Do boicote à insegurança, a Rússia desaparece do mapa do turismo

Empresas portuguesas e internacionais ligadas ao sector do turismo estão a cancelar viagens a território russo até mais ver. Suspendem-se contratos e serviços com empresas do país por “repúdio” à invasão da Ucrânia ou por “falta de segurança”. “Vai ser um ano perdido para aquela região”, diz Artur Pegas, da Papa-Léguas. Impacto nas reservas globais já se faz sentir.

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Turistas em Moscovo em tour Kremlin (arquivo, 2016) ADRIANO MIRANDA

“Parece-nos fundamental atacar em todas as frentes”, defende ao telefone Pedro Gonçalves, coordenador operacional da Nomad. A agência de viagens portuguesa, especializada em programas de aventura e destinos menos convencionais, anunciou na semana passada que iria cancelar todas as viagens programadas à Rússia em 2022, “num acto de condenação pela violação dos direitos humanos e da soberania do estado ucraniano”. “É um assunto que nos toca a todos como sociedade civil”, argumenta o responsável.

Desde a invasão da Ucrânia, têm sido muitas as empresas a decidir suspender operações em território russo, unindo-se ao movimento de boicote económico ao regime de Vladimir Putin que já se alastra a vários sectores, do turismo à cultura ou ao desporto. Em Portugal, a Nomad e a Papa-Léguas foram das primeiras agências de turismo a marcar uma posição.

“Não somos indiferentes. Já tivemos posições semelhantes com outras causas. Não somos amebas sem opinião”, reage Artur Pegas, fundador e director executivo da Papa-Léguas, justificando o comunicado publicado pela agência e o cancelamento das viagens programadas à Rússia até ao final do ano. “Isto é mais do que uma opinião política, é quase humanitária”, defende.

A decisão, em ambos os casos, é sobretudo simbólica, assumem, uma vez que o impacto nas operações é muito reduzido. No caso da Nomad, apenas a viagem no Transiberiano atravessa solo russo, de Moscovo a Vladivostoque, tendo sido o único itinerário cancelado, já com duas datas confirmadas, “uma delas esgotada”. No entanto, e ainda que tenha sido dada a opção aos clientes de reaver o valor da reserva ou trocar por outro programa da empresa, o prejuízo calculado é “de algumas dezenas de milhares de euros”, aponta Pedro Gonçalves.

Já na Papa-Léguas, fica cancelada a subida ao Monte Elbrus, a mais alta montanha da Europa, assim como a opção de estender o programa nos países do Báltico a São Petersburgo e Moscovo. No entanto, “nenhuma tinha reservas” ainda, adianta Artur Pegas. Já a viagem que estavam a programar à Ucrânia para assistir à Páscoa ortodoxa, com “uma componente cultural muito intensa”, nem chegou a ser anunciada, uma vez que foi cancelada duas semanas antes do início do conflito, perante os movimentos das tropas russas e o impasse das conversações diplomáticas.

Para Pedro Gonçalves, é na mobilização concertada de muitas empresas e “de toda a sociedade do mundo livre” que está o trunfo desta medida. O objectivo, diz, passa por mudar “a consciência global sobre o que se está a passar na Ucrânia”, nomeadamente “a opinião pública na Rússia”. Daí que a decisão abarque todo o ano de 2022, dado que “estas acções têm mais impacto quanto maiores e mais duradouras forem”, defende.

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São Petersburgo é a cidade mais visitada pelos turistas Adriano Miranda

No entanto, para lá desse horizonte temporal começa a ser “muito difícil tomar hoje uma posição adicional com a expectativa do que possa acontecer”, assume. “Também será preciso ir vendo a evolução dos desenvolvimentos para perceber se aquilo que estamos a fazer tem um impacto significativo e que impacto é que tem”, aponta. “É a questão de fundo porque, se por um lado, o impacto dessas medidas visa mudar a opinião pública e, com isso, combater uma atitude ou um regime; também sabemos que elas têm um impacto negativo para as populações, especialmente em operações como a nossa, de pequena escala e de proximidade. O maior impacto se calhar até está nas populações do que propriamente nas receitas que vão directas para o estado russo.”

Para Artur Pegas uma coisa parece já certa: “Mesmo que haja um cessar-fogo e as coisas acalmem militarmente, este vai ser um ano perdido para toda aquela região do globo do ponto de vista do turismo”. No caso da Rússia, acredita que “nada será como antes, pelo menos no médio prazo”, assumindo “sérias dúvidas de que o governo russo mantenha o sistema de vistos para turistas como tinha anteriormente”.

Reservas retraem-se

Na All You, a decisão de colocar como “indisponíveis” as 11 viagens para território russo oferecidas pelo operador turístico português surgiu “assim que iniciou” o conflito, antes mesmo de a União Europeia fechar o espaço aéreo às companhias russas e o governo de Putin retaliar com a interdição a transportadoras de 36 países, incluindo Portugal.

Todos os itinerários, entre cruzeiros nos rios e lagos da Rússia, pacotes de visita a várias cidades do país ou com destino a diferentes países da região, tinham como ligação aérea de chegada ou partida um aeroporto russo.

A decisão, no entanto, é “independente de [a empresa] estar contra ou a favor” do conflito, frisa Elisabete Pedrosa, directora de operações da All You. “Há destinos para onde as pessoas não vão e que não vamos vender porque são arriscados ou podem vir a ser”, afirma, assumindo que a empresa tem também “uma certa responsabilidade pela segurança” dos clientes no destino.

Uma vez que a maioria dos circuitos turísticos é organizada pelo “agente local” da empresa, “a qualquer altura” podem voltar a reabrir as reservas, estando previsto fazê-lo “assim que os destinos sejam seguros”. Até ao momento, não tiveram qualquer pedido de cancelamento devido ao conflito, mas “já se nota um bocadinho a retracção das pessoas em pedir novas viagens”, aponta Elisabete Pedrosa. Na Papa-Léguas, caíam “reservas todos os dias, para diferentes viagens, em diferentes partes do mundo, num ritmo normal, quase pré-pandémico”. A primeira reserva desde a invasão russa da Ucrânia só entrou na terça-feira passada, precisamente uma semana depois do início do conflito.

“Continua a haver uma vontade de viajar, mas há um retraimento, que creio ser temporário, até perceber para onde vamos”, diz Artur Pegas, relatando dúvidas de clientes com viagens marcadas para outros países da região, ou o receio de quem deixou de querer visitar a Jordânia por sentir que “é muito perto da Ucrânia”. “Há uma certa instabilidade em termos de confiança dos viajantes.”

Os relatos diferem da Nomad. “Já sentimos no terreno, por exemplo, o impacto da migração de refugiados na passagem de algumas fronteiras”, descreve Pedro Gonçalves, mas não há registo de quebra nas reservas. “Os destinos das nossas viagens, já por si, são muitas vezes instáveis e o nosso público habitual está consciente disso”, aponta. Num comentário enviado por e-mail, também Pedro Quintela, director de vendas e marketing da Abreu Viagens, vem pôr água na fervura. “Do que constatámos até ao momento, no início do conflito sentiu-se impacto imediato. No entanto, já no período de Carnaval as vendas retomaram e seguem agora a bom ritmo, inclusive dentro da Europa”, refere. “Depois de uma pandemia como a que atravessámos, é fundamental saber esperar sem levantar grandes alarmismos para a indústria.” Sem revelar pormenores, fonte da Lusitana Sol, especializada no mercado russo, também confirma ter todas as viagens em suspenso.

Para Artur Pegas, é demasiado cedo para “quantificar” o impacto do conflito no sector, tendo em conta que este parece estar ainda longe de uma resolução. “Não sabemos se extravasa as fronteiras ucranianas ou não, qual é o impacto que isso tem ao nível do cancelamento dos espaços aéreos ou o impacto da subida do preço dos combustíveis no preço dos voos. Há aqui todo um conjunto de peças que encaixam no esquema económico, pelo menos em termos macro, que ainda é muito cedo para avaliar.”

Da Airbnb à TripAdvisor, gigantes do turismo tiram Rússia do mapa

Desde o início da semana passada que os boicotes na indústria do turismo à Rússia vão surgindo em catadupa, unindo-se às sanções económicas impostas pelos governos da União Europeia, Estados Unidos e Reino Unido, entre outros.

Depois de anunciar a oferta de alojamento para “até cem mil” refugiados ucranianos, o director executivo da Airbnb revelou na madrugada de sexta-feira que a empresa vai suspender operações na Rússia e na Bielorrússia. Poucos meses depois de lançar o primeiro Guia Michelin no país, dedicado a Moscovo, também o mais famoso guia de restaurantes decidiu no mesmo dia “suspender todas as actividades de recomendação de restaurantes na Rússia”, avançando que não irá actualizar a lista este ano, “dada a gravidade da actual crise”.

Nos cruzeiros, as principais empresas foram das primeiras a alterar ou a cancelar itinerários com paragens nos portos russos, incluindo a Norwegian, a Viking, a Carnival, a MSC ou a Royal Caribbean. Já entre os gigantes do sector das reservas, o grupo Expedia “cessou a venda de viagens de e para a Rússia”, incluindo a marca de alojamento de curta duração Vrbo; enquanto a TripAdvisor e a filial Viator estão a cancelar as experiências reservadas na Rússia e na Bielorrússia e a bloquear as tentativas de reservas de alojamento naqueles países através das suas plataformas. Está também a suspender negócios com entidades de turismo apoiadas pelo governo russo.

Também a Sabre, a espanhola Amadeus e a Travelport deixaram de prestar os seus serviços à companhia área russa Aeroflot, excluindo-a dos sistemas de reserva de voos. E a Boeing suspendeu o apoio a todas as companhias aéreas de bandeira russa, incluindo na manutenção e fornecimento de peças e suporte técnico.

Quanto às agências de viagens e operadores turísticos, o famoso escritor de guias de viagem Rick Steves foi um dos primeiros a anunciar que a empresa Rick Steves’ Europe cancelaria todas as viagens com escala na Rússia. O grupo Travel Corporation também suspendeu todas as viagens programadas para a Rússia ou com escalas no país até ao final de 2022. E a G Adventures removeu todos os itinerários do site, afirmando não estar a aceitar reservas de agências de viagens russas ou clientes russos “num futuro próximo”. “O objectivo das sanções, o objectivo de o globo se unir, é pressionar internamente o país”, afirmava o fundador da G Adventures em comunicado. “Como empresas, devemos [todos] fazer a nossa parte.”

Também a GetYourGuide, a SmarTours, a BusinessClass.com e a JayWay Travel retiraram os destinos russos das respectivas ofertas, enquanto a Intrepid Travel, apesar de ter cancelado todas as viagens programadas para a Rússia e Ucrânia até Junho, reitera, no entanto, que a medida não se trata de um boicote, regressando aos dois países quando for seguro.