Como Guy Fawkes se tornou no herói do Occupy
É uma cara diabólica: o sorriso de malícia, e os bigodes fininhos pretos revirados para cima mais a pêra minúscula no queixo, num rosto sinistramente pálido - a cara de Guy Fawkes, católico britânico levado à forca pela traição do 5 de Novembro, tornou-se num símbolo dos grupos anticapitalistas, que a usam como máscara nos protestos pelo mundo inteiro. Mas quantos se lembram - e lembram-se mesmo? - do 5 de Novembro?
"Algumas pessoas usam a máscara por moda, outras sabem o que ela representa. Eu tenho-a para mostrar o meu apoio à mensagem contra a tirania e fazer parte deste movimento global de contestação e de cidadania", contava à Reuters um dos manifestantes que há semanas acampam em frente da catedral de São Paulo, no centro financeiro de Londres, e que sábado marcharam em direcção ao Parlamento usando a enigmática caraça de Fawkes.
De Londres a Nova Iorque, e em centenas de outras cidades americanas, europeias e asiáticas, milhares de pessoas têm envergado esta máscara nas manifestações contra a avidez dos bancos e das grandes empresas e a crise financeira mundial, mais de 400 anos depois de Guy Fawkes ter tentado - e falhado - fazer explodir o edifício do Parlamento britânico e derrubar a monarquia protestante de Jaime I, num protesto contra a perseguição religiosa no Reino Unido.
A "carreira" revolucionária da máscara foi iniciada pelo grupo de activistas e piratas informáticos Anonymous, que a assumiram como "cara pública" em 2008, numa manifestação de rua contra a Igreja da Cientologia nos Estados Unidos. Esta máscara, popularizada dois anos antes com o filme V de Vingança, deu resposta à necessidade dos membros do grupo de proteger as suas identidades e, ao mesmo tempo, simbolizar a defesa pelos direitos individuais.
A história do protagonista do filme - adaptada para o cinema pelos irmãos Wachowski a partir dos livros de Alan Moore e David Lloyd -, afinal, é a de um homem contra o sistema, um misterioso herói que luta contra um regime fascista e consegue, onde Fawkes falhou, rebentar com o Parlamento britânico. No final, uma multidão com máscaras do rebelde assiste ao espectáculo do edifício a arder.
A cara da "traição"Mas esta não foi sempre a imagem de Fawkes. Ao longo de gerações, os britânicos assinalam o 5 de Novembro como o dia em que um traidor foi apanhado com quilos de explosivos nas caves do Parlamento. Desde então são acesas fogueiras, lançado fogo-de-artifício e queimadas efígies do rebelde católico, num aviso a quaisquer aspirantes a cometer traição: que se lembrem, lembrem-se, do 5 de Novembro de 1605.
Fawkes e cúmplices na Conspiração da Pólvora foram presos e torturados ao longo de quatro dias na Torre de Londres, julgados e condenados à morte por enforcamento, seguida de arrastamento dos cadáveres pelas ruas e esquartejamento dos corpos.
Ficou para a história que o "bicho papão" do Reino Unido, por sorte ou ajuda (as teses divergem), não morreu na forca: tropeçou ao subir para o cadafalso e partiu o pescoço na queda. Numa coisa os historiadores concordam: Guy Fawkes não era um combatente contra o sistema, antes um arreigado monárquico que apenas queria ver o rei protestante substituído por um católico.
Reabilitado pelos comicsA transformação de Fawkes no actual ícone da liberdade individual e da democracia, e já desprovido da mensagem religiosa, foi feita pelo ilustrador David Lloyd nas novelas gráficas V de Vingança. Foi ele que criou a imagem original da máscara para ser usada pelo protagonista da história escrita pelo grão-mestre dos comics Alan Moore.
"Não devíamos andar a queimar o tipo a cada 5 de Novembro, mas sim a celebrar a tentativa dele de fazer explodir o Parlamento. Devemo-nos lembrar do 5 de Novembro porque isso não deve ser esquecido", defende Lloyd no ensaio Behind the Painted Smile (Por trás do sorriso pintado), escrito em 1983, quando a série V foi lançada.
Numa visita recente ao protesto Occupy Wall Street, Lloyd mostrou-se "feliz" pelo uso que o movimento está a dar à máscara. "A cara de Guy Fawkes tornou-se numa imagem global que faz todo o sentido nas manifestações contra a tirania. Fico muito satisfeito por estar a ser usada de forma tão especial", afirmou, comparando-a à icónica fotografia de Che Guevara, feita por Alberto Korda, que se tornou num símbolo popular em todo o mundo.
"É algo muito forte visualmente, distingue-nos dos hippies e dos socialistas e dá-nos uma identidade própria", explicava um membro do Anonymous no protesto de Londres. Mas, ironicamente, a popularidade das máscaras - com 100 mil exemplares vendidos por ano em todo o mundo - gera também sentimentos conflituosos aos activistas mais radicais.
A "cara de Fawkes" é desde o filme V de Vingança propriedade da Time Warner, multinacional que é uma das 100 maiores empresas dos Estados Unidos, com lucros de 1,6 mil milhões de dólares no ano passado, e cada máscara vendida acaba por pôr dinheiro nos cofres de uma empresa que simboliza aquilo que os Occupy combatem.