Somos todos Trayvon Martin
Trayvon Martin, de 17 anos, foi morto numa noite chuvosa quando saiu de casa para ir a uma loja de conveniência. George Zimmerman, o voluntário encarregado da vigilância nocturna de um condomínio privado em Sanford (um subúrbio de Orlando), suspeitou de Trayvon e alertou a polícia. A polícia disse-lhe que ia enviar um agente e pediu-lhe para não fazer nada. Mas Zimmerman seguiu Trayvon. Zimmerman diz que Trayvon tentou atacá-lo. Zimmerman estava armado, Trayvon não. As únicas coisas que tinha consigo eram o pacote de rebuçados e a lata de chá gelado que comprara na loja de conveniência. Trayvon morreu com uma bala no peito.
Zimmerman, de 28 anos, alegou ter atirado em legítima defesa. A polícia disse não ter encontrado nenhum indício que demonstrasse o contrário e deixou Zimmerman partir sem sequer incriminá-lo. Caso encerrado.
Isto aconteceu há quase um mês, a 26 de Fevereiro. Mas o que começou por ser uma história de crime local adquiriu proporções nacionais na última semana. Trayvon Martin era negro, George Zimmerman é branco. A sensibilidade racial do caso trouxe ao de cima memórias da era dos direitos civis na América. Na quarta-feira, os pais de Trayvon, Tracy Martin e Sybrina Fulton, participaram numa marcha com cerca de mil pessoas em Nova Iorque, muitas delas encapuzadas, numa homenagem a Trayvon, que usava uma camisola com capuz na noite em que foi morto. Objectivo: exigir a investigação do caso. Na quinta-feira à noite, umas 30 mil pessoas concentraram-se em Sanford. Há várias concentrações do género noutras cidades americanas anunciadas no Facebook para os próximos dias. Uma petição lançada pelos pais de Trayvon no siteChange.org tinha até ontem quase um milhão e meio de assinaturas e o número estava a crescer rapidamente.
Anteontem, na sua primeira página, o Washington Post referia-se ao início de um movimento.
O Departamento de Justiça, chefiado pelo afro-americano Eric Holder, decidiu investigar os acontecimentos, incluindo a forma como as autoridades locais actuaram. E ontem o Presidente garantiu que o caso será investigado até às últimas consequências. "Se eu tivesse um filho, ele seria parecido com o Trayvon", disse Obama.
A raça importa"Isto é mais um exemplo de como a América não vive numa era pós-racial", diz ao PÚBLICO Andra Gillespie, professora de Ciência Política na Emory University, na Georgia (Atlanta), especializada em questões raciais. "Toda a gente pensava que quando o Presidente Obama fosse eleito ia ser o fim do racismo e a questão da raça deixaria de ter importância. Mas a raça importa e custou a vida a este jovem."
Não existem muitos detalhes sobre o que aconteceu na noite de 26 de Fevereiro. George Zimmerman, o homem que disparou sobre Trayvon Martin, nunca falou publicamente sobre o caso. Sabe-se que mudou de casa depois de, alegadamente, ter recebido ameaças de morte. O seu pai, Robert Zimmerman, enviou uma carta ao jornal Orlando Sentinel negando acusações de que George é racista. Ele nota que George é um hispânico "com muitos familiares e amigos negros" e que "seria a última pessoa a discriminar alguém por qualquer razão".
A polícia de Sanford divulgou publicamente a gravação do telefonema que George Zimmerman fez para o 911 nessa noite - e que tem alimentado o debate sobre se a sua actuação foi ou não motivada por questões raciais. No telefonema, Zimmerman descreve "um tipo muito suspeito", que "parece estar a preparar alguma ou estar sob o efeito de drogas". Mas o comportamento de Trayvon não parece particularmente suspeito ou ameaçador. Zimmerman diz que "está a chover e ele está a andar e a olhar em volta". A certa altura, Zimmerman nota que Trayvon começou a correr. "Você está a segui-lo?", perguntam-lhe do outro lado da linha. Zimmerman responde afirmativamente. "OK, não precisamos que faça isso." Essa é a mesma gravação que a CNN tem dissecado nos últimos dois dias, para tentar determinar se Zimmerman murmurou ou não um particular epíteto racista durante o telefonema. Apesar dos esforços, o resultado não é conclusivo.
Mas, para muitos comentadores afro-americanos, o caso tem um ar de familiaridade. "Para qualquer homem negro na América, do milionário ao mecânico, a tragédia de Trayvon Martin é pessoal. Podia ter sido eu ou um dos meus filhos. Podia ter sido qualquer um de nós", escreveu Eugene Robinson, colunista do Washington Post. Touré, um escritor e jornalista que publicou recentemente um livro sobre a América pós-racial, comentou na revista Time: "A masculinidade negra é uma condição potencialmente fatal."
Numa altura em que o racismo é socialmente condenado, o caso Trayvon Martin parece reflectir um factor mais enraizado na cultura popular americana: a percepção de um negro como uma figura ameaçadora. "Os Estados Unidos têm uma história infeliz de discriminação racial, em que os negros são vistos como sendo mais propensos à criminalidade. Por isso, mesmo que tenham um comportamento normal e rotineiro, têm de lidar com o estereótipo de que estão prestes a cometer um crime", diz Andra Gillespie. Charles Blow, um colunista do New York Times, chamou-lhe "o fardo dos rapazes negros". É por isso que alguns pais afro-americanos ensinam os seus filhos adolescentes a não correr em público com algo nas mãos - para que ninguém pense que cometeram um roubo.
O Departamento de Justiça decidiu abrir o seu próprio inquérito em conjunção com o FBI, depois de as críticas dirigidas ao Departamento de Polícia de Sanford terem subido de tom nas últimas semanas. Mas especialistas notam que muito dificilmente o caso poderá ser julgado como um crime federal. A lei federal de 1964 penaliza crimes de ódio motivados por questões raciais, mas o homicídio de Trayvon Martin não parece aplicar-se a nenhum dos cenários previstos, nota ao PÚBLICO Stephen A. Saltzburg, professor na Faculdade de Direito da Universidade de George Washington.
Um tribunal local da Florida também está a analisar o caso - um grand jury deve pronunciar-se a 10 de Abril sobre a eventual abertura de um processo judicial. Saltzburg acredita que a intenção do Departamento de Justiça é, sobretudo, pressionar o estado da Florida. "O Governo federal está a tentar que a Florida faça o que deve fazer. É verdade que o chefe da polícia de Sanford resolveu tirar uma licença sem vencimento hoje? Quer dizer que está a resultar."
O chefe da polícia Bill Lee anunciou quinta-feira que se ia afastar temporariamente das suas funções. Horas depois, o governador da Florida, Rick Scott, anunciou que o procurador estadual encarregado do caso também se tinha retirado e indicou o nome da nova procuradora.