoje, criando megatribunais nas sedes de distrito, já foi feito há uns anos na saúde. Chamam-lhe reorganizar – um verbo que, no interior do país, significa sempre encerrar.- Estudou na Faculdade de Direito em Coimbra. Quando terminou o curso, gostaria que lhe tivessem imposto as restrições de acesso à profissão que agora quer aplicar aos recém-licenciados?
Se gostaria? Não. A primeira vez que vim à ordem foi para protestar contra uma alteração do regime de estágio. Mas isso é o que alguém sente aos 20 anos. Agora, não é mais doloroso permitir que um jovem entre livremente na ordem, pague pelo estágio e no final não consentir que seja advogado, porque chumbou no exame? A ordem deve certificar-se de que os recém-licenciados têm os conhecimentos necessários para serem advogados e é mais sério fazer essa verificação quando terminam a universidade.
Tem feito grandes críticas aos meios alternativo de resolução de litígios, como os julgados de paz. Não fazem poupar tempo e dinheiro ao cidadão?
Todos os dias somos intoxicados com campanhas publicitária que propagandeiam esses meios alternativos. Há cartazes nas repartições públicas a dizer que a arbitragem é a solução. É fácil fazer crer que há uma justiça privada mais rápida e mais acessível. Agora, num Estado de direito ela deve ser administrada nos tribunais, que dão garantias de isenção e imparcialidade que esses meios não podem dar. Os julgados de paz foram criados para litígios até cinco mil euros, tendo conseguido resolver os processos pendentes com alguma celeridade. No Verão passado, as suas competências foram ampliadas e aquele valor alargado para 15 mil euros. Daqui a uns tempos estarão entupidos de processos e os tribunais vazios, porque foram esgotadas as suas competências.
Isso não é uma posição corporativa em desfavor do cidadão?
Não. A parte economicamente mais forte contrata sempre advogado, seja no tribunal ou no julgado de paz. A parte mais fraca convence-se de que não é necessário fazê-lo, mas a verdade é que são perdidas muitas acções por questões meramente formais.
É algo que a ministra da Justiça prometeu que iria deixar de acontecer com o novo Código do Processo Civil...
Também disse, quando tomou posse, que com ela acabaria a impunidade em Portugal – e eu não vejo que tenha terminado. Continuam a ser presas as mesmas pessoas e continuam a prosperar as mesmas que antes. Veja que uma das grandes bandeiras da ministra, a alteração ao Código do Processo Penal que permite julgar um homicídio num mês por processo sumário – foi declarada inconstitucional duas vezes. À terceira declaração de inconstitucionalidade, naufragará. Repare na precipitação! As reformas têm de garantir celeridade sem triturarem garantias.
É contra isto?
Claro que sim, é quase como fazer justiça pelas próprias mãos, no calor do momento.
Foram recentemente impostos prazos aos juízes.
Já existiam antes: o juiz já tinha 30 dias para dar uma sentença. Não eram cumpridos. A ministra diz que vai haver maior atenção nesse campo – mas qual é a sanção para o incumprimento? O novo Código do Processo Civil não prevê multas. Aguardo, por isso, com serenidade e muita desconfiança. Está-se mais interessado em propagandear reformas do que em fazê-las.
Está a dizer que o Ministério da Justiça se transfomou num ministério da propaganda?
Não é só um ministério da propaganda, mas é muito isso...
Chegou a dizer na campanha para bastonária que poderia organizar uma paralisação de advogados. Seria a primeira de sempre?
Referia-me ao sistema de acesso ao direito [defesas oficiosas]. Já houve paralisações sectoriais, mas nunca nacionais. O sistema em vigor, em que o apoio judiciário é prestado por advogados independentes, deve manter-se. A ordem não aceitaria a adjudicação de todo o sistema a uma entidade privada que contratasse advogados avençados. Nem que o defensor público fosse um funcionário do Estado, como sucede no Brasil. Espero que as afirmações da ministra sobre isso sejam meramente provocatórias, para suscitar um debate público. Senão, a ordem mobilizará todos os seus recursos e lutará contra aquilo que representará o mais violento ataque ao direito do cidadão do acesso à justiça.
Foram os advogados das oficiosas que lhe deram a vitória como bastonária ou também votaram em si os profissionais dos grandes escritórios, que tanto critica?
Nada tenho contra os grandes escritórios: o que critico são práticas imorais e ilícitas de alguns deles. A advocacia que sempre me mereceu censura é aquela que vive à custa do trabalho de colegas que assalariou de forma indigna e sem lhe dar condições, que despede sem qualquer justificação.
É a proletarização da advocacia?
Não gosto da palavra. Nunca a usei.
Porquê?
Por razões ideológicas: é uma ofensiva para os advogados que trabalham nas grandes sociedades. Jamais designaria um advogado como proletário; ainda que receba um salário, há uma independência que caracteriza a advocacia, mesmo que os patrões não a reconheçam. Há advogados hoje a ganharem 500 euros por mês em sociedades de advogados e a trabalharem 14 horas por dia. E advogadas despedidas só por comunicarem a sua gravidez. Por outro lado, basta ir ao site dos ajustes directos para ver quais são as sociedades brindadas com milhões de euros pelo Estado e pelas empresas públicas.
São as mesmas que ministram cursos para explicar quais são os buracos das leis que ajudaram o Governo a elaborar?
Existe um núcleo duro da advocacia instalada nos grandes escritórios que é chamado para fazer as leis. Depois editam livros sobre essas leis que criaram. A seguir vendem formação relativamente à mesma legislaçáo. Por fim atendem clientes sobre a aplicação dessa lei. São eles os primeiros a encontrar os buraquinhos da lei que eles próprios criaram, por negligência ou dolosamente. Tem que haver um revisitamento do regime das incompatibilidades do exercício de cargos públicos, em nome de um Estado de direito verdadeiramente democrático. O facto de não haver exclusividade dos deputados é um problema, porque de manhã ele pode atender um cliente na função de advogado e à tarde fazer uma lei que o favoreça.
A ordem levantou-lhe dois processos disciplinares, um deles por não ter tratado do processo de uma cliente atempadamente. Quer explicar porquê?
Por amor de Deus, já toda a gente sabe! Esses processos foram objecto de duas decisões judiciais no âmbito de duas providências cautelares que pus e em ambos os casos a sentença é no sentido da evidência da violação dos meus direitos de defesa.
A questão é que isso pode impedir a sua tomada de posse como bastonária ou obrigá-la a renunciar ao cargo.
A sentença definitiva pode chegar daqui a 20 anos. Para mim, o assunto está resolvido – embora tenha que aguardar que os tribunais se pronunciem definitivamente. Se houver um erro judiciário, recorro para o Supremo, para o Constitucional... E hão-de vir não sei quantos bastonários depois de mim e ainda andamos a discutir isto. Não existiu seriedade jornalística no tratamento deste assunto. Não será por causa de nenhum processo disciplinar que a minha tomada de posse não ocorrerá a 10 de Janeiro.
Fechar um tribunal é atentar contra valores essenciais da República
Combinou com a Associação Nacional de Municípios uma luta conjunta contra o novo mapa judiciário?
A 22 de Dezembro, vai haver uma concentração das populações dos locais onde estão previstos encerramentos de tribunais, sob coordenação dos presidentes de câmara e dos presidentes de delegações da Ordem dos Advogados, para explicar como os seus direitos vão ser constrangidos, caso se verifique esse fecho. Porque a própria população ainda não percepcionou esse drama. As sedes de comarca passam a ficar todas nas capitais de distrito, o que significa que as acções de valor superior a 50 mil euros passam a ser aí julgadas – com a deslocação das testemunhas e das partes inerentes a isso. Há muitos tribunais, no novo mapa judiciário, que vão continuar a trabalhar com crimes até cinco anos de prisão e acções até 50 mil euro, mas que perdem as demais competências.
Não há partes desta reforma que sejam positivas, como a especialização de tribunais de que fala a ministra da Justiça?
Há. Repare que a especialização deve corresponder a uma exigência da comunidade: se o número de processos pendentes o justifica, deve ser criado um tribunal especializado. Mas deve ser tida em conta a existência de transportes públicos.
E isso não foi?
Não. A ministra tem referido aspectos que não correspondem à verdade. O distrito de Bragança, por exemplo, onde eu trabalhava, não é contemplado com nenhum tribunal especializado e são encerrados vários tribunais. O número de processos pendentes também não o justifica. Considerando que se trata de uma população envelhecida e com fracos recursos, é evidente que essas pessoas não vão ter capacidade económica para se deslocarem para as novas sedes de comarca. É uma verdadeira denegação de justiça.
O que está disposta a fazer se não conseguir convencer a ministra a alterar estes planos?
Nos últimos dias, ela tem dado sinais inequívocos de que estará na disponibilidade de reequacionar o desenho do mapa judiciário. Congratulo-me com essa nova postura, porque em Janeiro passado tinha assumido a postura de que não transigia em nada. Mas hoje estamos perante o encerranento de 21 tribunais, quando chegaram a ser 50. Congratulo-me também com a evolução da Associação Sindical de Juízes Portugueses, que num primeiro momento não estava preocupada com o atentado aos direitos de cidadania que representa o encerramento de um tribunal. Neste momento, já começa a falar num atentado ao Estado de direito, seguindo a posição da Ordem dos Advogados.
A ordem não admite nenhum encerramento?
Qualquer concelho com dignidade para o ser tem direito a este símbolo da soberania nacional. A ordem não só nunca manifestou disponibilidade para aceitar encerramentos como no passado chegou a propor ao ministro Alberto Costa a criação de novos tribunais, uma vez que há cerca de 70 municípios que os não têm. Não se compreende como é que o Ministério da Justiça gasta centenas de milhares ou milhões de euros em meios alternativos de resolução de litígios e não faz qualquer investimento nos tribunais.
O encerramento de um único tribunal que seja será então uma derrota da ordem?
As derrotas serão da cidadania e do Estado de direito. Não deve encerrar nem um tribunal, porque sempre que isso acontece está a atentar-se contra valores essenciais da República.