Eduardo Catroga: "Não faz sentido nenhum aumentar os impostos"

Em Julho alertou para a falta de consolidação orçamental. Agora esse descontrolo é evidente. Deveu-se à crise económica ou à falta de controlo por parte do Governo?

Há muito tempo que ando preocupado com o caminho da economia portuguesa. Com a fraca taxa de crescimento económico, que é a questão central, e com o facto de as contas públicas estarem bastante descontroladas e também com o facto de haver défices e dívida pública oculta que faz com que estejamos com uma trajectória insustentável das finanças públicas, uma trajectória que já vem de traz e que se agravou nos últimos anos, ao contrário da propaganda oficial. Como considero que a sustentabilidade das finanças públicas a prazo é uma condição necessária, embora não suficiente, para um crescimento económico sustentado e considerando também que a obtenção de níveis de crescimento económico na casa dos dois a três por cento devem constituir metas mínimas para garantir uma melhoria do bem-estar económico e social das pessoas, concretizarmos as suas expectativas e defendermos o modelo social, preocupa-me o andamento das finanças públicas no sentido de que são uma das componentes da política global que tem de ajudar a economia a criar condições para que dê um salto.

Os remédios sugeridos esta semana pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) ainda fazem sentido?

Não concordo com essas propostas porque o FMI coloca-se numa perspectiva estática das finanças públicas e exclusivamente nesse âmbito, mas esquecem, pelo menos nas suas recomendações, que o problema essencial da economia portuguesa é um problema de melhoria da produtividade e da competitividade. E naturalmente as contas públicas têm aí o seu papel.

Que papel?

No sentido de melhorarem a qualidade da despesa pública corrente, de melhorarem a qualidade da despesa em investimento, permitirem criar condições para uma maior competitividade fiscal a prazo. Se considerarmos que a despesa pública representa 50 por cento da riqueza do país, significa que uma melhor qualidade da despesa pública tem influência na qualidade da alocação de recursos na economia, logo na taxa potencial de crescimento económico.

Como se faz isso em termos práticos?

Primeiro é preciso que os responsáveis políticos interiorizarem, que não me parece ser o caso, que não houve consolidação orçamental, que as finanças públicas estão numa trajectória insustentável; que a dívida pública directa e indirecta também, que o endividamento externo idem. Sem interiorizarem isto não há receitas milagrosas de curto prazo. Mas é preciso mudar de rumo. É preciso retomar um processo de mudança. Em 1995, quando fiz o Orçamento do Estado (OE), a despesa pública total do Sector Público Administrativo (SPA) andava nos 35 mil milhões de euros, no OE inicial para 2009 andava quase nos 80 mil milhões de euros. Isto sendo que o SPA é, agora, mais minguado. A despesa pública corrente primária que estava nos 32 por cento do Produto Interno Bruto (PIB), agora está em 44 por cento; a pressão fiscal estava em 32 por cento está em 37 por cento. Temos de interiorizar e depois é preciso tomar medidas porque já estamos a gastar hoje por conta do PIB futuro. E face ao nosso nível de riqueza, a despesa pública não deveria representar mais de 42 ou 43 por cento do PIB. Estamos com sete ou oito quilos a mais, para não falar em 10. Temos um Estado gordo, e cada quilo é um ponto percentual do PIB.

Mas o que sugere em termos práticos, porque esse é um diagnóstico já feito há muito tempo?

Congelar a despesa pública total durante dois ou três anos, em valor absoluto. Por exemplo, ir ao valor de 2008 ou ao valor inicial do OE para 2009 e dizer, sem batotas, que a despesa pública total seria, por hipótese, 79 mil milhões de euros. E a partir daí não gastávamos mais do que isso, era um envelope para os próximos dois ou três anos. E como governar é optar, ter-se-ia de definir prioridades. Ter-se-ia de criar envelopes sectoriais. O ministro das Finanças, com apoio do primeiro-ministro, dizia que o seu ministro A; B, C, ou D não têm mais do que este envelope em função das prioridades políticas definidas e nessas prioridades, para melhorar a qualidade da despesa, tinha de dar mais ênfase à despesa nos sectores chave das mais determinantes para a produtividade.Essa análise, no essencial, seria subscrita pelo actual ministro das Finanças?

Mas ele não disse que iria congelar a despesa pública nos próximos dois ou três anos em valor absoluto...

Mas o que fazia, por exemplo, à despesa com os funcionários públicos? É reduzível?

Não é reduzível, mas é congelável...

Defende, então, que se deve voltar ao congelamento dos salários na função pública?

Com certeza. Agora não quer dizer que, em função das prioridades, não conseguisse, poupando noutras áreas, arranjar uma verba, por exemplo, para incentivar acréscimos de produtividade a sério na função pública. Ou seja, haveria aumentos selectivos em função dos acréscimos de produtividade.

Os contribuintes estão em condições de pedir este esforço aos funcionários públicos porque não podemos esquecer que estes últimos tiveram um aumento de poder de compra real significativo. Por outro lado, os funcionários públicos, no actual contexto, não têm o risco do desemprego e também não podemos esquecer que há estudos independentes que mostram que no sector público, para as mesmas funções no sector privado, a remuneração é mais elevada.

Já em relação às prestações sociais iria ser mais selectivo. Congelava-as acima de um determinado montante. Em vez de ter políticas sociais gerais, ia mais para a identificação dos grupos mais carenciados. Seria um quase congelamento sem ser um congelamento total.

Mas isso já é o que o Governo tem feito...

Se analisar a evolução das prestações sociais no PIB todos os anos aumentam. Há que congelar mesmo a sério, durante dois ou três anos, enquanto não conseguirmos criar mais riqueza.

Esse congelamento durante dois ou tês anos tem de se traduzir numa redução real do valor das pensões porque cada vez há mais pensionistas...

Claro. A menos que o Governo tivesse sucesso na selectividade da despesa pública e conseguisse, dentro do tal envelope global, privilegiar a função social, o que não excluo. Mas há mais formas de poupar...

Por exemplo?

Todas as despesas de funcionamento, para além das despesas com pessoal, têm vindo sempre a crescer e representam quase cinco por cento do PIB quando já representaram três. Não há ali uma oportunidade de cortar um por cento do PIB nesses consumos? Não existe oportunidade de simplificar estruturas? Penso que sim.

Concorda com o FMI que não se deveria cumprir o acordo que prevê um aumento do Salário Mínimo Nacional (SMN) para um valor de 500 euros em 2011 [ontem o Governo decidiu que o SMN passará a ser de 475 euros em 2010]?

Do ponto de vista técnico pode haver fundamentação, mas devo dizer que não sou muito partidário da definição de um SMN. As empresas e até as famílias às suas empregadas, não precisam de um SMN para praticar uma política salarial justa. O problema da economia portuguesa não está no nível do SMN e eu cumpriria o calendário definido nessa área, mesmo correndo alguns riscos. É como o risco de congelar a despesa pública num valor que permita, depois, com o crescimento económico, diluir o peso da despesa pública na riqueza do país.

As medidas restritivas que o FMI defende e algumas das quais também defende, não vão afundar mais a economia no curto prazo?

É sempre difícil a compatibilização do curto prazo e do médio e longo prazo. Quando o FMI admite uma subida do IVA, por exemplo, não há dúvida que isso poderá ter implicações no consumo e logo tem implicações no crescimento económico no curto prazo. Mas temos de raciocinar num horizonte largo. Há sempre tendência para que no curto prazo alguns destes remédios poderem representar alguma contracção da actividade económica. A questão é de saber se temos medo de aplicar remédios de curto prazo e deixar o cancro a germinar no médio e longo prazo. Dou mais prioridade ao ataque ao cancro. O problema central da nossa economia é o crescimento potencial. Na década de 90 estávamos com um PIB potencial na casa dos três por cento e agora, mesmo antes da crise, esse crescimento era inferior a um por cento. Esta é que é a questão central. Se houvesse um discurso de verdade, realista, se houvesse a retoma da confiança, poder-se-ia explicar que estamos a fazer sacrifícios de curto prazo no sentido de criar melhores condições para o médio e longo prazo.

Nesse ataque ao cancro fazia sentido aumentar impostos?

Não faz sentido nenhum aumentar impostos. Devíamos era fixar um tecto para a carga fiscal e contributiva. A carga fiscal, para o nosso nível de riqueza, não deve ultrapassar os 35 por cento do PIB e já estou a ser generoso do ponto de vista do Estado. Às vezes aparecem análises onde se diz que estamos na média da UE e da OCDE, mas eles são trinta ou quarenta por cento mais ricos do que nós. O esforço fiscal relativo, isto é a carga fiscal ponderada pelo PIB percapita medidos em paridades do poder de compra, é vinte e tal por cento superior à média europeia a 27 enquanto em Espanha é 25 por cento abaixo. Portanto, Espanha tem margem para aumentar impostos. Nós não temos margem nenhuma. Aliás, devemos é dar sinais no Orçamento para 2010 de congelamento da despesa total, sinais de que não vai haver aumento de impostos, nem disfarçados através do novo código contributivo, e até deveriam ser dados sinais de que o caminho é a redução da despesa e a redução de impostos, nem que fosse em 0,1 por cento do PIB. E isto deveria ser feito integrado num programa a médio e longo prazo de reestruturação da despesa pública a caminho dos 43 ou 44 por cento do PIB e de uma carga fiscal a caminho dos 35 por cento do PIB...

Se congelar a despesa e reduzir a actual carga fiscal aumenta o défice...

Não me preocupa tanto o défice para 2010. Mas admito que seja possível manter o défice para 2010 à volta do de 2009 que não sabemos bem qual será.

Mas não via o Orçamento para 2010 isoladamente. Via-o num programa a médio e longo prazo, na tal mudança de rumo para a economia portuguesa, integrado num programa de melhoria de produtividade e competitividade e de um programa de reestruturação da despesa pública pelo menos a duas legislaturas. Negociava com Bruxelas e seria transparente com os mercados porque a transparência a prazo traz benefícios. Um dos problemas nesta crise financeira foi que se andou a esconder dívidas e défices. Estou convencido que a nível europeu e a nível nacional isso é evidente nos últimos anos. Andamos a criar bombas de relógio ao retardador. Portanto seria transparente. O FMI quando cá chegou na década de 80 criou um novo conceito de sector público para efeitos de análise. E independentemente do Eurostat, agora faria a mesma coisa. Considerava um SPA alargado onde não punha todo o sector público empresarial não financeiro, mas punha todas as empresas públicas, entes públicos empresariais, que dependem dos contribuintes.

Antes dessa negociação com Bruxelas acredita que há condições para fazer essa negociação internamente com o actual quadro político?

Tenho de partir do pressuposto que os vários partidos políticos, pedindo o apoio do Presidente da República, conseguiriam... agora é preciso que este Governo fizesse autocrítica e aí é que vejo a maior parte da dificuldade, não é o apoio de dois partidos da oposição. E fazer autocrítica é fazer assim: a situação das contas públicas é esta a dívida pública directa e indirecta e esta, temos de ter um programa de melhoria de produtividade e de competitividade e para isso é preciso melhorar um conjunto de políticas públicas. Depois propunha à oposição responsável determinados consensos em matérias fundamentais como a Educação ou a Justiça e num programa de investimentos públicos para os próximos dez anos.

Mas sem essa disponibilidade do Governo a oposição deve provocar uma crise política?

Não. O país precisa de estabilidade, mas o Governo é que tem a obrigação de optar por essa estabilidade e não propor namoros só para fingir. E tem de dizer se quer virar à esquerda ou mais ao centro e à direita. Tem de criar estabilidade com o Bloco ou com o PSD e o CDS/PP, não há alternativa. Em todos os países europeus um Governo que não tem maioria parlamentar procura criar uma. Este Governo devia criar uma maioria parlamentar para garantir a estabilidade.

O PSD está a estender pontes nesse sentido ou pelo contrário...

Apesar de a minha área política ser a social-democracia nunca me inscrevi no PSD porque acredito cada vez menos nos aparelhos partidários e na lógica partidárias em que, só por pressão da sociedade civil, é que eles são capazes de pôr o interesse nacional acima dos interesses partidários. Agora, enquanto houver dinheiro, isto é, enquanto a banca e o mercado de capitais internacional, continuar a fornecer a economia portuguesa ao ritmo de 10 por cento da riqueza do país todos os anos...

Quanto tempo pensa que esse caminho pode durar?

A economia não é uma ciência exacta, mas devemos olhar seriamente para o caso da Grécia. A Grécia tem finanças públicas ainda mais desequilibradas que as nossas, mas tem uma taxa de crescimento económico superior e uma taxa de crescimento potencial superior. Mas os mercados financeiros já começam a discutir se a Grécia poderá não conseguir cumprir os seus compromissos num horizonte de médio e longo prazo. E depois também já há vozes que defendem que o clube do euro não tem nenhuma obrigação de ir socorrer um país em dificuldades. Devemos olhar muito a sério para a Grécia, como uma espécie de indicador avançado.

E o que poderá acontecer?

Poderá acontecer um agravamento das taxas de juro tal como a Grécia já está a sofrer ao pagar spreads com 200 pontos base. É bom de ver o que aconteceria ao nosso sistema financeiro em que quase 50 por cento do seu crédito é destinado à habitação e em que os spreads são inferiores a dois pontos, se a determinado momento tiver de repor financiamentos com spreads cada vez mais elevados. Esta é uma questão séria que faz com que não perceba alguns dos nossos banqueiros que defendem investimento público a todo o transe e grandes projectos a pensar nas suas comissões de financiamento, etc... Não estão a ver que esta bola de neve do endividamento público a prazo acaba por se repercutir nos próprios riscos bancários. Só estão a ver o curto prazo. Os banqueiros, os empresários e as associações de empresários, não deviam ser contra o investimento público porque o investimento público é necessário, mas o investimento público já representa quase 50 por cento do investimento total neste país. Isto significa que tem sido mau investimento público porque a sua eficiência marginal no produto é cada vez mais decrescente. Ou seja, temos investido, não pouco, mas mal. E tudo isto deriva de uma estrutura de incentivos errada.

Em que sentido?

Quando o país preciso de melhorar a sua competitividade externa e precisa de investir no sector dos bens e serviços transaccionáveis, nos bens exportadores, o Estado, ao garantir rentabilidades nas parcerias público-privadas (PPP) nas concessões está a dar um sinal negativo à banca. Se fosse banqueiro fazia a mesma coisa. Isto é, a banca prefere emprestar 30 mil milhões de euros a estes projectos sem risco do que emprestar 30 mil milhões de euros às empresas. E é por isso que as empresas tendem para uma certa asfixia. Ao mesmo tempo, neste momento, os bancos precisavam de ter menor aversão ao risco, mas como conseguem atingir os seus objectivos de nível de actividade, logo de rentabilidade, emprestando a estas grandes concessões, a estas PPP sem risco, não vão correr riscos.

Como avalia a actuação do Governo nos casos BPP e BPN?

A esta distância temporal diria que nem sempre foi a actuação mais adequada, mas no contexto da época em que havia o risco de que um fogo, por mais pequenos que fosse, incendiasse todo o sistema financeiro, compreendo a acção do Governo. Mas já tenho dificuldade em perceber as razões para demorar tanto tempo para se apresentar um plano para o BPP. O mesmo se passa com o BPN. Perdeu-se demasiado tempo. Mais uma vez o ministro das Finanças, que é um bom economista, mas no último ano, dois anos, pôs mais o chapéu de político do que de economista.

Quais foram as outras vezes em que o ministro das Finanças preferiu o chapéu de político?

No Orçamento Rectificativo na medida em que apareceu tarde e a más horas. E isso é muito grave porque o ministro das finanças tem de pôr o chapéu essencialmente técnico, não pode ignorar que tem uma função política, mas o seu chapéu deve ser essencialmente técnico. Aliás, tal como o ministro da Economia. O reconhecimento da necessidade de rever as contas públicas não foi feito mais cedo por razões eleitorais, a solução dos casos BPN e BPP também foi em parte por razões eleitorais, pelo menos no caso do BPP. É altura de se encontrar uma solução. E também não percebo em relação ao BPN porque é que é preciso tanto tempo. Se a solução é limpar o balanço e vender um bom banco e deixar um mau banco...

Haveria interessados se não fosse assim?

Mas lá fora isto faz-se à posteriori sem fazer a degradação da imagem durante um ano. Durante um ano o taxímetro negativo das perdas continua a subir.

Qual seria a alternativa?

Preferia chegar a acordo com alguém que estivesse interessado no BPN com base num balanço de referência. Depois, faziam-se auditorias com critérios bem definidos e faziam-se as correcções de valor que fossem necessárias em vez de estar a tentar limpar o que não é limpável já que 60 por cento do crédito concedido pelo banco deve estar emaranhado nas próprias empresas da Sociedade Lusa de Negócios (SLN).

Mas do ponto de vista político não teria sido mais interessante para o Governo resolver estes dois casos antes das eleições?

Mas deixou-se emaranhar na metodologia de ataque ao problema e como tem muito medo das manifestações... porque pode não haver solução para os clientes de retorno absoluto do BPP e enquanto não há decisão ainda há alguma esperança.

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