Barco da Women On Waves está fundeado ao largo da Figueira da Foz

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O Governo proibiu a entrada do navio em águas portuguesas, alegando motivos de "respeito pelas leis nacionais" e questões de "saúde pública" Maciej Cosycarz/AFP/KFP

A embarcação está fundeada para lá das doze milhas marítimas que marcam a divisão entre as águas nacionais e internacionais.

A plataforma das organizações promotoras da vinda do barco a Portugal mantém a intenção de atracar no porto da Figueira da Foz, estando a fazer "todas as diligências legais nesse sentido".

O navio holandês, com clínica ginecológica a bordo, pretendia atracar hoje na Figueira da Foz e aí permanecer até 12 de Setembro, para relançar o debate em torno da interrupção voluntária da gravidez e distribuir a pílula abortiva às mulheres grávidas até às seis semanas e meia que estiverem interessadas. Isto será feito em águas internacionais, de forma a não violar a legislação portuguesa em vigor.

De acordo com o Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (Infarmed), a pílula abortiva RU-486 não é comercializada em Portugal, mas, neste caso, compete exclusivamente às autoridades de saúde holandesas o controlo do transporte e distribuição do fármaco.

A RU-486 utiliza-se para produzir o aborto de embriões com poucos dias, através de uma hormona sintética que bloqueia a progesterona, indispensável ao prosseguimento da gravidez, e impede a implantação do embrião no útero, provocando a sua expulsão. Apesar de não ser comercializada em Portugal – há já uma petição em curso para alterar esta situação, subscrita, entre outros, pela deputada comunista Odete Santos –, o seu princípio activo, o misoprostol (comercializado com o nome de Citotec), está disponível nas farmácias, sob receita médica, e nos hospitais, sendo "usado regularmente na indução do trabalho de parto ou no aborto terapêutico", afirmou o presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Ginecologia, Carlos Santos Jorge.

Governo alega razões de "saúde pública" para proibir entrada do barco

No entanto, e desrespeitando as convenções internacionais e os acordos entre Estados-membros da União Europeia, o Governo português proibiu a entrada do navio em águas territoriais lusas, alegando motivos de "respeito pelas leis nacionais" e preocupações com a "saúde pública". A decisão do Executivo, que a Women On Waves fez chegar à comunicação social, justifica a proibição com base no facto de a organização holandesa pretender "distribuir e publicitar produtos farmacêuticos não autorizados em Portugal", "publicitar, provocar e incitar à prática de actos ilegais" e praticar aborto "numa infra-estrutura sanitária não licenciada nem inspeccionada pelas autoridades portuguesas, o que colocaria em perigo a saúde pública".

Sobre a primeira acusação, a Women on Waves defende-se, relembrando que está autorizada pelo Ministério da Saúde holandês a transportar os medicamentos que traz a bordo do "Borndiep". Quanto à perturbação da ordem pública e à alegada provocação feita ao Estado português, a organização realça ter feito viagens semelhantes e nunca ter sido "acusada ou condenada por qualquer crime ou incitamento a crime". A Women on Waves "considera estas acusações ofensivas para a sua dignidade, um insulto ao seu bom nome e uma difamação", indica um comunicado da associação holandesa.

As associações portuguesas que promoveram a vinda do navio a Portugal – Não te Prives - Grupo de Defesa dos Direitos Sexuais, Clube Safo, União de Mulheres Alternativa e Resposta e Acção Jovem para a Paz – alegam, por seu lado, que tudo o que for feito no país será legal segundo a legislação portuguesa e tudo o que for feito em águas internacionais será lícito à luz da lei holandesa.

Nesse sentido, as organizações envolvidas na campanha pró-legalização do aborto já apelaram à população portuguesa para denunciar a atitude do Governo, nomeadamente junto do Presidente da República. Ao mesmo tempo, a Women On Waves pediu a intervenção do Governo holandês e da União Europeia, no sentido de lembrarem Portugal das suas "obrigações no sentido do respeito e aplicação das convenções e leis internacionais e europeias".

A Women On Waves pediu anteontem autorização formal para entrar e permanecer no porto da Figueira da Foz, tendo realçado que tal pedido era apenas uma formalidade dentro do espaço da União Europeia. O "Borndiep" está oficialmente registado como uma embarcação comercial, respondendo directamente às autoridades marítimas holandesas. Antes de sair da Holanda, o barco foi inspeccionado e obteve permissão de partida. De acordo com a regulamentação nacional e internacional, todas as embarcações comerciais têm livre passagem e entrada em portos.

Bloco vai questionar decisão do Governo

O Bloco de Esquerda tenciona questionar o Governo na Assembleia da República pela posição assumida quanto à vinda a Portugal do barco da Women On Waves. Os esclarecimentos serão pedidos na reunião de quinta-feira da Comissão Permanente do Parlamento.

A dirigente bloquista Ana Drago reiterou a posição de "absoluto repúdio pela decisão autoritária" do Governo. "É uma acção vergonhosa, ilegal e politicamente repressiva", afirmou à Lusa, frisando que o navio em causa é legal e prestou todos os esclarecimentos às autoridades.

"Se não forem prestados os devidos esclarecimentos pelos responsáveis políticos" na reunião de quinta-feira, o Bloco de Esquerda promete "fazer uma interpelação ao Governo" assim que começar o ano parlamentar, para saber "o que pensa o primeiro-ministro sobre esta matéria", continuou Ana Drago. "Queremos saber se este Governo assume ou não o compromisso do Governo anterior de não levar esta matéria a referendo antes de 2006, se quer adiar esse compromisso ou antecipá-lo", explicou.

Women On Waves diz que cerca de cinco mil mulheres são hospitalizadas por ano em Portugal

A organização holandesa Women On Waves tem como objectivo promover a despenalização do aborto e prestar aconselhamento sobre educação sexual e planeamento familiar. No barco que traz a Portugal é possível ministrar a pílula abortiva a quem queira interromper a gravidez até às seis semanas e meia (há três anos que a associação espera licença para alargar a interrupção voluntária da gravidez a bordo do barco para doze semanas), desde que as mulheres em causa preencham os requisitos médicos e legais. "Em países nos quais o aborto é ilegal, a legislação nacional aplica-se apenas dentro das águas territoriais. Fora das doze milhas aplica-se a lei holandesa a bordo do navio", explica a organização, acrescentando que "em 2002, o ministro da Saúde holandês confirmou por escrito que a Women On Waves pode disponibilizar legalmente a pílula abortiva a bordo do navio".

Esta é a terceira vez que a organização, fundada em 1999 pela holandesa e médica de clínica geral Rebecca Gomperts, leva o navio até um país onde o aborto é ilegal, depois de já ter rumado à Irlanda, em 2001, e à Polónia, em 2003. Rebecca Gomperts ganhou este ano o prémio "Margaret Sanger - Woman on valour" pelo seu papel no movimento de salvaguarda dos direitos reprodutivos.

O navio holandês vem a Portugal com o objectivo de chamar a atenção para a necessidade de uma educação sexual objectiva, pela disponibilização de preservativos e pela garantia de serviços legais e seguros para prática do aborto. À semelhança do que aconteceu nos outros países visitados pela Women On Waves, a sua deslocação não escapou às críticas das associações – que ou defendem a total não realização de abortos ou a manutenção da lei actual –, que apelaram ao Governo para não permitir a atracagem do barco no país.

A legislação actualmente em vigor em Portugal considera que o aborto é um crime contra a vida intra-uterina, permitindo a interrupção voluntária da gravidez apenas em casos de perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida (até às doze semanas), grave doença ou malformação congénita do feto (até às 24 semanas, alargadas para qualquer altura quando o feto é considerado inviável) ou violação (16 semanas).

Segundo a Women On Waves, cerca de cinco mil mulheres são hospitalizadas por ano em Portugal em resultado de complicações pós-aborto e entre duas a três acabam por morrer em consequência da prática de abortos ilegais e sem segurança. A mesma organização refere que Portugal é o único país da União Europeia que leva a julgamento mulheres e profissionais de saúde pelo crime de aborto, apesar de um relatório do Parlamento Europeu, datado de Junho de 2002, recomendar que a interrupção voluntária da gravidez seja tornada legal e praticada em condições de segurança e apelar aos Estados membros para que não sejam julgadas mulheres que tenham abortado ilegalmente.

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