Cavaco só teve licença para acabar casa de férias três meses depois de estar pronta

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Cavaco Silva Foto: Nuno Ferreira Santos

As obras foram concluídas em Agosto de 1999, mas o então professor de economia e ex-primeiro-ministro só obteve a licença para fazer as obras de alteração a 30 de Novembro desse ano. Onze dias antes, porém, já tinha requerido a licença de utilização da moradia, a qual foi emitida, sem a necessária vistoria camarária prévia, a 3 de Dezembro.

As irregularidades no licenciamento da construção da sua moradia, a vivenda Gaivota Azul, na urbanização da Coelha, concelho de Albufeira, a 600 metros da praia da Coelha, não são um caso inédito. Mas o acervo documental reunido nos três volumes do processo camarário consultado pelo PÚBLICO mostra um conjunto de procedimentos marcado por sucessivas violações das normas legais em matéria urbanística.

Numa declaração transmitida por um membro da candidatura, Cavaco Silva respondeu ontem às perguntas do PÚBLICO dizendo apenas: “Não alimento esse tipo de campanhas.”

Das irregularidades neste processo, umas são da responsabilidade da empresa Galvana — de que era sócio e representante Teófilo Carapeto Dias, um amigo de infância e antigo assessor de Cavaco. A Galvana era a proprietária e foi ela que iniciou a construção da moradia em Outubro de 1997. Outras são da responsabilidade do actual Presidente da República, que adquiriu, em Julho de 1999, os 1891 metros quadrados da propriedade, que resultaram da junção de dois lotes da urbanização, com a estrutura de uma moradia de três pisos concluída, paredes exteriores rebocadas e telhado quase pronto.

A construção arrancou devidamente licenciada, com um alvará emitido em nome da Galvana, válido até 25 de Junho de 1998. O projecto, do arquitecto Olavo Dias, começou por levantar alguns problemas, visto que a sua implantação incidia sobre dois lotes nos quais estavam previstas duas moradias, mas tudo se resolveu com uma alteração ao alvará de loteamento. A aprovação desta alteração, que fez com que o lote de Cavaco Silva tenha perto do dobro da área de todos os outros, deveria ter sido precedida de um parecer da antiga Comissão de Coordenação Regional do Algarve. Esse parecer, embora a câmara tenha deliberado no sentido de ele ser solicitado, não consta do processo.

A obra licenciada, com cave, rés-do-chão e primeiro andar, incluía cinco quartos duplos e um simples, todos com casa de banho, e totalizava uma “área bruta de construção” de 620m2, sendo a chamada “área útil” de 388m2 e a “área habitável” de 242m2. O projecto previa também uma piscina de 90m2.

Embargo em 1997

Logo em Dezembro de 1997, dois meses depois do começo, a obra foi embargada por despacho do presidente da Câmara, por a Galvana “estar a levar a efeito a alteração e ampliação” da moradia, ao nível da cave, “em desacordo com o projecto aprovado”.

Nessa altura, contudo, já a Galvana tinha entregue no município um “projecto de alterações pontuais”, subscrito por Olavo Dias a 28 de Outubro. O projecto de arquitectura chegou a merecer uma aprovação em Março do ano seguinte, mas o processo não teve andamento por falta dos projectos de especialidades, não sendo emitida a necessária licença para as alterações requeridas.

Quanto ao embargo, o mesmo foi ignorado pela Galvana que, conforme consta do Livro de Obra — um registo ofi cial no qual o director técnico anota regularmente a data de realização das partes mais importantes da obra — nunca suspendeu os trabalhos.

O incumprimento de uma ordem de embargo implicava à época, nos termos do artigo 4º do decreto-lei 92/95, “independentemente da responsabilidade criminal que ao caso couber”, a “selagem do estaleiro” e dos equipamentos em uso na obra. “Desrespeitar um embargo é um crime de desobediência previsto no regime de licenciamento e no Código Penal”, disse ao PÚBLICO um jurista especialista na área do urbanismo e edificação.

A avaliar pelos documentos camarários, a violação do embargo nunca teve qualquer consequência e a obra nunca foi objecto de desembargo. Foi assim, com os trabalhos legalmente embargados e com a licença caducada desde 25 de Junho de 1998, que Cavaco Silva se tornou proprietário do terreno e da moradia que nela se encontrava em fase adiantada de construção (ver caixa).

Pela mão da mesma empresa de construção de Almada, a Manuel Afonso Ldª, que estava a trabalhar para a Galvana, Cavaco Silva prosseguiu os trabalhos em violação do projecto licenciado e sem licença válida. Dez meses depois de ter adquirido a propriedade, Cavaco Silva requereu à Câmara a passagem do processo para seu nome (o chamado averbamento) e um ano depois, a 21 de Julho de 1999, com os acabamentos da moradia praticamente concluídos, pediu a prorrogação da licença caducada há mais de um ano. No mesmo dia, solicitou também uma licença para “a execução das obras de alteração”.

No que respeita ao primeiro pedido, o da prorrogação da licença, a Câmara nem sequer respondeu, presumivelmente porque a obra continuava embargada e o projecto de alterações apresentado em 1997 nunca tinha sido licenciado.

Já no caso do novo pedido de licenciamento e com as obras terminadas desde o mês anterior, o proprietário entregou a 3 de Setembro de 1999 os projectos de especialidade referentes às alterações, incluindo o projecto de estabilidade e cálculos de betão. A 19 de Novembro pediu que lhe fosse passada a licença de utilização da moradia e só 11 dias mais tarde, a 30 de Novembro, é que o então vereador Desidério Silva, actual presidente da Câmara (PSD), assina a licença para a execução das obras de alteração há muito concluídas.

Logo a 3 de Dezembro, sem que haja registo da realização da vistoria camarária, destinada a verificar se o que foi feito é o que foi licenciado, Desidério Silva assinou a licença de utilização.

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