O trotskista Mélenchon é o incómodo "terceiro homem" das presidenciais francesas
Não é o socialista François Hollande que mais encarna a mudança para os franceses nas eleições presidenciais, diz uma sondagem ontem divulgada. É certo que 53% dos franceses lhe atribuem esse papel, mas é em Jean-Luc Mélenchon, o candidato da Frente de Esquerda, que 60% pensam como o homem da mudança. É uma ajuda ou um entrave para Hollande?
O trotskista Mélenchon, que congrega na sua candidatura os comunistas, o seu próprio Partido de Esquerda e outras formações "à esquerda da esquerda", tem conquistado eleitores como se apanhasse flores num jardim: de Janeiro até agora, duplicou as intenções de voto.
Segundo a sondagem BVA para o jornal Le Parisien, 13% dos eleitores dizem-se decididos a votar por ele, mas alguns estudos de opinião dão-lhe 15%. Transformou-se no "terceiro homem" das presidenciais, que têm a primeira volta no dia 22, com um discurso inflamado e à esquerda, sem fazer concessões. A sua palavra de ordem é "tomemos o poder".
Mélenchon, um tribuno dotado e inflamado de 60 anos, incentiva à "revolta civil" e à "revolução cidadã". Faz referências múltiplas à história da Revolução Francesa, num discurso de retórica elevada em que cabem apelos à utopia e aos sentimentos, tudo temperado com um humor e ironia arrasadores. A Marine Le Pen, candidata do partido de extrema-direita e anti-islão Frente Nacional (FN), dispensa insultos sem dó: chama-lhe "morcego", "meia maluca", "presença negra", "besta suja a vomitar veneno"...
O seu manifesto eleitoral. O Humano Primeiro, tem propostas radicais: taxar a 100% todos os rendimentos acima de 360 mil euros anuais, salário mínimo de 1700 euros, sair da NATO e, claro, nem pensar em ratificar o mecanismo europeu de estabilidade do euro e a regra de ouro (criação de limites legais ao défice e à dívida de cada país, e de um regime de sanções).
Este ex-socialista e ministro da Educação de Lionel Jospin (2000-2002) foi fundador, com Julien Dray, da tendência Esquerda Socialista, que se opunha à abertura ao centro de Michel Rocard. A esta tendência foram assacadas culpas pelo desastre de 2002 - quando Jospin não passou à segunda volta das presidenciais, batido por Jean-Marie Le Pen, então líder da FN.
Mas em 2005, Mélenchon fez campanha pelo "não" no referendo sobre a Constituição europeia - contrariando a posição do PS. Juntou-se aos comunistas para defender o "não", que ganhou o referendo.
Hoje, perante um cenário de esquerda em refluxo na Europa, poderia pensar-se que Mélenchon seria um candidato do passado, com poucas hipóteses de singrar. Mas não foi nada disso que aconteceu, talvez por particularidades nacionais: por exemplo, 80% dos franceses dizem que a globalização está a acabar com os empregos e 70% acham que ajuda a aumentar o défice, revela uma sondagem IFOP publicada ontem no jornal La Croix.
Muitos franceses estão zangados com Nicolas Sarkozy, com vontade de mudar mas pouco entusiasmados com o socialista François Hollande, o "candidato normal". Por isso, entusiasmaram-se com Mélenchon e os seus comícios que o jornal Figaro (tendência próxima do Eliseu) descreve como "semelhantes às grandes missas tele-evangélicas" dos EUA.
François Hollande não estava à espera disto, embora conheça bem Mélenchon. Ele foi o seu rival no congresso de 1997, no qual foi eleito primeiro secretário do PS. Por causa da campanha de Mélenchon pelo não em 2005, não pôde candidatar-se à presidência em 2007 (Hollande liderava então o PS).
A partir de meados de Fevereiro, as perdas de Hollande são quase o espelho dos ganhos de Mélenchon: este passou de 9% para 15%, enquanto o socialista caiu de 32% para 28%. Hollande pede aos seus próximos que não ataquem Mélenchon, embora apele ao "voto útil".
Hollande pode então perder por causa de Mélenchon? Os analistas não colocam esse cenário. Alguns apoiantes do candidato da Frente de Esquerda são eleitores que não pensavam sequer ir votar - e que assim poderão ir dar o seu voto a Hollande na segunda volta, que todas as sondagens dizem que continua a ser do socialista. Mas os centristas de François Bayrou - em queda livre nas sondagens - podem não gostar dos compromissos que Hollande terá de fazer com Mélenchon, abandonando a via social-democrata que tem seguido. E isso é um problema complicado para resolver já a partir de 7 de Maio, o dia que se segue à segunda volta das presidenciais.