A vida extra (e verde) de Vouzela

Foi o primeiro concelho de Portugal a obter a certificação Biosphere Destination e está neste momento a dobar uma série de ideias e de projectos que já estão a transformar uma paisagem descaracterizada pelos incêndios de 2017. “Ardeu-nos o concelho todo e não ficámos a chorar.”

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Nunca soltou a enxada, como uma extensão do seu próprio corpo, enquanto atravessou a aldeia entre a pequena horta e a corte onde guarda as cabras. Foi falando da vida. “Temos casa e temos terra. Nas cidades paga-se tudo, da água ao sol”. António Fernandes, 75 anos, é um dos menos de cinquenta habitantes de Adsamo ("No meu tempo as casas estavam todas ocupadas... morreu tudo"), onde em breve vai ser recuperada a fonte de pedra que é a nascente do rio Zela. “Vive-se melhor aqui do que nas cidades. Ouça só o som da biquinha a botar água pura... Isto é saudável.” Só toma “um comprimido para a tensão”. “É ar puro. Não há poluição. Esta terra dá tudo.”

Vouzela é o primeiro concelho do país a obter a certificação Biosphere Destination, um selo internacional que posiciona a região enquanto destino turístico sustentável, um carimbo aparentemente invisível — um longo processo que teve início a 27 de Julho de 2020, quando Vouzela subscreveu a carta de Compromisso Sustentável —, mas palpável numa série de pequenas grandes coisas que vão surgindo numa paisagem marcada pelo devastador incêndio de 2017. “Tudo queimado...”, recorda António. “Andei dia e noite. Os meus animais salvaram-se. Não ficou cá nada verde...”

Ardeu 73% de um território maioritariamente rural. Ficou “descaracterizada a paisagem” de um município cuja estratégia estava “alavancada e alicerçada no património natural”, lembra à Fugas Rui Ladeira, presidente da câmara com formação em engenharia florestal e uma agenda intimamente ligada à preservação dos ecossistemas. “Assistimos a uma destruição brutal que não nos demoveu de manter a natureza como pilar fundamental, como âncora do nosso trabalho.”

O certificado Biosphere é uma vida extra, “uma oportunidade”, resume. “O que é isto da sustentabilidade e o que é que acrescenta ao território? É um trabalho permanente que envolve a nossa comunidade. É um ponto de partida.”

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"Esta terra dá tudo!" ADRIANO MIRANDA/PUBLICO

É nesse contexto que surge em Vouzela o Observatório para a Sustentabilidade, um projecto estratégico que visa assegurar, por um lado, a recolha e tratamento de informação em diferentes domínios, e, por outro, a monitorização de um largo conjunto de boas práticas de sustentabilidade a disseminar no território, permitindo obter dados concretos sobre actividades e comportamentos. E é nesse sentido que surgem ideias, que são projectos e que parecem entrelaçados, pontas de um novelo que se quer bem dobado. Foi assim, por exemplo, com a Ecopista sobre a ponte férrea e o requalificado Centro de BTT, que de repente impulsionaram a abertura de um hotel temático (o BIKEINN), de uma loja de bicicletas e que de repente inspirou a criação de uma linha de alforges de burel (pela artesã Ana Esperanço). É por essas e por outras que está quase a ser inaugurado o Centro Interpretativo do Linho e do Burel — entre outros projectos relacionados com a lã, o queijo e as ovelhas, que salpicam a paisagem — e que está na forja o Arquivo, onde fica preservado o património da mais importante tipografia de Vouzela e a maquinaria das minas de Bejança.

No mercado municipal, quatro senhoras fixaram o olhar nas mãos da formadora Biosphere com “muitas soluções” para dois produtos locais, a laranja e a abóbora. “Optimizar”, repete Carolina Oliveira enquanto prepara sumo de laranja com abóbora, docinhos de casca de laranja cristalizada e panquecas de puré de abóbora e húmus de grão com sésamo. “É para fazerem para os vossos netos.” Ao lado, Elisabete Oliveira exibe a fruta, os legumes e as aromáticas biológicos. Fez a transição há mais de três anos “por força de uma doença oncológica”. Montou uma estufa pelo seu bem-estar “e pelo do ambiente”. E aos poucos as pessoas começaram a compreender a qualidade ("não têm tratamento e aguentam mais tempo") e os preços. “Hoje, as pessoas compram pelo sabor.”

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“Quando tudo fechou [na pandemia], quem nos levou legumes à porta foi a Elisabete”, sublinha Leonor Alcoforado, técnica de Turismo para a área do ambiente. “Precisamos que as coisas existam.”

Tendo em vista os 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas para construir um destino de qualidade para locais e turistas, o município foi “ouvindo vozes”. “Vamos passando a mensagem de que não somos peças soltas. O grande trabalho é esse”, reforça Leonor. “Obriga a uma emersão. Não queremos que o nosso território seja só um destino turístico sustentável. Somos nós os primeiros utilizadores desse território.” Da torre medieval de Cambra e da praia fluvial, da vista da torre de Vilharigues e da paz na zona da albufeira da Lapa de Meruje. “Estamos a criar espaços que devolvam a qualidade de vida a quem é de cá”.

Feito o diagnóstico e definido o plano de acção, multiplicaram-se os momentos de sensibilização para envolver aqueles que, no terreno, são decisivos para o sucesso da sustentabilidade no concelho (os produtores locais, o alojamento, a restauração, as empresas de animação, os artesãos, as escolas, as juntas de freguesia, as IPSS, as associações...), definiram-se políticas e adoptaram-se práticas para que pessoas, recursos e ambiente possam conviver em harmonia. “São várias gavetas. Está tudo ligado.”

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A Rota do Megalitismo passa pela Lapa de Meruje ADRIANO MIRANDA/PUBLICO

É também um caminho para recuperar o verde e as cores das serras envolventes que se perderam nos incêndios, que, valha-nos isso, deixaram destapados ainda mais vestígios da Pré-História — aí está a Rota do Megalitismo Gigantes de Pedra, que nos leva pelos principais monumentos megalíticos do concelho, como a Lapa da Meruje e a Casa da Orca da Malhada do Cambarinho. “Estes esqueletos em pé eram carvalhos”, suspira Leonor Alcoforado, junto ao trilho da Penoita. “Poder de reinvenção”, sublinha. E aproveitamento da “sabedoria enraizada” nas pessoas e nas aldeias. Vouzela está, por exemplo, a recuperar o viveiro municipal de espécies autóctones, bolotas, castanhas e medronhos de forma a “manter a genética florestal” (com a ajuda da Universidade de Coimbra e a Associação Vouzelar lançou-se o projecto Forest For Future), promovendo em paralelo acções de erradicação e controlo de espécies infestantes, manchas que ganharam força por entre a cinza. “Este ano já vamos ter plantas. É fundamental que o assunto não seja esquecido, que as pessoas ganhem gosto pelo tema e que percebam o quão difícil é erradicar. Tudo isto aqui era eucalipto”, aponta.

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ADRIANO MIRANDA/PUBLICO�

Foram limpas as linhas de água que transbordaram com as cheias. Foram registadas em documentário as boas práticas na floresta. Foi lançado para os mais jovens um concurso de fotografia do bosque autóctone. “Temos ideia de que as nossas acções são insignificantes e pequeninas”, diz Leonor, junto ao tronco de um carvalho na aldeia de São Mateus de Covelinho que tinha 421 anos quando o fogo o matou. “Ardeu-nos o concelho todo e não ficámos a chorar. São tantas frentes... Há um mundo enorme de peças soltas. Temos muito que trabalhar.”